Solenidade de São Pedro e São Paulo – Ano B – Quem é Jesus para nós hoje?

Pintura de São Pedro e São Paulo. (Foto: cea + | Flickr CC)

Por: MpvM | 28 Junho 2024

"As duas testemunhas, Pedro e Paulo, representam a Boa Nova de Jesus e a realização das promessas do Antigo Testamento. Na atividade e no destino destas duas testemunhas as comunidades se contemplam a si mesmas e veem o seu próprio futuro enquanto presença profética da Palavra de Deus e Luz dos povos no meio da humanidade! Estas duas testemunhas são um resumo da história da origem da Igreja, Comunidade para o Reino."

A reflexão é de Tânia Maria Couto Maia, teóloga leiga. Ela possui  Bacharelado em Teologia pelo Instituto Teológico-Pastoral do Ceará (2006), mestrado (2009) e doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio (2014). Atualmente é professora na área de bíblia da Faculdade Católica de Fortaleza e professora da área de bíblia da Escola de Pastoral Catequética. 

 

Leituras do Dia

1ª Leitura - At 12,1-11
Salmo - Sl 33(34),2-3.4-5.6-7.8-9 (R. 5)
2ª Leitura - 2Tm 4,6-8.17-18
Evangelho - Mt 16,13-19

Eis a reflexão.

Dos textos da liturgia desta Solenidade dos apóstolos são Pedro e são Paulo depreende-se que sua essência, centro e ponto alto é a Igreja de Cristo. Estes pretendem proporcionar estímulos decisivos para a compreensão da Igreja, de como ela veio à existência após o evento da Páscoa, preservando e transmitindo de maneira viva a fé tradicional, à luz da Tradição apostólica. Por conseguinte, as individualidades, quer da pessoa de Pedro quer da pessoa de Paulo, não são proeminentes nesta reflexão, mas sim, a solidariedade deles no ‘Zelo apostólico’ e ‘Testemunho missionário’. A teologia subjacente aos textos, priorizando a confissão de fé de Pedro e o testemunho missionário de Paulo - formador de comunidades -, toma-os como evocação interpretativa de experiências históricas concretas ou práticas ministeriais das primeiras comunidades. Convida-nos, pois, a entender o que é a Igreja como comunidade escatológica do final dos tempos a partir de suas raízes simbolizadas nas duas qualificadas testemunhas.

1ª Leitura: At 12,1-11

Sob a ação e a moção do Espírito de Deus, que é quem convoca e reúne, surgiu a primeira comunidade cristã, a fim de testemunhar perante o povo de Israel sua fé no Cristo-Messias. A comunidade-mãe de Jerusalém, nascida da mensagem evangélica, é convocada pela palavra daqueles que foram os primeiros a conhecer o Senhor e, por ele, enviados (cf. At 2,37. 42 ). No primeiro texto (At 12,1-11), a autodenominação Ekklesia (v. 1. 5), sempre no singular, deixa entrever que ela tinha consciência de ter sido convocada e congregada mediante o Espírito (acontecimento de Pentecostes), assumindo, também, o mesmo destino do seu Senhor, inclusive, a permanência do tempo Pascal: “Era nos dias dos Pães sem fermento” (v. 3b. 4).

Em conexão com a atividade apostólica de Pedro o v. 2 relata a perseguição que se desencadeou contra a comunidade-mãe de Jerusalém, na qual Thiago, irmão de João, deu testemunho pelo martírio e Pedro foi preso, e acorrentado, assim permanecendo, por conveniência dos perseguidores, até depois da Páscoa (v. 4b). O texto põe em relevo a resistência e a solidariedade de toda a Igreja orante invocando a Deus em favor dos perseguidos (v. 5), presumivelmente a fim de indicar que a comunidade que se está constituindo agora deve ser compreendida como fraternidade, como família, confirmado pelo fato de Pedro dirigir-se à casa na qual os irmãos se encontravam reunidos orando (v. 12).

A presença do ‘Senhor da Comunidade’ fez-se sentir em sua imediata intervenção: “A comunidade, em ardente oração, clamou a Deus e foi libertada de todos os temores” (v. 5; cf. Sl 34,7. 14. 18). Os vv. 6-10 põem em paralelo, tecendo com detalhes, o poder e a segurança da prisão e a superioridade da ação do poder Divino ao libertar Pedro das mãos de Herodes e de toda a expectativa do povo judeu (v. 9)

Pedro, perseguido, preso e libertado, faz sua própria experiência de Igreja em continuidade com aquela comunidade de discípulos que o próprio Jesus criou em seu tempo, testemunhando que essa comunidade é o lugar no qual se torna possível o discipulado autêntico diante do próprio Jesus e de sua mensagem do Reino. É nela, onde se pode, como o salmista, “provar e ver como o Senhor é bom” (Sl 34,9). O texto deixa transparecer, não somente a liderança de Pedro como homem do começo, mas também, a auto concepção de comunidade ordenada ao Reino de Deus do qual ela é semente, ao aceitar as consequências e o desafio de ser Igreja.

2ª Leitura: 2 Tm 4,6-8. 17-18

A segunda leitura testemunha a realidade da Igreja tão presente na mente, no coração e na atividade de Paulo a ponto de ele identificar-se com ela, oferecendo-se em libação (v. 6; cf. Fl 2,17). É bem conhecida sua surpreendente e original definição da Igreja como ‘corpo de Cristo’. Diz Paulo: “e como há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, pois participamos todos desse único pão” (1 Cor 10,17). No mesmo sentido diz aos Gálatas: “todos vocês são um só corpo em Jesus Cristo” (Gl 3,28). A raiz desta sua doutrina sobre a Igreja foi propiciada pela intervenção direta de Cristo, que ao revelar-se a ele no caminho de Damasco, identificou-se com a Igreja e fez-lhe compreender que perseguir a Igreja que vive dentro das pessoas era perseguir a Ele, ao Senhor (cf. At 9,4). É deste seu testemunho, portanto, que procede a grandeza e a nobreza da Igreja, isto é, de todos nós, que fazemos parte dela, por sermos parte de Cristo, uma espécie de extensão de sua presença corporal.

O texto aqui proclamado costuma ser citado como seu último desejo. A linguagem é típica das despedidas de Paulo: libação (cf. Fl 2,7), combateu o bom combate (1Tm 6,12), terminou sua carreira (1 Cor 9,24-27), ganhar a coroa imperecível (1 Cor 9,25; Tm 2,5). Sua última realização é: “guardei a Fé (v. 7), que significa sua cuidadosa transmissão do Evangelho a seus sucessores (2,2) e sua fidelidade em seu ministério de evangelista e mestre. Guardando e proclamando a fé no Ressuscitado, eis o combate do qual Paulo sai vitorioso ao encerrar sua carreira e aguardar, na esperança que vem da fé, o julgamento de Deus, o justo juiz. Além disso, a carta enfatiza que a morte suportada com Jesus resultará em vida com Ele (cf. 2,11-12). Combateu o bom combate assistido e revestido das forças do Senhor que jamais abandona sua Igreja, advertindo-a sobre o leão rugidor que ronda a Igreja, não uma fera de verdade, mas o perigo atual do mal. É, então, provável que os vv. 17-18 falem do elevado senso que Paulo tinha de proteção divina para sua missão contínua. Transmitindo seu testemunho ao despedir-se de Timóteo, Paulo conclama a toda a Igreja a comunicar a experiência da força da Palavra do Senhor, que abre fronteiras missionárias, procurando, com audácia profética, a felicidade humana.

Evangelho: Mt 16, 13-19

O relato da confissão de fé de Pedro que acontece na região de Cesareia de Filipe e marca a etapa inicial da jornada que resultará na paixão e na morte de Jesus em Jerusalém, começa como um diálogo entre Jesus e seus discípulos a respeito das especulações sobre sua identidade. Os discípulos relacionam algumas opiniões populares (vv. 13-14), e, na sequência, Jesus quer saber da opinião deles (vv. 15-16). À pergunta a respeito da opinião dos discípulos Pedro aparece como porta-voz para o grupo e responde no sentido de uma confissão plenamente válida: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Jesus, declarando Pedro ‘bem-aventurado’, porque “não foi carne ou sangue que o agraciaram com a revelação”, sublinha que o doador é exclusivamente Deus, o “Pai” de Jesus “que está nos Céus”. Deixando claro que, por si mesmo, o ser humano não é capaz de compreender a revelação. Duas características assinalam essa bem-aventurança: de um lado, contém um vocativo pessoal, até mesmo nominal: “Simão, filho de Jonas”. De outro, fundamenta-se em um dom concedido por Deus, a saber, a dádiva da revelação. Apesar de Pedro fazer a confissão em nome dos discípulos, a dádiva da revelação diz respeito apenas a ele: “Te revelaram”. Em comparação com Mc 8,29, a confissão é ampliada com o atributo “Filho do Deus vivo” que acrescenta mais uma especificação da identidade de Jesus. Portanto, a frase “ o Filho do Deus vivo”, no v. 16b corrige e transcende quaisquer falsas implicações presentes no título “Cristo”.

O v. 18 atenta para uma nova declaração de Jesus na qual não mais chama o discípulo de Simão, mas de Pedro, interpretando que a essa mudança de nome liga-se uma mudança de significado: Petros significa pedra e pedra, porém, significa rocha. O discípulo torna-se rocha da Igreja. A Palavra a respeito da pedra (vv. 17-19) dá solidez à tradição, simbolizando sua estrutura duradoura. Cristo fala de sua Igreja. Nos Evangelhos Sinóticos Pedro é o primeiro chamado, e, portanto, o início do discipulado, o começo da Igreja. Como homem do começo está apto para ser a garantia do Evangelho. Ele recebeu a revelação. É a comunidade escatológica do final dos tempos. Nela reunir-se-ão todos os que têm a mesma fé que Simão Pedro confessou.

A promessa de que as portas do Hades não poderão prevalecer contra a Igreja tem também a ver com a base da rocha. A Igreja construída sobre a rocha, pode, como Igreja do fim dos tempos, resistir aos poderes da morte. Essa promessa é combativa. Ademais, Simão Pedro recebe as chaves do Reino do Céus (v. 19). A imagem da chave é antiga. Palácios e Templos podiam ser trancados com poderosas chaves. Quem abria e fechava devia zelar pela segurança dos que entravam e saíam. Contudo, em Is 22,22 a imagem amplia-se e inclui, ao mesmo tempo, o poder de dispor e os plenos poderes (cf. também Ap 1,18; 3,7). O Reino é comparado a uma casa, à Casa do Pai. A promessa a Pedro é o único lugar no Evangelho onde ‘Igreja’ e ‘Reino dos Céus’ aparecem lado a lado. Pedro cumpre sua tarefa na Igreja quando recorda o Evangelho que permite às pessoas entrar no Reino dos Céus. A missão e o destino das comunidades são como a missão do próprio Jesus.

A pessoa de Pedro testemunha o rico tesouro da tradição, a fraternidade experienciada com Jesus e os discípulos, a vida de comunhão ‘na casa’ que é a comunidade-mãe de Jerusalém, guardiã da semente da futura fé da Igreja, o ponto de junção do povo de Deus escatológico, o qual Deus escolheu para si, mediante o ato salvífico de Jesus Cristo, a fim de testemunhar sua fé perante o povo de Israel.

As duas testemunhas Pedro e Paulo representam a Boa Nova de Jesus e a realização das promessas do Antigo Testamento. Na atividade e no destino destas duas testemunhas as comunidades se contemplam a si mesmas e veem o seu próprio futuro enquanto presença profética da Palavra de Deus e Luz dos povos no meio da humanidade! Estas duas testemunhas são um resumo da história da origem da Igreja, Comunidade para o Reino.

O confronto entre o Império e Igreja continuam. Os Herodes se sucedem e aprimoram cada vez mais seus meios de perseguição. Portanto, o que vivemos hoje, novidade, não é. Fomos gestados nas dores da cruz no confronto entre a vida e a morte. É disto que os textos desta liturgia nos falam. Os discípulos confessando sua Fé em Jesus Ressuscitado, “o Filho de Deus vivo”, contribuíram para o nascimento de uma nova realidade na qual todos vivem como irmãos: a Igreja. É urgente despertar em nossa consciência a identidade de Igreja e, consequentemente nos inquerir sobre quem Jesus é para nós hoje. Não podemos nos fechar num mundo de temores e desesperos porque a Igreja é lugar para alimentar a esperança de que é possível acreditar no lado bom dos homens e de confiar, firmemente, na Providência de Deus que continua a proteger sua comunidade.

Leia mais