15 Março 2017
Foi aos pés do Forte de São Luís do Maranhão, onde hoje funciona o Palácio dos Leões. 1614, o missionário francês Yves D’Évreux (1577-1632), da Ordem dos Capuchinhos, ordenou a prisão, tortura e execução do índio Tibira, da tribo dos tupinambás, sob o pretexto de “purificar a terra do abominável pecado da sodomia”. Tibira ainda tentou fugir, escondendo-se na mata por alguns dias, mas foi logo capturado. Amarrado pela cintura à boca de um canhão, “onde deitaram-lhe ferros aos pés”, teve seu corpo destroçado. Uma parte dele caiu aos pés do forte. A outra desapareceu no mar.
A reportagem é de André Bernardo, publicada por Aventuras na História, 13-03-2017.
O extermínio de Tibira foi documentado pelo próprio d’Evreux, que dedicou um capítulo inteiro de seu livro, Voyage Dans le Nord du Brésil Fait Durant les Années 1613 et 1614 (“Viagem ao Norte do Brasil feita nos anos de 1613 e 1614”, em livre tradução), ao índio tupinambá – “bruto, mais cavalo do que homem”. Antes de sentenciá-lo à morte, o capuchinho ainda lhe concedeu um último desejo: o de fumar tabaco – ou “petum”, em língua tupinambá. Segundo um costume indígena, quando saíam para caçar, os tupinambás costumavam levar “petum”. Caso viesse a faltar mantimentos, saciavam a fome, mastigando folhas de fumo. Para Tibira não morrer pagão, D’Évreux providenciou o batismo dele, com o nome de Dimas – em alusão ao “bom ladrão” perdoado por Jesus Cristo na cruz.
Suas últimas palavras? “Vou morrer. Não tenho mais medo de Jurupari (Diabo). Agora, sou filho de Deus”. Para não sujar as mãos com sangue inocente, os missionários franceses concederam a “honra” da execução a outro tupinambá. “Morres por teus crimes, aprovamos tua morte e eu mesmo quero pôr fogo no canhão para que saibam e vejam os franceses que detestamos as sujeiras que cometeste”, declarou o cacique Caruatapirã, seu rival mortal. Daquele dia em diante, o algoz de Tibira passou a gabar-se de seu feito e, pior, a servir-se dele para impor respeito aos outros nativos. A execução, em praça pública, foi assistida por autoridades civis e militares da então colônia francesa, além de chefes de diversas etnias indígenas.
Ainda hoje, quatrocentos anos depois, o relato da morte de Tibira causa espanto a Luiz Mott, doutor em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Não temos notícia no Brasil de outros criminosos que tivessem sido executados na boca de um canhão”, afirma. Segundo Mott, as razões de tão cruel execução são duas: medo do castigo divino – não é à toa que o termo sodomia originou-se a partir do episódio bíblico que narra a destruição das cidades de Sodoma e Gomorra – e receio de contágio. “Ao castigar um adepto da sodomia com a pena capital, os religiosos aplicavam a pedagogia do medo não só para erradicar essa abominação da terra selvagem, como para inibir sua prática nefanda entre os colonos”, explica o antropólogo e historiador.
Em países do Velho Mundo, como França, Portugal e Espanha, sodomitas, hereges e bruxos, entre outros, eram condenados à morte na fogueira, “para não deixar vestígios”. No Brasil colonial, a utilização de um canhão como instrumento de execução só pode ser explicada como artifício para espetacularizar a morte de um pecador. Segundo Mott, o extremismo homofóbico perpetrado em São Luís do Maranhão infringia o próprio Direito Canônico da Igreja Católica, que não autorizava missionários de condenarem suspeitos de sodomia à morte. “A execução de Tibira foi totalmente arbitrária. Só o tribunal do Santo Ofício tinha jurisdição papal para queimar sodomitas”, afirma Mott.
Os três navios franceses da expedição de Daniel de La Touche, que trouxeram o missionário francês Yves D’Évreux ao Brasil, ainda não tinham sequer zarpado do porto de Cancele, na Bretanha, em março de 1612 e os colonizadores portugueses já se escandalizavam com os hábitos sexuais dos silvícolas brasileiros. Um dos primeiros documentos que se tem notícia é o do jesuíta português Padre Manuel da Nóbrega (1517-1570). “Os índios do Brasil cometem pecados que clamam aos céus”, denunciou o sacerdote à Coroa Portuguesa, em 1549. Outro relato que chama a atenção é o do historiador português Gabriel Soares de Sousa (1540-1592). “São os tupinambás tão luxuriosos que não há pecado que eles não cometam”, decretou em seu “Tratado Descritivo do Brasil”, de 1587.
