19 Junho 2021
"Esse é basicamente o mais novo desejo dos desejantes contemporâneos, às vezes disfarçado com tremor, às vezes revelado com ousadia. É o desejo de Deus. Simplesmente, unicamente, o desejo de Deus", escreve Marco Ventura, professor de Direito canônico e eclesiástico da Universidade de Siena, em artigo publicado por La Lettura, 13-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um século se passou desde os escritos de Knight Dunlap. Na década de 1920, o psicólogo estadunidense dedicou páginas claras à relação entre desejo e religião. É justamente na busca pela satisfação dos desejos e nos relativos insucessos que a religião encontraria a sua origem. “A única teoria sobre religião que hoje parece ter valor como hipótese científica de trabalho”, escreve Dunlap em 1926, “é a teoria de que a religião tenha a sua origem e sustento na insatisfação com a vida”. Tal insatisfação, Dunlap explica, empurra o homem "a refletir sobre o fracasso da vida em satisfazer os desejos humanos primários". A razão de ser da religião deve, portanto, ser buscada no desejo de alimento, abrigo, proteção, descanso, atividade, progênie, gratificação sexual, e novamente no desejo de conformidade e preeminência, ou seja, na falta de obter satisfação do desejo e na capacidade humana de refletir sobre o fracasso.
Em uma obra de 1946, três anos antes de sua morte, o psicólogo recapitula sua pesquisa sobre o "papel do desejo na religião": o desejo cria a religião e, consequentemente, a evolução do desejo muda a forma da religião, determina seu desenvolvimento, sua renovação. A geração que se formou no final do século XIX, portanto, estabelece as bases para a abordagem da relação entre desejo e religião no pensamento ocidental moderno. Quanto mais a religião é desejo, quanto mais se desenvolve em resposta ao desejo, mais se revela a ausência de Deus, pois é o próprio desejo que constitui a religião, invenção humana, e não uma divindade outra do homem. O "papel do desejo" é produzir a religião justamente enquanto produz a ilusão de que Deus existe.
Um século depois, em um mundo profundamente mudado, a abordagem de Dunlap já parece ultrapassada. A psicologia da religião e seus desenvolvimentos científico-tecnológicos agora estendidos às neurociências e à inteligência artificial nutriram ainda mais uma ciência da religião fundada no pressuposto da inexistência de Deus. No entanto, aqueles que esperavam que o pensamento científico levasse a um desejo humano emancipado do divino, por enquanto estão desapontados. Enquanto os crentes aprenderam a conviver com uma psicologia secular do desejo, as tentativas de encontrar alternativas se multiplicaram nas últimas décadas.
Em alguns casos, tornou-se explicita uma visão antagônica, como na rejeição da psicanálise por parte da Igreja da Cientologia. Noutros casos, foram traçados percursos de conciliação, como nas tentativas de síntese entre religião antiga e religiões orientais ou num cristianismo repensado "entre desejo e realidade", como sugerido em 1981 pelo subtítulo do livro fundamental dedicado por André Godin à Psicologia das experiências religiosas (Queriniana, 1983). Por isso, muitas razões justificam a decisão dos organizadores de dedicar a edição de 2021 da Torino Spiritualità aos “Desejantes”. Um século de história do “papel do desejo na religião” encontra os 16 anos de história do festival e relembra o seu início, em 2005, quando a primeira edição foi significativamente intitulada Perguntas a Deus, perguntas aos homens. Desde então, a Torino Spiritualità tem trazido o projeto de se constituir como laboratório do religioso contemporâneo para além das distinções entre crentes conservadores e progressistas, crentes e não crentes, religiosos e não religiosos.
Esta edição dedicada ao desejo assinala a consolidação do projeto, a sua maturidade, pois só um laboratório especializado e equipado, cem anos depois de Knight Dunlap, pode se permitir olhar para as pessoas que creem como desejantes. Para navegar nas águas turbulentas do novo desejo, o curador Armando Buonaiuto escolheu as velas das emoções mais fortes - "impulsos, anseios, carências", diz o subtítulo da edição de 2021 - e o leme da tradição bíblica católica, resumida em quatro frases chave que de 17 a 20 de junho serão confiadas à interpretação de Enzo Bianchi, Alberto Maggi, Fabio Resini e a ganhadora do Prêmio Pulitzer Marilynne Robinson.
“Não se prive de um dia feliz”, escreve Jesus, filho de Sirach, no Eclesiástico, “nem deixe escapar um desejo legítimo”. Duas vezes a voz de Jesus de Nazaré ressoa nos Evangelhos, convidando-nos a falar com o Pai, "pedi e vos será dado", e perguntando aos discípulos do Batista "o que procurais?". Finalmente, na Epístola aos Romanos, o apóstolo Paulo escreve: “Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço”.
No estilo da Torino Spiritualità, os quatro textos não excluem outras tradições religiosas, ao contrário, as evocam e as mobilizam, enquanto buscam significados universais no cerne de uma tradição. Assim, desfilam a relação com o outro a quem o desejo é confiado, o discernimento do que é justo desejar, a busca, a contenção e mesmo a negação do desejo.
A navegação prossegue em quatro direções: acima de nós, busca-se o reconhecimento da falta, da incompletude e do anseio pela perfeição, pela transcendência; atrás de nós, o desejo é o nosso passado, a nossa história, o mundo desenhado até hoje por aquilo que desejamos; dentro de nós está a intimidade do que eu realmente desejo e ao mesmo tempo a medida da abertura ao desejo do outro, isto é, a dobra e a extensão, o fechamento e a abertura; enfim, diante de nós está o horizonte do desejo, precisamente "impulso", perspectiva e, portanto, assunção ou recusa de responsabilidade.
Assim, os crentes desejantes se fundem no mar dos desejos de todos e estão como todos às voltas com os mais antigos dilemas e as mais novas exigências do desejar. O renovado interesse pelo desejo é testemunhado por dois encontros que ocorrem em uma sugestiva coincidência com aquele sobre os Desejantes da Torino Spiritualità. No Monk de Roma, o Festival de Filosofia 2021 é dedicado ao desejo, que irá investigar em vários encontros a estética, a política, a hermenêutica, a ética e a história do desejo. O festival Le Conversazioni também convida os participantes que proferirão palestras em Roma, Capri e Nova York a interpretar o tema Desejo.
Se o espaço de Deus está em discussão entre os novos desejantes, e precisamente por isso, levanta a voz aquele que exclui o sentido de um desejo sem religião. A fundação que leva o nome do conservador cristão John Templeton alocou 150 mil dólares para um projeto de pesquisa sobre o desejo de Deus. Lançado em setembro de 2019, o projeto da Universidade de Roehampton de Londres chega ao fim em 1º de julho. Os estudiosos Fiona Ellis, Clare Carlisle e John Cottingham invertem a perspectiva de Knight Dunlap. Se para Ellis o caminho dos desejos é "a forma humana de perceber o divino", se para Carlisle a relação de reciprocidade entre "desejo religioso" e "prática religiosa" é fundamental para a compreensão da experiência dos crentes, se para Cottingham a "universalidade da busca espiritual de Deus" resiste a qualquer tentativa de reducionismo secular, então não é a religião que revela os desejos, que até é inventada por eles, mas são os desejos que revelam Deus.
Consequentemente, segundo os pesquisadores, como o desejo pertence ao homem, assim o desejo de Deus é próprio da natureza humana. Este é o título do projeto: Desire for God is Human Nature. Os novos desejantes de nosso tempo se colocam entre os dois extremos. Eles aprenderam a conviver com o desejo sem Deus de Dunlap, de um lado, e com o retorno do Deus invasivo patrocinado pela Fundação Templeton, do outro. Eles desconfiam de ambas as certezas, aquela da ciência e aquela da fé; certamente, sofrem com a navegação em águas turbulentas por inúmeros desejos exigentes e prepotentes, mas não têm medo. Além disso, nas últimas décadas, aprenderam a lutar, mesmo que muitas vezes em vão, para proteger seus desejos de justiça e paz da ânsia do poder das crenças e da ânsia de fé do poder.
No tumulto, entre “impulsos, anseios e carências”, os desejantes de hoje sentem, acima de tudo, uma nova possibilidade, uma nova forma de habitar este mundo cada vez menor e cada vez maior, de pensar sobre um passado e um futuro que estão cada vez mais próximos e mais distantes. Essa possibilidade, essa forma, diz respeito justamente a Deus, o Deus diluído no mar dos festivais sobre o desejo, mas também o Deus diferente, outro que eu, outro que tudo. Essa possibilidade e essa forma dizem respeito à religião da mesma forma, que também se perde na espiritualidade, na ética, na identidade, na meditação, na psique, mas ainda assim única, inconfundível, irredutível.
Esse é basicamente o mais novo desejo dos desejantes contemporâneos, às vezes disfarçado com tremor, às vezes revelado com ousadia. É o desejo de Deus. Simplesmente, unicamente, o desejo de Deus.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Os novos desejos. Artigo de Marco Ventura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU