Por: André Langer | 22 Julho 2024
Inácio de Loyola faz um itinerário purificador dos desejos que começa pelo “desejo sem discernimento” (apunhalar o Mouro), passando pelo “desejo voluntarista de fazer penitências” com igual ou maior intensidade que os santos, para chegar no “desejo-vontade-querer ser pobre, já não como penitência, mas porque Jesus viveu dessa maneira. O desejo converge para Jesus. Desejo de ajudar os outros, a cuidar dos doentes e necessitados, porque Jesus curava, pregava”.
Este é, de maneira sintética, o itinerário vivencial e espiritual de Inácio de Loyola no caminho de purificação dos desejos traçado por Carlos James dos Santos na reflexão que fez em atividade do Cepat.
Mas este itinerário necessita do discernimento: “O discernimento tem o sentido de purificar os desejos, mobilizá-los, acolhê-los, para que desejem o verdadeiro objeto que é o amor e o seu verdadeiro sujeito, que é identificar-se com Jesus”, diz.
Carlos James, jesuíta, é mestre em Antropologia pela Unicamp e tem longa experiência com a educação popular e a prática dos Exercícios Espirituais.
A atividade do CEPAT contou com o apoio e a parceria do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, das Comunidades de Vida Cristã - CVX, Regional Sul, e do Projeto Diversitas, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá.
Atividade - Rezar com os Místicos: O desejo em Inácio de Loyola
Carlos inicia sua reflexão dizendo que não se apresenta como um especialista no tema dos desejos em Inácio, mas como peregrino. “É como peregrino que eu me aproximo de Inácio de Loyola e olho a sua história, assim como o seu legado”.
Carlos expõe a sua motivação: “Aproximando-me de Santo Inácio, poder ajudar a todos que nos acompanham a fazer uma leitura compreensiva dos desejos, da sua importância e de valorizá-los. Eles são para serem conhecidos, cuidados, acolhidos e amados”. Aqui está a grande chave da espiritualidade inaciana, que é trabalhar os desejos. E o cultivo dos desejos é para “atingir uma unidade existencial e de fé entre o desejo, a vontade e o querer na peregrinação da vida”. E cuidar dos desejos é, para Carlos, “algo extremamente importante”.
Carlos parte do significado etimológico do latim que mostra a relação entre o desejo e as estrelas. “As estrelas, ao despertarem em nós o desejo, nos revelam algumas dimensões muito importantes. O desejo precisa ser orientado, não negado, nem reprimido. Todo desejo é para ser acolhido e precisa ser orientado. Os Magos são um exemplo espetacular disso. Em sua vida, os Magos conseguiram unificar o desejo, a vontade e o querer numa única direção. E isso os leva até Jesus. Por isso, as estrelas têm a ver com o desejo”.
O desejo também se polariza na perspectiva do numinoso, no sagrado. O desejo tem uma dimensão de sagrado. Na perspectiva de Rudolf Otto, o numinoso “polariza numa única experiência o fascínio e o temor”.
Há, em terceiro lugar, segundo Carlos, uma grande similaridade entre o nosso desejo e a mente. “O desejo, assim como a mente, tem elasticidade e plasticidade: a flexibilidade de mudar de uma coisa para a outra e a plasticidade de assumir o conteúdo do objeto do desejo”.
Em quarto lugar, o desejo encontra o seu verdadeiro sujeito. “O verdadeiro objeto do nosso desejo é um sujeito, na verdade é Deus. O verdadeiro objeto do desejo é o Amor. O que realmente desejamos é amar e ser amados. Muito além de uma compreensão do desejo que deseja a felicidade”.
Assim como Inácio, Carlos James recorre a um preâmbulo, entendendo-o como “o que antecede as coisas definitivas”. Traz o preâmbulo das dez jovens, cinco das quais eram previdentes e as cinco outras eram descuidadas (Mt 25,1-12). Carlos confessa que demorou para entender o sentido desta parábola. Baseando-se nos comentários de William Barclay, avança na sua interpretação, dizendo que “não se deixa para a última hora decisões importantes na vida”. Outra dimensão é que “não se empresta de outro a relação com Deus e a vida espiritual: cada um precisa possuir em sua vida essa relação e vivência de fé”. Em terceiro lugar, “não se pode emprestar nem pedir emprestado o desejo. O desejo de Deus só Deus pode nos dar”. Ou seja, “não tem como transferir para o outro o desejo”, remarca Carlos.
“O desejo, diz Carlos, é uma força da alma que mobiliza os afetos e a vontade rumo a uma decisão, a um sentido único para a vida verdadeira”. A raiz etimológica de desejo é desideratio (de-sidus), que vem das estrelas. As estrelas revelam os nossos desejos e a vocação dos desejos. As estrelas provocam em nós os desejos, fazem com que se manifestem, que venham à tona. Neste contexto, retoma a passagem dos Magos, que são para nós “os arquétipos de que os desejos devem ser orientados, conhecidos, amados. E seguir a estrela é unificar desejo, vontade e querer”.
Há também uma outra palavra em latim que significa desejo, que é desiderium – desejo (do que foi perdido, falta do que não está mais presente). Remete ao nosso sentimento de saudade. Tem a ver com o que se perdeu, mas também com desejar, esperar, buscar.
Para fazer a relação com o itinerário vivencial e espiritual de Inácio, Carlos recorre ao n. 11 da Autobiografia de Inácio de Loyola, onde se diz: “Parte do tempo gastava-o a escrever, outra parte na oração. E a maior consolação que recebia era contemplar o céu e as estrelas, o que fazia muitas vezes e durante muito tempo, porque com aquilo sentia em si uma grande vontade de servir nosso Senhor”. Carlos sugere que o final poderia ser mudado: “sentia em si uma grande vontade de amar e servir nosso Senhor”, o que estaria em perfeita sintonia com a experiência de Inácio.
O desejo está polarizado pelo sagrado. Da mesma maneira que a nossa consciência, o desejo se deixa polarizar pelo sagrado. Sempre na perspectiva de Rudolf Otto, “ao mesmo tempo, uma determinada realidade aparece como numinosa e com um sentido de sagrado quando causa em nós fascínio e pavor”. Citando Rollo May (Poder e inocência) e René Girard (A violência e o sagrado), diz que “a violência também tem uma dimensão de sagrado”.
Para ilustrar o que está dizendo, toma o exemplo do ataque às Torres Gêmeas, em setembro de 2001. “Todos os que puderam acompanhar o acontecimento pela TV, perceberam que as emissoras de TV reproduziram, não centenas, mas milhares de vezes a cena desta segunda aeronave que se choca contra a segunda torre com as asas inclinadas”.
O que se percebe neste evento? “Por que as emissoras passaram o dia inteiro transmitindo as imagens? E todo mundo dizendo: ‘nossa, que terror!’, ‘que coisa horrível’. Essa é a dimensão que causa terror na perspectiva do sagrado. Mas há nisso também um fascínio dissimulado, escondido, oculto”. A repetição se deve a que se trata literalmente “de um espetáculo. É um show de Hollywood ao vivo e a cores, real, sem efeitos especiais, de verdade. O que antes era ficção torna-se agora realidade”. “Imagina, então, transmitir um espetáculo ao vivo que causa fascínio em todos os espectadores”.
Inácio, prossegue Carlos, no início da sua conversão, viveu algo disso, “do desejo polarizado por um aspecto do sagrado que o conecta com a violência”. A sua identidade principal é a de um cavaleiro medieval e sua conversão vai significar a renúncia ao universo em que ele vivia antes, mas “não perde o fato de ser um cavaleiro e que Jesus e a Trindade Santa vão assumir este cavaleiro a serviço de outro senhor, de outra causa e mantendo o espírito de aventura deste cavaleiro”.
No início da conversão há um episódio muito interessante que aparece na Autobiografia, que é o encontro com o Mouro. Inácio estava montado em uma mula e se aproxima dele um Mouro que vinha montado, provavelmente, em um cavalo. Inácio fica incomodado com o comentário que o Mouro faz. O Mouro admite a virgindade de Maria, mas não consegue crer nisso durante e depois do parto. Aqui, “o desejo mobiliza sua vontade e seu querer, mas, ao mesmo tempo o divide, o deixa em dúvida”.
Diz a Autobiografia (n. 15) a este respeito: “E de repente sentiu umas moções que produziam descontentamento na sua alma, parecendo-lhe que não tinha feito o seu dever, e causaram-lhe também indignação contra o mouro, parecendo-lhe que tinha feito mal em consentir que um mouro dissesse tais coisas de Nossa Senhora, e que era obrigado a defender a sua honra”.
E prossegue o texto: “E assim vinham-lhe desejos de ir atrás do mouro e dar-lhe punhaladas por aquilo que tinha dito. E perseverando muito no combate a estes desejos, no fim ficou na dúvida, sem saber a que era obrigado. O mouro, que se tinha adiantado, tinha-lhe dito que ia a um lugar que estava um pouco adiante no seu mesmo caminho, muito próximo do caminho real, mas que este caminho não passava por lá”.
“E assim depois de cansado de examinar o que seria bom fazer, não encontrando coisa certa a que se determinasse, resolveu deixar ir a mula com a rédea solta até ao lugar onde se dividiam os caminhos. E que se a mula fosse pelo caminho da vila, ele buscaria o mouro e lhe daria punhaladas; e se não fosse em direção à vila, mas pelo caminho real, não lhe faria nada” (n. 16).
Atividade - Rezar com os Místicos: O desejo em Inácio de Loyola
Aqui aparece, segundo Carlos, “o desejo que não tem clareza, não tem discernimento, na perspectiva do sagrado que se manifesta na violência”. No caso, “a mula tomou o caminho certo, e não o discernimento dele, que está num processo de amadurecimento, o que ele fará com o tempo e culminará num grau bastante elevado de sofisticação, por exemplo, nas regras de discernimento”.
Em síntese, “o discernimento tem, pois, este sentido de purificar os desejos, mobilizá-los, acolhê-los, para que desejem o verdadeiro objeto que é o amor e o seu verdadeiro sujeito, que é identificar-se com Jesus”.
Para Inácio, “os Exercícios Espirituais são não apenas uma escola de oração, mas fundamentalmente uma escola dos desejos”. A santidade, pois, consiste em “permitir que o amor e a graça de Deus pudessem trabalhar nele os desejos”.
A elasticidade e a plasticidade tanto da mente como dos desejos são muito importantes para entender tanto o processo de Inácio como o nosso de quando nos aproximamos da experiência de Inácio, porque “os Exercícios Espirituais são a tradução do legado da experiência de Inácio que torna disponível para nós fazermos o mesmo itinerário”, a mesma peregrinação de fé e espiritual que ele fez pela graça de Deus.
“A elasticidade mantém a flexibilidade da mente, e o desejo tem esta flexibilidade de mudar, de desejar algo que era extremamente importante e depois descobrir que não, que o que é para ser desejado está em outra direção”. A plasticidade consiste, portanto, nessa “capacidade de mudar o objeto do desejo”.
“Pensar a dimensão do desejo em Inácio é se confrontar com o que ele se confrontou. O desejo nos mobiliza para peregrinações longas e travessias difíceis na purificação dos desejos”. Às vezes, “a peregrinação ganha uma intensidade maior, que eu chamo de travessia. A travessia exige um empenho maior do desejo, da vontade e do querer continuar indo adiante. E toda travessia vai ter sempre um confronto. Confrontar-se com a sua própria verdade para avaliar o ir adiante. Toda travessia demanda deixar algo para passar para a outra margem. Fazer a travessia é sempre exigente”.
Inácio precisou não só peregrinar, mas fazer várias travessias. Neste sentido, torna-se emblemática a experiência de Inácio com o Mouro e a mula, quando ele sofre a “ausência de um verdadeiro discernimento”, e que ele vai transpor depois em regras – nunca agir sob o efeito da emoção. “Precisa ver qual espírito está movendo a vontade. Ou seja: o desejo está sendo provocado por qual espírito? No início de sua conversão, havia muito de voluntarismo, próprio de um soldado corajoso, habilidoso e inteligente”.
Carlos enfatiza que “o nosso desejo deseja encontrar a alegria”. Mas onde esta alegria realmente se encontra? De acordo com João (16,22): “Nada vos tirará a alegria”. Então, qual é a fonte desta alegria? “A alegria vem de ter sido encontrado por Deus na sua graça e de ter feito a experiência de ser amado. Inácio vai fazendo esta experiência até se dar conta de que é realmente amado e perdoado por Deus”.
O desejo em Inácio vai fazendo este percurso de peregrino que anda em cima da mula, “pois ainda não tem discernimento e não consegue entender o que é o discernimento. Depois começa a discernir, mas de forma voluntarista, o que vai levá-lo a fazer terríveis penitências e sem encontrar a paz, e a viver com muitos escrúpulos”.
Por fim, vai viver uma experiência da pura e total gratuidade do amor de Deus às margens do rio Cardoner. “Esta foi para ele uma experiência de uma grande iluminação interior, um conhecimento dos mistérios de Deus e que preencheu o seu coração de tal forma que vai lhe dar firmeza para ir adiante e fazer todas as travessias na sua peregrinação de fé e de amor”.
A partir desta experiência, diz Carlos, “tudo lhe pareceu novo, razão pela qual vai querer buscar e encontrar, através da oração, Deus em todas as coisas”.
A grande narrativa dos desejos de Inácio são os Exercícios Espirituais. “Toda a sua experiência está por trás de cada palavra, de cada enfoque, de cada dimensão”. Mas é mais do autobiográfica, porque é “caminho para nós trabalharmos os nossos desejos, conhecê-los, identificá-los, aprender a ambiguidade que há neles. E mesmo quando somos movidos com a reta intenção de cumprir a vontade de Deus Inácio põe tudo sob suspeita, o que faz com que os desejos sejam cada vez mais purificados”.
Concluindo, encontramos em Inácio uma “espiritualidade para trabalhar os desejos, ao invés de negá-los. Os desejos são extremamente importantes e merecem ser cuidados, porque Deus está no coração dos desejos”.
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