Além deles, o jesuíta português Pero Correia (1551), o missionário francês Jean de Léry (1557) e o historiador português Pero de Magalhães Gandavo (1576) também reportaram casos de sodomia entre os tupinambás. Curiosamente, algumas mulheres da tribo também assumiam papéis diferentes do habitual. Saíam para caçar, participavam de guerras, tinham esposas. Se os gays eram conhecidos como “tibira”, as lésbicas eram chamadas de “çacoaimbeguiras”. “Algumas índias deixam todo o exercício de mulheres e, imitando os homens, seguem seus ofícios como se não fossem fêmeas. E cada uma tem mulher que a serve, com quem diz que é casada. E assim se comunicam e conservam como marido e mulher”, relata Pero de Magalhães Gandavo (1540-1580) em “Tratado da Terra do Brasil”, de 1576.
Os tupinambás, porém, não eram os únicos a praticar o que Yves D’Évreux chamava de “o mais torpe, sujo e desonesto dos pecados”. Outras etnias, como guaicurus, xambioás, nambiquaras, bororos e tikunas, só para citar algumas, também não viam problema com a homossexualidade. “Tal conjunto de práticas era comum em sociedades indígenas brasileiras, sem que houvesse estigma sobre essas pessoas por parte de seu grupo”, afirma o sociólogo Estevão Rafael Fernandes, da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). “Há várias fontes, inclusive, apontando para um papel espiritual desempenhado por esses indivíduos em suas aldeias. O que os missionários e colonizadores percebiam como depravação era, muitas vezes, percebido como potencial xamânico pelos indígenas”.
Autor do artigo “Homossexualidade Indígena no Brasil”, Fernandes observa que, nos EUA e Canadá, tribos indígenas com uma sexualidade fora do modelo predominante também foram perseguidas por ingleses, franceses e espanhóis. E mais: lá, os indígenas homossexuais são chamados de two-spirit pelos seus iguais. Mais do que uma maldição, nascer com “dois espíritos” seria uma benção. É como se estivessem em transição entre dois mundos: o masculino e o feminino, o terreno e o espiritual, o indígena e o não-indígena. “Isso garantia a eles um papel de destaque em suas tribos”, completa.
1547 – O português Estêvão Redondo é o primeiro homossexual degredado pelo Santo Ofício da Inquisição para o Brasil. Ele chegou a Recife, em fevereiro daquele ano, vindo de Lisboa. Teve seu nome inscrito no Livro dos Degregados pelo próprio governador de Pernambuco, Dom Duarte d’Albuquerque Coelho.
1580 – O medo de morrer queimado era tanto que levava os suspeitos de sodomia a praticar atos impensáveis. Como o do professor baiano Fernão Luiz. Na esperança de apagar as provas do “crime”, tramou a morte de seu parceiro e de sua família: pôs veneno em uma galinha, preparou uma canja e a deu para eles como refeição.
1586 – Para escapar da repressão inquisitorial, o feitor baiano Gaspar Roiz subornou um padre para queimar o sumário de culpas que o acusava de sodomia com um jovem chamado Matias. Muitas vezes, os acusados tinham seus bens confiscados pelo Santo Ofício, antes mesmo de conseguirem provar sua inocência.
1591 – O padre Frutuoso Álvares foi o primeiro homossexual a ser interrogado pela Inquisição no Brasil. Era acusado de praticar atos libidinosos, como masturbação e sodomia, em homens e rapazes. Seu inquisidor foi o padre Heitor Furtado de Mendonça, responsável pela primeira visitação do Tribunal do Santo Ofício à colônia.
1592 – Filipa de Souza foi a primeira lésbica a ser açoitada publicamente pela Inquisição no Brasil. Nascida em Portugal, chegou à colônia em data ignorada. Viúva, foi denunciada por “práticas nefandas” e presa em 18 de dezembro de 1591, aos 35 anos. Depois de expulsa da capitania, não se teve mais notícias de seu paradeiro.
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Índios gays: Amor e ódio na colônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU