“A emergência da extrema-direita não é compreensível sem o investimento que bilionários fizeram nela mundo afora”, afirma o cientista político
Apesar de a extrema-direita adotar uma retórica “que segue a trilha do fascismo”, classificá-la como fascista é um “esforço para encaixar, em uma única moldura interpretativa, aquilo que é melhor descrito como sendo um conjunto variado de empreendimentos políticos”, pontua Luis Felipe Miguel na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Para ele, o que está acontecendo no campo político brasileiro é a exploração das frustrações da população e a criação de bodes expiatórios pela extrema-direita. “Não por acaso, sua expansão ocorre em momentos de crise do capitalismo, quando se torna mais difícil acomodar concessões, pagar o preço da pacificação social. Então muita gente é jogada na incerteza existencial total, a expectativa é que os filhos levem uma vida mais difícil que os pais, o horizonte de possibilidades se estreita”, observa.
O ressentimento contra o PT, sublinha o entrevistado, “foi a porta de entrada para a adesão à extrema-direita” e a reação da população contra o partido justifica-se numa “base material”. “A classe média em geral não tem como legar um patrimônio significativo para seus filhos. Assim, uma das principais vantagens que ela conseguia deixar era o diploma universitário, que garantia acesso exclusivo a determinadas profissões, a cargos e a concursos. Esta exclusividade ficou ameaçada. Portanto, o ressentimento da classe média contra o PT pode não ser virtuoso, nem mesmo esclarecido levando em conta seus interesses a médio e longo prazos, mas sem dúvida foi ancorado em motivos claramente compreensíveis. Acresce-se a isso uma situação de maior instabilidade nos empregos e de perda do valor de mercado dos títulos universitários, própria do atual estágio do capitalismo. Em suma, existe um fundo real de frustração e de medo, que a extrema-direita sabe explorar”, explica. Nesse contexto, assegura, o combate à extrema-direita necessita de um projeto de transformação social.
A seguir, Luis Felipe Miguel analisa o bolsonarismo, comenta a aliança entre as big techs e a extrema-direita e o cenário eleitoral do próximo ano. “Vamos reviver a disputa entre Lula e a extrema-direita”, conclui.

Luis Felipe Miguel (Foto: Reprodução Agência Sindical)
Luis Felipe Miguel é graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). É autor de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica, 2022); Dominação e resistência (Boitempo, 2018) e Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014).
IHU – Quais lacunas e incompletudes identifica nas teses e análises sobre o fenômeno da extrema-direita atualmente?
Luis Felipe Miguel – Creio que o problema não é tanto de lacunas ou incompletudes, mas de um esforço para encaixar em uma única moldura interpretativa aquilo que é melhor descrito como sendo um conjunto variado de empreendimentos políticos, com origens, motivações e projetos diversos, que estabelecem entre si formas também variadas de hibridização ou de cooperação.
Um exemplo é a confluência entre o conservadorismo extremado e o ultraliberalismo econômico, que são tradições intelectuais diversas. Em um livro bastante influente, Wendy Brown tentou derivar esta relação da obra de Friedrich Hayek, elevada à posição de doutrina fundadora, o que me parece equivocado. Parece uma tentativa de impor algo arbitrariamente, uma racionalidade própria do ambiente intelectual à “bagunça” da política real. O mesmo, a meu ver, quanto à discussão sobre se esta nova extrema-direita deve ou não deve ser definida como “fascista” ou “neofascista”. De fato, suas diversas correntes constitutivas estabelecem diferentes tipos de vinculação, diferentes continuidades e descontinuidades com os fascismos históricos da primeira metade do século XX, sendo pouco útil estabelecer uma definição única.
O que todos estes movimentos têm em comum é que são instrumentais para a guerra que a classe burguesa decidiu estabelecer contra as brechas que a democracia liberal dava à ação política das classes dominadas, mas estas relações ocorrem em forma diversificada, a ser entendida em cada caso. Eu mesmo vejo que a esperteza política de Bolsonaro se manifestou quando ele agregou à sua persona política inicial, que era ligada ao anticomunismo clássico e à nostalgia da ditadura, as pautas “morais” ou “de costumes” caras ao conservadorismo cristão e as bandeiras do ultraliberalismo econômico. Com isso, amalgamou nele mesmo as três grandes vertentes da extrema-direita.
IHU – O senhor entende a extrema-direita como um fenômeno específico, que se inspira na retórica dos fascismos clássicos. Em que consiste exatamente essa diferença? Não se trata de fascismo, mas de inspiração na retórica fascista?
Luis Felipe Miguel – Eu acredito que, em geral, os movimentos desta nova extrema-direita se valem de uma retórica que segue a trilha do fascismo: explorar as frustrações de uma grande parcela da população e direcioná-las para bodes expiatórios. Não por acaso, sua expansão ocorre em momentos de crise do capitalismo, quando se torna mais difícil acomodar concessões, pagar o preço da pacificação social. Então muita gente é jogada na incerteza existencial total, a expectativa é que os filhos levem uma vida mais difícil que os pais, o horizonte de possibilidades se estreita. Daí é mais fácil jogar a culpa no imigrante que está “roubando” os empregos, no beneficiário do programa social que é “preguiçoso”, nas ações afirmativas que premiam quem não tem “mérito”. É fácil por ser um discurso simples, que singulariza um culpado e aponta para uma solução óbvia. Mas, como disse antes, não basta isso para afirmar que “é fascismo”.
Uma parte da extrema-direita italiana descende diretamente do fascismo; o velho Le Pen, que fundou o Front National francês, hoje Rassemblement National, era obviamente um neonazista; o AfD alemão também vem com uma herança neonazi forte. Mesmo estes partidos, porém, se modificam, às vezes por oportunismo eleitoral, como é o caso claramente da Marine Le Pen, que fez questão de marcar distâncias do pai.
Mas onde colocar um Jair Bolsonaro, por exemplo? Não tem nada a ver com o nacionalismo que era próprio do fascismo, não se preocupou em criar um movimento militante organizado, o culto ao chefe é muito mais bagunçado, mesmo sua disposição de servir como braço armado da reação burguesa é temperada por uma grande dose de senso de oportunidade. Em suma, ele se afasta de muito do figurino padrão do fascismo.
Tentar vincular Bolsonaro com uma ideologia estruturada é, segundo me parece, recair naquela escolástica acadêmica que Pierre Bourdieu condenava: exigir dos nossos objetos de pesquisa a mesma coerência interna que precisamos ter em nossos trabalhos científicos. Bolsonaro é melhor descrito como um oportunista vulgar, que organiza sua agenda política a partir da ideia de “clã”, com simpatias autoritárias, iliberais e reacionárias. Há elementos de seu discurso que acenam para o fascismo, mas ele incorporou também o fundamentalismo religioso, o fundamentalismo de mercado, fez um mix próprio e, na verdade, mutante conforme as conveniências. Para ser um “fascista”, em uso rigoroso do conceito, ainda faltaria um bom percurso. Isso não é livrar a cara dele – ele continua sendo a encarnação de valores políticos repulsivos. É garantir que o conceito de “fascismo” não se dissolva, não se torne apenas um equivalente, com maior força pejorativa, de “extrema-direita”.
IHU – Outro aspecto relevante na sua análise sobre a extrema-direita é o modo como ela explora os ressentimentos das classes médias. Que tipos de ressentimentos estão sendo explorados?
Luis Felipe Miguel – “Classe média” é um conceito complicado – por um lado, pela dificuldade de delimitar suas fronteiras; por outro, pelo uso político que é feito da expressão. Mas podemos definir como sendo a parcela da população que vive do próprio trabalho, mas em ocupações mais especializadas, melhor remuneradas, o que lhes permite não apenas ter um padrão de consumo mais elevado como também escapar um pouco daquela insegurança que marca a vida da maioria dos assalariados.
Uma definição operacional, que não serve como conceito mas permite uma aproximação útil, diz que está na classe média aquele que é capaz de passar seis meses sem renda mas, mesmo assim, não diminuir de padrão de vida, porque tem reservas, crédito ou possibilidade de auxílio de familiares e amigos. Espremida entre a ambição de ser como os ricos e o medo de ser igualada aos pobres, esta camada acaba tendo sua autoimagem muito vinculada à distância que a separa dos trabalhadores em pior condição.
Por isso, seu incômodo quando os mais pobres parecem ascender, mesmo que pouco. Era aquela coisa de reclamar que tinha pobre andando de avião nos períodos de maior bonança dos governos petistas. A jornalista Danuza Leão expressou isto de forma lapidar, quando falou que não tinha mais graça ir para Paris ou Nova York, porque você corria o risco de encontrar lá o porteiro.
Esta ojeriza à igualdade social, nascida da insegurança constitutiva da classe média, é um dos alimentos para a adesão à extrema-direita. Como há pudor em assumi-la abertamente, ela por vezes se mascara na forma de uma defesa da “meritocracia” e da denúncia da corrupção (que, no entanto, como a gente sabe, é sempre seletiva). No golpe de 1964, com Collor ou no golpe contra Dilma e no bolsonarismo, este sempre foi o estopim para o apoio das camadas médias aos projetos mais reacionários. E não há dúvida de que o ressentimento contra o PT foi a porta de entrada para a adesão à extrema-direita.
IHU – Há fundamento para o ressentimento das classes médias?
Luis Felipe Miguel – Sim, há uma base material. Um elemento: os governos petistas adotaram políticas de inclusão social e de aquecimento do consumo interno que, embora não atingissem as estruturas profundas de desigualdades, tiveram um impacto muito significativo no trabalho doméstico. Muitas mulheres trocaram os empregos de domésticas por postos no comércio ou nos serviços. A redução da vulnerabilidade dos mais pobres, com os programas de transferência de renda e o aquecimento da economia, também teve impacto no aumento do custo dos serviços pessoais, como a manicure ou o jardineiro. Em suma, foi prejudicada uma classe média que, historicamente, sempre pôde usufruir de uma força de trabalho extraordinariamente mal paga.
Outro elemento foi a política de democratização do acesso ao ensino superior. A classe média em geral não tem como legar um patrimônio significativo para seus filhos. Assim, uma das principais vantagens que ela conseguia deixar era o diploma universitário, que garantia acesso exclusivo a determinadas profissões, a cargos e a concursos. Esta exclusividade ficou ameaçada.
Portanto, o ressentimento da classe média contra o PT pode não ser virtuoso, nem mesmo esclarecido levando em conta seus interesses a médio e longo prazos, mas sem dúvida foi ancorado em motivos claramente compreensíveis. Acresce-se a isso uma situação de maior instabilidade nos empregos e de perda do valor de mercado dos títulos universitários, própria do atual estágio do capitalismo. Em suma, existe um fundo real de frustração e de medo, que a extrema-direita sabe explorar.
IHU – Alguns autores destacam a emergência de uma extrema-direita multirracial, composta pela classe trabalhadora, nos Estados Unidos. Esse mesmo fenômeno pode ser observado no Brasil?
Luis Felipe Miguel – O apelo da extrema-direita não está restrito aos grupos que seu discurso ostensivamente privilegia. Temos uma base popular de trabalhadores precarizados que se veem como “empreendedores” e que se alinham ao bolsonarismo. Um exemplo está entre motoboys e entregadores de aplicativo. Embora exista hoje uma mobilização crescente de parcelas da categoria, ainda há um largo contingente que ressignifica os riscos da ocupação como manifestação de “masculinidade” e, por essa via, é atraído pelo discurso da extrema-direita. Vários estudos mostram, aliás, como muitos dos que foram beneficiados pelas políticas compensatórias dos governos do PT sentem que subiram de vida e, preferindo atribuir seu sucesso relativo ao esforço pessoal, ao “mérito” ou então à “ajuda de Deus”, fazem questão de romper com a filiação política à esquerda e entram, esses também, na órbita do bolsonarismo.
Então, embora um olhar externo possa dizer que pessoas pretas e pobres deveriam optar por um projeto político que incorpora o combate ao racismo e o combate à pobreza, as identidades políticas se formam de outra maneira. Podemos pensar também na questão de gênero. A extrema-direita teve e tem muitas mulheres entre suas lideranças, como Damares Alves, Joice Hasselmann, Carla Zambelli, Janaína Paschoal, embora sua pauta seja frontalmente contrária à agenda de defesa da igualdade entre sexos e direitos das mulheres.
De fato, o maior avanço numérico na presença feminina nos espaços de representação formal veio com a eleição de mulheres representantes da direita extremada. Mas mulheres podem se reconhecer nos papéis sociais estereotipados que lhes são atribuídos. Nada disso é surpreendente, uma vez que uma das facetas da dominação social é que os dominados são levados a ler o mundo pelas categorias dos dominadores. Justamente por isso, a afirmação identitária é insuficiente para combater a extrema-direita, sendo necessário enunciar claramente um projeto de transformação social.
IHU – A extrema-direita é causa ou sintoma do atual momento sociopolítico e cultural?
Luis Felipe Miguel – Ela é, em primeiro lugar, sintoma. Creio que as raízes da crise devem ser buscadas na crescente inoperância do pacto classista que permitiu o florescimento da democracia liberal no período do pós-guerras. Sobretudo com a manifestação da crise global do capitalismo a partir do começo da década de 1970, a classe burguesa mostrou-se menos e menos disposta a pagar o preço da classificação social. Isto se concretizou na forma de uma ofensiva contra as políticas sociais, contra a tributação progressiva, contra os direitos trabalhistas e previdenciários, pela redução do Estado. Tudo isso exigia uma restrição do espaço das decisões tomadas por meio democrático, isto é, em que o voto popular tinha peso. Isso foi levando a uma crescente insatisfação com a capacidade que a ordem democrática tinha de responder às demandas populares, já que os governos são pressionados a privilegiar as exigências das grandes corporações e dos especuladores que estão na posição de credores das dívidas públicas.
O Estado passa recursos dos mais pobres para os mais ricos, da maioria para a minoria, o que corresponde à essência das políticas de austeridade e deveria ser considerado algo inconcebível em uma ordem democrática. A extrema-direita emerge por ser competente ao fazer uso político deste desencanto. Arranja seus bodes expiatórios e faz com que as forças políticas à esquerda sejam constrangidas a assumir o papel ingrato de defensoras de um sistema que é rejeitado pela grande maioria das pessoas.
No Brasil, o projeto de Lula foi recriar, aqui, o pacto que antes vigorava nos países centrais, nas nossas condições mais difíceis, mas garantindo um patamar mínimo de vida para os mais pobres e mecanismos de inclusão social, ainda que sem mexer na estrutura de desigualdades e privilégios que sempre marcou nossa sociedade. Os limites dessa política não tardaram a se manifestar, seja porque o teto da possibilidade de transformação sem enfrentamentos logo foi atingido, seja porque mesmo o pouco que se alcançou já era muito para uma classe dominante que depende tão centralmente de padrões aberrantes de exploração.
O bolsonarismo e as vertentes menores de nossa extrema-direita, como o Movimento Brasil Livre (MBL) ou o Novo, se estabelecem nesse momento, surfando em um movimento regressivo, o golpe de 2016, que pretendia inicialmente apenas andar algumas casas para trás na política brasileira.
IHU – Como as bolhas informacionais nas redes sociais amplificam o ressentimento da classe média e contribuem para o fortalecimento da extrema-direita?
Luis Felipe Miguel – A extrema-direita se mostrou muito hábil na utilização do novo ambiente público de comunicação por uma série de motivos. O primeiro deles é que parte de seu esforço consistiu em autorizar novamente a expressão de ideias que então pareciam definitivamente excluídas do debate – como a expressão de velhos preconceitos contra integrantes de determinados grupos sociais, a apologia da violência ou a defesa de proposições consensualmente descartadas pela ciência. Isto começou com o anonimato das manifestações online, que permitia ser racista, misógino ou negacionista sem sofrer as sanções sociais, e se aprofundou com a formação das bolhas ou câmara de eco.
Elas não apenas fornecem um espaço em que qualquer ideia ou visão de mundo, por mais disparatada que seja, encontrará um grupo de concordância, mas também premiam as posições mais extremistas e a maior agressividade contra os adversários. De fato, as pesquisas da psicologia social mostram que, quando pessoas que partem de uma posição comum conversam entre si, em geral acabam chegando a conclusões mais extremadas do que se cada uma raciocinasse por conta própria. Ao mesmo tempo, o ambiente de debate nas plataformas é rarefeito; os assuntos se sucedem rapidamente, a atenção do público é dispersa, não há espaço para aprofundamento dos argumentos. Isso significa que discursos simplistas e ancorados no senso comum têm maior chance de prosperar.
Teorias da conspiração, que reduzem a complexidade do mundo à ação deliberada de pessoas más, ou velhos preconceitos são beneficiados. No espaço de um tuíte ou de um meme, é mais fácil dizer que “bandido bom é bandido morto” do que analisar as raízes da criminalidade ou as consequências da letalidade policial. Extremismo, agressividade e simplificação também casam com os interesses das empresas de tecnologia, já que promovem maior engajamento, isto é, colaboram para manter mais pessoas presas por mais tempo às plataformas, o que é necessário para que elas recolham dados pessoais para revender e ofereçam publicidade (os dois pilares de seus lucros).
A aliança entre as big techs e a extrema-direita se baseia nesta coincidência de interesses. A defesa da liberdade de expressão ilimitada, sem qualquer preocupação com a sanidade do debate público, se liga às vantagens das empresas. Documentos divulgados recentemente mostram que a própria Meta estima que 10% da sua receita publicitária advém de golpes e de fraudes. Ela prefere manter essa situação, assim como prefere manter discursos de ódio, desinformação, manipulação política etc.
Por fim, não é possível ignorar a força do dinheiro. A emergência da extrema-direita não é compreensível sem o investimento que bilionários fizeram nela mundo afora. Eles mantêm produtoras de desinformação extremista (como a Brasil Paralelo, no nosso caso), impulsionam enormemente seu conteúdo, usam exércitos de bots. De fato, a crescente desconfiança do público quanto às fontes antes autorizadas de conhecimento, como a ciência, a universidade ou o jornalismo, pode ser descrita como uma campanha contra o capital cultural (no sentido da sociologia de Pierre Bourdieu). E, com o declínio do capital cultural, fica ainda maior o império do capital econômico sobre o mundo social.
IHU – Os debates entre direita, extrema-direita e esquerda estão promovendo avanços sociais e políticos no país?
Luis Felipe Miguel – A extrema-direita não promove debates. Seu esforço é sempre no sentido de tumultuá-lo, de desviar a atenção para falsos problemas. Promove, isto sim, o pânico moral, criando uma sensação de ameaça iminente – a destruição da família, a “venezualização” do Brasil, seja o que for.
Quando estamos em pânico, julgando que há um perigo que pode nos aniquilar, não queremos debater, em geral nem pensamos, precisamos agir imediatamente. É isso que a extrema-direita faz. A tarefa de quem quer construir um ambiente democrático minimamente funcional é, na verdade, conter os esforços da extrema-direita para impedir qualquer debate real sobre os problemas coletivos e as possíveis respostas a eles.
IHU – Quais cenários políticos prevê para o país nas próximas eleições? A Operação Contenção e o assentimento da população à operação podem ter algum impacto?
Luis Felipe Miguel – Não é preciso ter uma bola de cristal muito bem azeitada para prever que nas eleições do ano que vem vamos reviver a disputa entre Lula e a extrema-direita. Lula novamente terá que rebaixar seu programa para agregar a “frente ampla” que parece ser necessária para garantir a vitória. Com Jair na cadeia, o bolsonarismo fica sem candidato natural e terá alguns percalços antes de se definir, mas dificilmente deixará de marchar razoavelmente unificado para as eleições.
O Centrão, mais uma vez, não esconde sua simpatia pela direita, como mostram os movimentos de Kassab ou da federação entre União Brasil e PP, mas estará à disposição de Lula caso ele se reeleja e esteja disposto a oferecer cargos e vantagens. É uma situação difícil porque, mais uma vez, o preço para a vitória e para a “governabilidade” de Lula pode ser aquilo que impedirá o governo de promover as transformações necessárias para minar as bases sociais da extrema-direita.
Quanto à chacina no Rio de Janeiro, a direita aposta nela para reavivar seu discurso em favor da truculência policial, que sempre tem rendido bons frutos eleitorais. No entanto, até agora este resultado se dá mais no âmbito da política local do que da política nacional. Mas é verdade que a esquerda tem dificuldades de calibrar um discurso que seja capaz de, simultaneamente, afirmar a defesa dos direitos humanos para todos, condenando a violência policial, e reconhecer que o enfrentamento ao controle de facções criminosas sobre grandes extensões do território brasileiro, impondo ônus severos às populações submetidas a seu domínio, precisa ser uma prioridade do Estado brasileiro.
Caso o governo democrático não consiga apresentar uma resposta efetiva ao problema, é só uma questão de tempo para que o tema emerja com centralidade também na política nacional e algum Bukele surja por aqui. O governo Lula poderia tomar iniciativa criando o Ministério da Segurança Pública e apresentando medidas concretas nesta direção.