06 Mai 2014
O desafio da revolução de Francisco será jogado nos próximos anos. O desembocadouro poderá ser, para a Igreja, um New Deal como o de Roosevelt ou um terremoto como a perestroika de Gorbachev. "Iniciamos uma nova etapa na Igreja", são as suas palavras reveladas pelo amigo teólogo Victor Manuel Fernández.
Publicamos aqui um trecho do livro do jornalista italiano Marco Politi, intitulado Francesco tra i lupi (Ed. Laterza, 2014). O texto foi publicado no jornal Il Fatto Quotidiano, 03-05-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Dois papas no Vaticano. E no horizonte se perfila um pontífice temporário. O Papa Francisco não tem muito tempo para a sua revolução. Na Argentina, onde muitos tinham intimidade com ele e têm menos temor reverencial, vários expoentes religiosos evidenciam que os anos à sua disposição não são muitos.
O padre Ignacio Pérez del Viso, seu antigo professor, afirma que o pontífice "se dá conta de que não tem diante de si um papado de 20 anos. Ele sente a pressão das reformas, que ele deve implementar dentro de três ou quatro... Ele deve agir enquanto sentir o apoio das pessoas".
A abdicação de Ratzinger mudou completamente a fisionomia do papado. Não se é mais pontífice para sempre. No dia seguinte à sua renúncia, o ex-ministro das Relações Exteriores vaticano, o cardeal Giovanni Lajolo, observava: "A decisão de Bento XVI valerá como precedente também para os seus sucessores".
O ex-porta-voz de Bergoglio, padre Marcó, dissera no rádio: "Depois do gesto de Bento, não pareceria estranho se Francisco renunciasse, depois de ter feito o que pensava que devia fazer".
A um ano da eleição, o papa ainda está bastante sozinho dentro da estrutura eclesiástica. Isso explica a sua extraordinária determinação. Ele goza de um consenso muito amplo entre os fiéis e na opinião pública agnóstica e não crente, mas na Cúria não se manifesta, por enquanto, um forte partido pró-Bergoglio. Ao contrário, há quem espere que o papa argentino seja uma exceção transitória.
Não existe na Igreja um movimento organizado de apoiadores da sua revolução. O associacionismo católico até agora permaneceu parado, enquanto nos tempos de João Paulo II eram visíveis a presença e a pressão de movimentos como o Opus Dei e o Comunhão e Libertação, ativamente inclinados em favor do programa do papa polonês.
Um papa obtém obediência quase absoluta quando age ao longo dos trilhos da tradição. Se, ao invés, quer mudar e reformar, são infinitos os modos grandes e pequenos de lhe opor obstáculos. João XXIII encontrou resistências abertas e subterrâneas ao seu projeto reformador. O monge-teólogo Enzo Bianchi considera o pontificado de Francisco como uma "segunda primavera", mas não esconde o medo de que a dinâmica possa ser bloqueada. Os setores conservadores apontam para o desgaste do papa argentino, alavancam a fadiga que pode surgir com a repetição das suas exortações. Difundem o temor de que Francisco está construindo uma "outra Igreja", saindo dos trilhos da tradição, da doutrina e da reta interpretação da palavra de Deus.
"O senhor está nos desconcertando e não sabemos mais onde é o nosso bairro e onde, ao invés, é o fronte inimigo", escreveu-lhe Lucrecia Rego de Planas, ex-diretora da edição espanhola do Catholic.net no México.
Os críticos dentro do aparato curial criticam Francisco por criar comissões e comitês demais, por se mover de maneira solitária, por não se concentrar em poucos objetivos, por não expressar uma visão teológica estruturada, por falar demais, por ceder demais aos gostos da multidão.
Há quem se rebele contra a ideia de que Francisco diminui a "sacralidade da pessoa papal". Quando Francisco condena a fofoca e a circulação de calúnias dentro dos aparatos, ele pensa nos sabotadores que falam em voz baixa. "Gostaria de morrer católico, e espero que Bergoglio deixe ao sucessor a possibilidade de ser papa!", é a frase exasperada de um monsenhor hostil às reformas. Não se deve subestimar nem mesmo a oposição inerte daqueles que na Cúria estão incertos em relação ao seu futuro e ao seu papel, e sentem que a estabilidade dos ditames tradicionais vacila.
Ao lado dos padres e prelados que admiram Francisco, há quem liquide com desencanto as suas palavras, especialmente sobre o tema da pobreza. Há uma rede subterrânea de interesses ramificados, que olha com suspeita e incômodo para as reformas.
O Papa Francisco sente desgosto pela corrupção dos corações. "Todos somos pecadores, mas nem todos corruptos", declarou ele em uma reunião de superiores das ordens religiosas. "Aceitam-se os pecadores, não os corruptos", que devem ser expulsos de seminários e institutos, reitera o pontífice. E as obras da Igreja devem ser geridas com pobreza de coração, sem que o padre se identifique, anulando-se, com a mentalidade de um empresário.
Palavras que parecem ressoar em um deserto. "Na Cúria, a resistência está crescendo", admite um curial. A reação do pontífice ora é tingida de humorismo, ora se faz pensativa. "Fizeram-me um gol do meio-campo", comenta ele, quando lhe organizam alguma nomeação pouco convincente. Diante das tensões subterrâneas, a sua reação é serena: "O demônio se agita... estamos no bom caminho".
Na missa com os novos cardeais, criados no consistório de fevereiro, ele advertiu que o Vaticano não é uma corte: "Ajudemo-nos a evitar intrigas, fofocas, corjas, favoritismos, preferências". Terminado o rito, o pontífice exortou para se trabalhar pela "unidade" da Igreja, pronunciando a palavra quatro vezes de uma vez só. É um sinal de alerta.
O que contribui para um certo "estar sozinho" de Francisco é a complexidade do seu caráter. O papa, que encoraja a participação na Igreja, tão compañero dos seus padres em Buenos Aires, amável com os fiéis, privadamente, conserva uma solidão própria. Uma personalidade vaticana, que o conhece há anos, diz sobre ele: "De Santo Inácio, escreveu-se que ele observava uma 'distância cordial' em relação aos outros. Jorge Mario Bergoglio, à sua maneira, é assim. E isso lhe dificulta construir uma equipe em torno dele".
As missas matinais em Santa Marta diante de grupos de fiéis nascem da necessidade de não perder, como padre, o contato direto com o povo de Deus ao redor da eucaristia. O rito se desenrola em uma extrema essencialidade. Durante a consagração, quando segura a hóstia elevada, Francisco a olha fixamente, com uma extraordinária intensidade. Não há nada em torno dele. Poderia ser em qualquer lugar. Celebrando a eucaristia no deserto como Teilhard de Chardin ou em um campo de concentração dos totalitarismos do século XX.
Embora ele tenha um programa, Francisco, na realidade, ignora o porto ao qual irá chegar. "Fazer as pequenas coisas de todos os dias com um coração grande e aberto a Deus e aos outros... dentro de grandes horizontes" é a sua bússola. Para aqueles que estão convencidos de que mudanças e reformas podem ocorrer rapidamente, Francisco opõe a ideia de que é preciso tempo para preparar uma mudança autêntica. Nasce daí o sentimento de calma que o acompanha, enquanto ele trabalha sem pausas – nada de férias, nada de excursões pela natureza como Wojtyla ou passeios nos jardins vaticanos como Ratzinger.
Francisco chegou ao fim do primeiro ano de pontificado com o rosto marcado pelo cansaço. Às vezes, tem os olhos inchados de fadiga, e atingem-no momentos de fraqueza. "O trabalho é muito, mas estou contente", confidenciou ele a um conhecido argentino.
A sintonia extraordinária que se criou entre ele e os fiéis representa o escudo contra as críticas e as tácitas sabotagens em curso nos aparatos eclesiásticos. "Esse pontificado dará muitas surpresas", prevê o cardeal Tauran. O desafio da revolução de Francisco será jogado nos próximos anos. O desembocadouro poderá ser, para a Igreja, um New Deal como o de Roosevelt ou um terremoto como a perestroika de Gorbachev. "Iniciamos uma nova etapa na Igreja", são as suas palavras reveladas pelo amigo teólogo Victor Manuel Fernández.
Se conseguir transformar os Sínodos dos bispos em instrumento de coparticipação no governo papal, torná-los pequenos concílios onde se identifica a rota da Igreja no mar da modernidade – envolvendo também, no futuro, o povo dos fiéis –, a revolução de Bergoglio se tornará irreversível.
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Francisco entre os lobos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU