24 Outubro 2017
Como discernir se um discurso vem de um "espírito bom" e nos aproxima de Jesus, ou se é animado pelo "espírito mau", mesmo quando a pessoa que o pronuncia diz que pretende "dizer a verdade"? É a pergunta para a qual, a partir da experiência espiritual de Pedro Fabro (1506-1546), canonizado pelo Pontífice em 17 de dezembro de 2013, responde um artigo escrito para a Civiltà Cattolica do qual publicamos alguns trechos.
O artigo é de Diego Fares, padre jesuíta, que trabalha na revista Civiltà Cattolica, publicado por L'Osservatore Romano, 20-21-10-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
De vez em quando nos acontece ler artigos que atacam a Igreja e o Papa. Sim, a Igreja e o Papa, porque se trata de um ataque a ambos, embora alguns afirmem atacar o Papa para defender a doutrina da Igreja; bem como outros digam que estão defendendo o Papa enquanto criticam a Igreja. A linguagem que eles usam não parece complicada: manchetes sobre intrigas de poder, venenos entre altos prelados, brigas internas na Cúria, clamorosos erros pastorais ou políticos e ameaças à doutrina católica, são muito claros e diretos. Mas uma linguagem simplista não é uma linguagem simples, embora possa se assemelhar, assim como a erva daninha no início assemelha-se ao trigo bom.
O homem da parábola consegue distinguir num único olhar: se houver cizânia, é porque um inimigo a semeou (cfr. Mt,13, 28). Mas não se deve tentar erradicá-la toda antes do tempo, porque se corre o risco de arrancar o trigo junto com ela. No entanto, é indicado, quando o excesso de ervas daninhas sufocam o trigo, cortar uma parte para que as plantas possam respirar. Quando, em uma discussão, os tons sobem em demasia e as palavras começam a ferir, se a intenção é continuar com o diálogo, é preciso baixar o tom e "cuidar da linguagem".
Alguém justifica o uso de uma linguagem escandalosa dizendo que são os fatos mencionados que a justificam. Se esta justificação fosse suficiente, o mesmo deveria acontecer quando o Papa afirma que há corrupção no Vaticano ou quando condena um escândalo. Mas a verdade não consiste apenas nos 'fatos', que todos podem relatar de forma subjetiva, sem se preocupar com quem está ouvindo ou lendo. Parafraseando alguns comentários sobre esse tipo de notícia, poder-se-ia dizer que certo tipo de linguagem ataca principalmente o "esplendor da verdade".
Que todos tenhamos um maior cuidado com a linguagem que usamos não é menos vital que ter cuidado com a qualidade do ar do planeta. E esse cuidado da linguagem não é apenas sobre os conceitos e as imagens que escolhemos usar para tecer um argumento racional: ao contrário, tem mais a ver com a atenção e o respeito que têm, um com o outro, os que estão dialogando e juntos buscam a verdade.
Dado o nível de sofisticação de linguagem atual, não é fácil discernir com clareza quando se apresenta um discurso enganoso. Existem vários tipos. Nessa jornada de crescimento no discernimento da linguagem podemos buscar suporte em alguns critérios indicados por São Pedro Fabro, o jesuíta companheiro de Inácio e Francisco Xavier. Fabro, na opinião de Inácio, era a pessoa que melhor orientava os Exercícios Espirituais e tinha o carisma do discernimento e da conversação espiritual: sabia dialogar com todos e tinha modos muito respeitosos e convincentes nos confrontos dos seus adversários.
O primeiro critério explica-o assim: "Durante a missa surgiu-me outro desejo, ou seja, que todo o bem que hei de fazer, eu o faça com a mediação do Espírito bom e santo. E tive a ideia de que a Deus não agrada a maneira pela qual os hereges querem fazer certas reformas na Igreja. Embora digam coisas verdadeiras, o que também acontece com os demônios, eles não o fazem com aquele espírito de verdade, que é o Espírito Santo".
Pedro Fabro salienta que não é suficiente "dizer coisas verdadeiras", mas é preciso dizê-las com aquele espírito de verdade, que é o Espírito Santo. Desde que se deseje realmente que tais coisas ajudem a corrigir efetivamente um erro ou um mau comportamento. Fabro, na prática, distingue três "verdades": as coisas verdadeiras (os fatos), o espírito de verdade (ou seja, a disposição de espírito com que se dizem as "coisas verdadeiras"), e o Espírito da verdade como pessoa. Entre a verdade dos fatos e o Espírito da verdade coloca-se justamente o espírito de verdade, ou ' espírito bom', que permite aos fatos da vida - mesmo ao pecado – conectar-se com a graça, que orienta tudo para o bem. É útil possuir esse tipo de discernimento quando se trata de julgar se algo é verdadeiro ou falso. Em um discurso deve ser considerada e avaliada a capacidade que ele tem, em seu conjunto e em cada uma de suas palavras, de ser usado para o bem pelo Espírito. E, por outro lado, deve ser avaliada a capacidade que ele tem, em seu conjunto ou em alguma de suas partes, para bloquear a ação do espírito bom ou fortalecer o mau. Aquela que, portanto, poderia parecer uma pequena diferença – dizer bem uma coisa verdadeira, ou dizê-la com escárnio, raiva e desprezo - na realidade pode ativar grandes mudanças. Uma verdade expressa com suavidade e respeito é uma mão estendida que cria pontes. Em vez disso, uma verdade afirmada com rudeza e falta de respeito é um tapa que entrava o diálogo e a compreensão recíproca.
São Pedro Fabro nos oferece um segundo critério para discernir a forma de falar segundo o Espírito da verdade. Ele pede ao Senhor que o ensine a falar bem - sob a influência do Espírito Santo - das coisas de Deus, e percebe que está experienciando um "menos". Sente que na sua linguagem há algo que, se não for cuidadoso, pode remover a eficácia da graça que recebeu, no momento em que ele comunica essa experiência para outro. Fabro explica assim: "[Eu estava pedindo ao Senhor que] me ensinasse como falar de coisas anteriormente intuídas, por mim ou pelos outros, sob a influência do espírito bom. O tempo todo eu falo, escrevo e faço uma quantidade de coisas sem prestar atenção ao espírito em que eu as tinha primeiramente sentido. Assim acontece-me, por exemplo, de expressar de maneira trivial, com frivolidade e ânimo jocoso, o que anteriormente eu havia provado em um espírito de compaixão e de íntima laceração: quem escuta aproveita bem menos, pois a verdade lhe é transmitida segundo um espírito ‘menos’ bom do que aquele com que havia sido recebida".
Fabro atribui tudo isso ao fato de ter expressado a graça recebida com um espírito "menos" bom do que aquele com que a havia recebido. Ele atribui esse menor grau de bondade ao que poderíamos chamar de uma "mudança de tom": expressou de forma jocosa o que antes lhe havia despertado compaixão. Trata-se daquelas linguagens em que se nota uma mudança de tom e de registro que "diminui" o outro - desqualifica-o, denigre-o - ou expressa coisas importantes, até mesmo sagradas, de maneira simplista ou redutiva.
Santo Inácio expressa esse tipo de tentação com uma regra de discernimento que mostra como nem sempre o espírito maligno busca o mal maior: "Se no caso dos pensamentos sugeridos acaba-se chegando a algo ruim, fútil ou pior do que a alma havia se proposto a princípio a fazer, ou enfraquece, ou inquieta, ou perturba a alma, tirando a sua paz, a tranquilidade e a calma que antes tinha, é um sinal claro que isso procede do mau espírito". Além disso, esse "mal menor" às vezes é deliberadamente procurado por aquele que percebe que, se almejasse a um mal maior, não teria sucesso. Tudo isso ressurge frequentemente nos discursos que são feitos sobre o Papa e a Igreja, e é a maneira mais fácil de fazer com que muita gente acabe "engolindo-os" sem perceber.
Um terceiro critério, entre aqueles indicados por Fabro e que pode ser útil nessa reflexão, é o do “magis inaciano”. Santo Inácio é o homem do magis ( "maior"), a "maior glória de Deus". Mas não se trata de um "maior" ideal, de uma perfeição proposta em abstrato, que depois deveria ser buscada, mas de um "maior" concreto, possível, incorporado na vida, que leva em conta os tempos, os lugares e as pessoas. Em última análise, é o passo à frente que o Pai aprecia e que o Espírito Santo nos convida a fazer. Pode tratar-se de um grande passo, como o da conversão de São Paulo ou o gesto de São Maximiliano Kolbe, que deu a própria vida para salvar um homem condenado à morte; ou um pequeno passo, como o que faz uma criança para pular uma poça d’água. Pequeno ou grande, esse passo é um "mais no Espírito". Fabro afirma: "Em geral, quanto mais alto será o objetivo que terás proposto para a atividade, para a fé, para a esperança e o amor de um homem para que ele dedique todas as suas forças afetivas e operacionais, maior será a probabilidade que se ponham em marcha os espíritos bons e maus [...] ou seja, o que dá força e o que debilita, o que ilumina e o que ofusca e obscurece, em suma, o bom e o outro que é o oposto".
Em contraste com a dimensão própria da linguagem de Francisco, que exorta todos - inclusive seus críticos - a pensar no passo à frente a ser feito pessoalmente, existem afirmações que nos incitam a dar um passo à frente, mas com o objetivo de identificar qual o Papa anterior, qual a encíclica ou dogma da fé que Francisco estaria atacando. Eis o critério para discernir as linguagens que seguem a lógica dos fariseus e dos doutores da lei, os quais, quando Jesus fazia um bem concreto - por exemplo, curava no sábado um homem que tinha uma mão paralisada – acusavam-no de infringir a lei. O movimento dessas linguagens é totalmente contrário ao da encarnação, em que as palavras e as ações particulares não visam atacar ninguém nem destruir algo, mas pretendem transmitir a graça a uma pessoa que está em um lugar e em um tempo determinado. As afirmações ou insinuações sobre o fato que Francisco estaria atacando a encíclica de João Paulo II Veritatis splendor nem sequer mereceriam ser mencionadas, se não fosse pelo fato de que as pessoas simples ficam perplexas e escandalizadas quando tais coisas são ditas de maneira categórica e solene. O fato de que Francisco, em sua exortação apostólica Amoris laetitia, que recolhe os resultados de dois sínodos sobre a família, diga que "nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas por intervenções do Magistério "(Amoris laetitia, 3) está em perfeita consonância com o espírito da Veritatis splendor, em que João Paulo II conclui "o discernimento de algumas tendências da teologia moral contemporânea", com esta exortação: "Porém, é preciso que nós, Irmãos no Episcopado, não nos detenhamos só a admoestar os fiéis sobre os erros e os perigos de algumas teorias éticas. Devemos, antes de mais, mostrar o esplendor fascinante daquela verdade, que é Jesus Cristo" (Veritatis splendor, 83). Francisco assume e amplia esta "exortação apostólica" de São João Paulo II. De fato, a verdade não resplandece nas definições, nem mesmo naquelas da Veritatis splendor, mas no homem vivo.
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Conselhos para discernir discursos enganosos. A linguagem da verdade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU