Por: André | 08 Março 2015
“O que é uma Igreja sinodal? Como é do conhecimento de todos, esta expressão não se refere ao fato de que, a cada dois anos, o papa convoque um sínodo em Roma para debater um tema teológico mais ou menos importante. ‘Igreja sinodal’ foi a Igreja dos séculos III ao IX, que esteve governada de tal maneira que as Igrejas locais (ou nacionais) se autogovernavam mediante os sínodos ou concílios locais ou nacionais. Sínodos que eram presididos pelos bispos de cada região ou de cada país”. A reflexão é do teólogo espanhol José María Castillo, em artigo publicado no sítio espanhol Religión Digital, 07-03-2015. A tradução é de André Langer.
Fonte: http://bit.ly/1E44g4Z |
Eis o artigo.
O professor Alvaro Restrepo, jesuíta colombiano, companheiro meu nos anos de estudo na Universidade Gregoriana de Roma, escreveu o seguinte no Anuário dos Jesuítas de 2014: “O Vaticano é uma ilha. Por isso, quando tanta gente de boa vontade diz que a Igreja precisa de um bom Papa, não se refere ao fato de que o novo Pontífice seja conservador ou progressista, de direita ou de esquerda”.
E acrescentava: “O que importa é que seja um homem livre e decidido. A Igreja precisa de um homem tão apaixonado pelo Evangelho, que desconcerte todos quantos no papado buscam um homem de poder e de comando. O Papa deve ser desconcertante. No dia em que o Vaticano for o ‘ponto de encontro’ de todos os sofredores, nesse dia a Igreja terá encontrado o bom Papa de que necessita” (José María Castillo antes da eleição do Papa Francisco).
Passaram-se dois anos desde que o jesuíta Jorge Mario Bergoglio foi eleito como o sucessor do Papa Bento XVI, que renunciou ao cargo. E todo o mundo está vendo que o novo Papa não se ajusta ao modelo convencional e tradicional de exercer o papado que foi se impondo na Igreja desde tempos remotos. Como é lógico, quando se produz uma mudança tão importante em uma instituição tão grande como a Igreja, há pessoas que estão de acordo com a mudança. Da mesma maneira que há também muitíssimas pessoas que são contrárias a essa mudança. Em todo o caso, há algo que é inquestionável. Refiro-me ao fato de que se o pontificado do Papa Francisco durar mais alguns anos e se conseguir configurar o número de cardeais eleitores de forma que o futuro papa prolongue as incipientes reformas que Francisco está colocando em marcha, o mais provável é que a Igreja que teremos, dentro de uma ou duas décadas, será muito diferente de como é agora.
Não se trata de que nem este papa nem os que vierem depois vão mudar o que nenhum papa pode mudar. Um papa não pode mudar a seu capricho os dogmas da fé, as verdades da “fé divina e católica’, sobre as quais descansa a estabilidade e o próprio ser da Igreja. Isso não vai acontecer. Mas o que sim está acontecendo é que na Igreja há muitas pessoas que, por ignorância ou por fanatismo, pensam que são dogmas de fé muitas coisas que não o são. E caso se tratar de coisas que não são dogmas de fé, um papa pode mudá-las. Tudo o que são costumes, tradições (não a Tradição), normas, questões jurídicas e legais, etc., etc., um papa pode modificá-las. E algumas (ou muitas) delas não apenas “pode”, mas “deve” fazer o que estiver ao seu alcance para mudá-las, em assuntos que redundem no bem da Igreja e de muitas pessoas no mundo.
Vou dar um exemplo. Pode acontecer que um papa seja menos “teológico-especulativo” que seus antecessores. Mas, se esse déficit for suprido com o fato de que o papa seja mais “pastoral-próximo” das pessoas, sobretudo das pessoas simples (doentes, anciãos, crianças, pobres...), por que vamos fazer de semelhante mudança na forma de exercer o papado um problema? Além disso, não se poderia pensar que um papa próximo dos mais simples e das pessoas humildes seja, por isso mesmo, um homem evangélico? E vamos nos escandalizar com isso? Mais ainda, pode-se assegurar tranquilamente que Jesus – o Jesus apresentado nos Evangelhos – não fez teologia? Acontece que no Novo Testamento encontramos dois modos (ou modelos) de fazer teologia. Uma coisa é a “teologia especulativa” de Paulo. E outra coisa é a “teologia narrativa” dos Evangelhos.
Dito isso, o que agora está acontecendo na Igreja é que o Papa Francisco está recuperando, com sua simples espontaneidade e sua forma de viver, a enorme força do relato (a teologia narrativa). Sobretudo quando esse relato responde aos desejos, carências, necessidades e buscas das pessoas mais simples, que não sabem de teologia nem conseguem acompanhar as especulações dos grandes mestres do pensamento.
Fonte: http://bit.ly/1E44g4Z |
Pois bem, como é lógico, o que acabo de indicar tem tantas e tantas aplicações para o que vem acontecendo na Igreja e no mundo, que é impossível abarcar todas as consequências. Por isso, vou me limitar a uma dessas possíveis consequências, porque me parece que assim tocamos um dos temas mais importantes (e mais urgentes) no empenho para renovar a Igreja. Refiro-me ao tema da “sinodalidade da Igreja”.
Neste momento, nos ambientes próximos à cúria romana, fala-se com frequência de um projeto fundamental que está sendo determinante para o governo da Igreja, assim como o entende o Papa Francisco. Trata-se da “reforma do papado” ou, para dizê-lo com maior precisão, da chamada “conversão do papado” (Marco Politi, Francesco tra i lupi. Il segreto di una rivoluzione. Bari: Laterza, 2014, p. 146). Esta reforma terá como componente fundamental o projeto de recuperar para o governo da Igreja, a “sinodalidade”. Assim já o havia indicado o próprio Francisco na entrevista que concedeu ao diretor da revista La Civiltà Cattolica.
O que é uma Igreja sinodal? Como é do conhecimento de todos, esta expressão não se refere ao fato de que, a cada dois anos, o papa convoque um sínodo em Roma para debater um tema teológico mais ou menos importante. “Igreja sinodal” foi a Igreja dos séculos III ao IX, que esteve governada de tal maneira que as Igrejas locais (ou nacionais) se autogovernavam mediante os sínodos ou concílios locais ou nacionais. Sínodos que eram presididos pelos bispos de cada região ou de cada país.
A teologia desta forma de governo da Igreja foi sabiamente formulada por Santo Isidoro de Sevilha no Ordo de celebrando concilio, redigido pelo próprio Isidoro, para o IV Concílio de Toledo (633), um texto que teve uma ampla difusão no Ocidente (Yves Congar, L'ecclésiologie du Haut Moyen-Age. Paris: Cerf, 1968, 131-138). Além disso, sabemos que houve bispos e teólogos, amplamente reconhecidos na Igreja daqueles séculos, como é o caso de Hinkmaro, Benedictus Levita ou o autor de Pseudo Decretais, para quem o papa era inclusive obrigado a observar os cânones dos sínodos e a exercer sua autoridade de acordo com as decisões destes sínodos (K. F. Morrison, The two Kingdoms. Ecclesiology in Carolingian political thought. Princeton: Princeton University Press, 1964, 71-98).
O que acabo de indicar pode parecer estranho ou inclusive escandaloso para não poucos católicos, que conhecem da Igreja e do papado apenas o que se vê e se ouve nos últimos tempos. Mas as coisas nem sempre foram dessa maneira. Vou dar um exemplo que é eloquente por si mesmo. No outono do ano 254, o grande bispo de Cartago, São Cipriano, teve que resolver, em um sínodo, reunido na mesma Cartago, o problema apresentado pelos fiéis de três dioceses espanholas. Tratava-se das dioceses de León, Astorga e Mérida.
Nestas dioceses, os bispos fraquejaram diante da perseguição de Dioclesiano. Os três bispos não confessaram sua fé e, diante de tamanha covardia, as comunidades os depuseram de seus cargos. Um destes bispos, um certo Basílides, acorreu a Roma, ao Papa Estevão, seguramente com uma informação não inteiramente objetiva. O papa determinou que fosse reconduzido ao cargo, o que indignou os fiéis, que, por sua vez, acudiram a Cipriano. Este reuniu um concílio local para resolver o problema. A resolução está perfeitamente documentada e chegou até nós na carta 67 de Cipriano, que, além disso, está assinada pelos 37 bispos que participaram do concílio. Parece, portanto, que esta forma de governo da Igreja já estava bastante difundida e aceita no século III.
Sendo assim, o que aqui interessa é saber que a carta sinodal daquele concílio de Cartago afirma três coisas:
1) O povo tem poder para escolher os seus ministros, concretamente o bispo (Cipriano, Epist. 67, IV, 1-2).
2) O povo tem poder para tirar o bispo quando este se comportar de maneira indigna (Cipriano, Epist. 67, III, 2).
3) O recurso a Roma não deve mudar a situação, porque esse recurso foi feito sem ater-se à verdade e sinceridade que estas decisões requerem (Cipriano, Epist. 67, V, 3) (cf. José M. Castillo, La alternativa Cristiana. Salamanca: Sígueme, 1978, 192-193).
É evidente que tudo isto indica uma mentalidade segundo a qual a Igreja tinha seu centro mais na comunidade do povo fiel do que no clero e na hierarquia. É importante saber que no tempo dos Padres e em toda a Alta Idade Média os sínodos repetiam frequentemente o critério formulado pelo Papa Celestino I: “nullus invitis detur episcopus” – “nenhum bispo será imposto a quem não o aceitar”. Para nomear um bispo requeria-se a aceitação e o desejo do clero e do povo: "Cleri, plebis et ordinis, consensus ac desiderium requiratur" (Celestino I, Epist. IV, 5. PL 50, 434 B). E consta que este critério vigorou até o século XI, como consta no Decreto de Graciano (c. 13, D. LXI. Friedberg, 231. Cf. J. A. Estrada, La identidad de los laicos. Madrid: Cristiandad, 1990, 128).
Evidentemente, a Igreja nunca perdeu a ideia e o sentimento do primado papal. De forma que o bispo de Roma intervinha na solução dos assuntos mais graves ou que não podiam ser decididos em nível local. Além disso, sempre se teve a convicção segundo a qual “o papa tem a autoridade de Pedro se tem a fé, a justiça e os costumes de Pedro”. Uma convicção mantida e difundida pelos papas, bispos e teólogos da Alta Idade Média (Y. Congar, o. c., 162-163).
A partir destes critérios, e mediante esta forma de governo, a Igreja daqueles séculos manteve-se fiel à fé em Jesus o Senhor, fiel ao Evangelho e fiel à sua missão no mundo. E enquanto se manteve assim, pôde influir decisivamente na cultura, nos costumes e na vida dos povos e das pessoas daqueles tempos. Foi uma Igreja que teve uma presença e uma força que hoje já não tem. Uma presença e uma força que o Papa Francisco quer, a todo custo, recuperar. Não para ganhar poder e prestígio, mas para ajudar a humanizar o “mundo descontrolado” (Anthony Giddens) em que atualmente vivemos.
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“O Papa deve ser ao mesmo tempo desconcertante e ‘ponto de encontro’”. Artigo de José María Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU