Por: Jonas Jorge da Silva | 17 Mai 2022
Quando o português chegou debaixo duma bruta chuva
vestiu o índio
que pena!
fosse uma manhã de sol
o índio tinha despido o português (Erro de português, Oswald de Andrade)
Erro de português (1927), de Oswald de Andrade, ilustrou alguns dos aspectos que Tânia Pacheco, coordenadora-executiva do projeto Mapa de Conflitos: Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, sintetizou como o cerne de nossas injustiças socioambientais: a conformação de uma sociedade colonial, eurocêntrica, com direitos humanos prioritários para os brancos, machos, “cristãos” e heterossexuais.
O mapeamento de conflitos é uma iniciativa do Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde – NEEPES, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca – ENSP, vinculada à Fundação Osvaldo Cruz – Fiocruz. O trabalho em questão dá maior ênfase a dados qualitativos, buscando visibilizar os conflitos socioambientais mais significativos da atualidade, abrangendo aspectos relacionados à saúde em sua dimensão integral.
Foto do site do Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil (Acesse: http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/)
No último dia 14 de maio, Tânia Pacheco abordou o tema Desigualdades, periferias brasileiras e racismo ambiental, pela série de debates [online] Brasil: emergências socioambientais e horizontes políticos. A iniciativa promovida pelo CEPAT conta com a parceria e o apoio de diversas instituições: Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR, Conselho Nacional do Laicato do Brasil - CNLB, Observatório Nacional Luciano Mendes de Almeida – OLMA e Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Estadual de Maringá.
Tânia Pacheco também é coautora do livro Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil: o Mapa de Conflitos (Editora Fiocruz) e, desde 2007, com a criação do blog Combate Racismo Ambiental, dedica-se a publicizar denúncias de racismo ambiental, bem como a visibilizar alternativas de resistências populares em diferentes territórios permanentemente ameaçados. No blog, racismo ambiental é definido como “injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre grupos étnicos vulnerabilizados e sobre outras comunidades, discriminadas por sua raça, origem ou cor”.
Tânia Pacheco, coordenadora-executiva do projeto Mapa de Conflitos: Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, na atividade: "Desigualdades, periferias brasileiras e racismo ambiental"
Na avaliação de Pacheco, o racismo ambiental não brota do nada, mas se dá a partir de determinadas situações pré-fabricadas e alimentadas em solo fértil para o seu fortalecimento. O grande desafio está em enxergar a problemática em sua totalidade, focando nas questões macro que levam aos diferentes conflitos.
Mencionando a célebre frase do pensador italiano Antonio Gramsci: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”, Pacheco advertiu que estamos lidando justamente com os “sintomas mórbidos” de um caos geral, recrudescido pelas consequências de um desgoverno durante a pandemia: o genocídio dos povos indígenas e a invisibilização dos dilemas e sofrimentos nas grandes periferias.
Pacheco considera que não há nenhum sinal de arrefecimento das atuais mazelas sociais no cenário brasileiro. Com uma inflação galopante e um salário mínimo descendo cada vez mais a ladeira, vive-se uma situação de ameaça permanente, sem nenhuma garantia das mínimas condições de sobrevivência para grande parte da população.
No país, instaurou-se a política do medo. Inclusive, existe “o medo do que vai acontecer com o país”, dada as constantes ameaças à democracia. Tudo isso está relacionado ao racismo ambiental, sendo “o grande cenário de fundo da desgraça cotidiana do país, onde o que impera é a necropolítica”, denuncia.
Nessa direção, Pacheco citou como exemplo a recente atualização de dados da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do Ministério do Trabalho e da Previdência: do início do ano até o dia 13 de maio, data “teoricamente” celebrada como marco da abolição da escravatura, 500 pessoas foram libertadas de uma situação de trabalho análogo à escravidão. Deste total, 84% são pessoas negras.
André Langer, do CEPAT e Tânia Pacheco, coordenadora-executiva do projeto Mapa de Conflitos: Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, na atividade: "Desigualdades, periferias brasileiras e racismo ambiental"
Não há como fugir da constatação de que persevera no país “um racismo que é estrutural, institucional, ambiental e religioso”, que trata os povos indígenas e negros como sub-raças. Tal situação exige não só o envolvimento das comunidades majoritariamente impactadas pelas consequências do racismo ambiental, como também o comprometimento de cada um de nós para que esse mundo tão hostil seja transformado. Urge despertar as pessoas para a defesa intransigente da diversidade cultural brasileira, em resistência ao projeto em curso de destruição total de povos, culturas e habitats.
Para reforçar os laços que unem a todos, Pacheco destacou, por exemplo, que a homologação de terras indígenas favorece o conjunto da população brasileira, pois “quando homologadas, não se tornam propriedade dos indígenas. Eles têm o direito de viver lá, mas essas terras são da união, ou seja, de todos nós. É nossa a terra indígena. É de todos nós!”. Por outro lado, quando as elites dirigentes privatizam essas terras, destroem nossas riquezas, biodiversidade e condições para uma vida saudável.
Para Pacheco, nem sempre as pessoas percebem que estão sofrendo as consequências do racismo ambiental, mesmo em situações em que irremediavelmente entram em conflito com os interesses das elites. É fundamental reconhecer que os conflitos socioambientais que envolvem essas populações vulnerabilizadas não se restringem apenas a uma questão ambiental, mas abrangem séculos de expropriação de territórios e violações de direitos de povos indígenas, tradicionais, quilombolas, ribeirinhos etc.
A mesma condição se aplica à dura realidade das periferias urbanas, com seus históricos problemas de falta de emprego, saúde, moradia, rede de esgoto, espaços de lazer etc. E nunca é demais lembrar que a população negra é a principal impactada por esses problemas.
Contudo, Tânia Pacheco fez questão de encerrar sua exposição com uma palavra de esperança, reconhecendo o protagonismo dos que lutam por uma vida digna e decente para todos: “A luta é grande, mas a gente é forte, muito mais do que pensa que é”.
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Racismo ambiental e império da necropolítica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU