Boa produção de água depende de hidrologia aplicada à pequena bacia hidrográfica. Entrevista especial com Osvaldo Ferreira Valente

Na avaliação do engenheiro florestal, a escassez hídrica brasileira está associada à hidrologia praticada no país, concentrada no desenvolvimento de modelos matemáticos que são tentativas de enquadrar realidades

Foto: Defesa Civil | Porto Velho

17 Dezembro 2024

A Agência Nacional de Águas (ANA) anunciou, recentemente, a escassez hídrica em cinco grandes cinco bacias hidrográficas. Apesar de esta ser a primeira ocorrência em mais de um século de medições, o fenômeno não é novo e diversas são as causas envolvidas. Entre elas, destaca-se o baixo armazenamento dos aquíferos. “Se o aquífero subterrâneo não estiver armazenando pelo menos algo entre 15 a 20% dos volumes de água recebidos pelas chuvas, haverá uma enorme possibilidade de escassez nas estiagens. E as bacias hidrográficas que estão se comportando mal acabam levando, para os aquíferos, apenas 8 a 10% desses volumes recebidos”, diz Osvaldo Ferreira Valente na entrevista a seguir concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por e-mail. 

O desabastecimento dos aquíferos e a má operação das bacias hidrográficas são vistos nas regiões Sul e Sudeste, onde observa-se o desequilíbrio entre a água disponível e a demanda utilizada, ou seja, “o desbalanço entre a realidade produtiva da ‘fábrica natural’ e as demandas para abastecimento e geração de energia. E tal desbalanço traz o risco de colapso do sistema, o que já tem acontecido em várias oportunidades”, pontua. 

Na avaliação do engenheiro florestal, a escassez hídrica no Brasil está associada à hidrologia ensinada e praticada no país, “muito voltada para comportamentos de cursos d’água em si e para drenagens urbanas”. Ele explica: “Concentra-se no desenvolvimento de modelos matemáticos que são tentativas de enquadrar realidades. Mas como as realidades das pequenas bacias, responsáveis pelo processamento dos volumes de água recebidos pelas chuvas, estão em constantes mudanças, os modelos acabam engolidos por realidades novas. Além do mais, as pequenas bacias são vaidosas e guardam segredos que só podem ser bem desvendados por análises diretas de suas especificidades. Por isso a hidrologia, que nós qualificamos como aplicada às pequenas bacias hidrográficas, tem seus fundamentos assentados em estudos de campo”. 

A “boa análise do ecossistema hidrológico”, assegura, inicia por meio da hidrologia aplicada, que busca, no conhecimento de campo e acompanhamento da pequena bacia hidrográfica, “saber como ela está processando os volumes de água recebidos pelas chuvas”. A prática, compara, é parecida com o processo médico da anamnese, em que o paciente narra os acontecimentos que possivelmente estão associados ao seu problema de saúde. “No caso da pequena bacia, [a hidrologia aplicada] irá buscar construir o seu histórico do comportamento hidrológico em conversas com moradores atuais a anteriores, buscando entender as mudanças de uso da terra, as alterações de vazões ao longo dos anos, se os veranicos eram frequentes, se dá para perceber mudanças no regime das chuvas e outras informações que poderão surgir permeando as conversas. Dados atuais e históricos serão fundamentais para embasar providências necessárias para o bom comportamento hidrológico, evitando escassez de água nos períodos de estiagens e que as enxurradas não tenham volumes capazes de provocar alagamentos, cheias e inundações”, assegura. 

Nesta entrevista, Valente também sugere a implementação de bacias hidrográficas-esponja como alternativas urbanas para reduzir riscos de alagamentos e abastecer os aquíferos. "A bacia hidrográfica-esponja nada mais é do que aquela capaz de segurar o máximo de volumes de água recebidos pelas chuvas e, por consequência, gerar o mínimo possível de enxurradas. Tal comportamento tem o dom de produzir dois benefícios: primeiro, reduzir riscos de alagamentos, cheias e inundações; e, segundo, abastecer bem os aquíferos subterrâneos para que eles possam garantir boas vazões de nascentes e córregos nos períodos de estiagens", afirma. 

Osvaldo Ferreira Valente (Foto: Reprodução do YouTube)

Osvaldo Ferreira Valente é engenheiro florestal, especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas e mestre em Engenharia Agrícola pela Universidade Federal de Viçosa, onde é professor titular aposentado. 

Confira a entrevista.

IHU – O que é a hidrologia? Como ela pode contribuir para evitar a escassez de água e garantir o abastecimento dos aquíferos? 

Osvaldo Ferreira Valente – A hidrologia é a ciência que trata da água em nosso planeta. Ela está suportada pelo ciclo hidrológico, que descreve os caminhos da água pelos ambientes do planeta e que orienta os estudos de fenômenos como chuvas, infiltrações, evapotranspirações, escoamentos e suas interações com os componentes físicos e biológicos que estiverem presentes em seus caminhos.

Se o estudo hidrológico mostrar, por exemplo, que há predomínio de enxurradas (escoamentos) em relação às quantidades infiltradas (primeira condição para abastecer aquíferos subterrâneos), ficará demonstrada a necessidade de providências para reverter esse comportamento. Teremos muita enxurrada, um aquífero subterrâneo pouco abastecido e escassez quando não houver fornecimento de matéria-prima, que no caso vem pelas chuvas.

Se o aquífero subterrâneo não estiver armazenando pelo menos algo entre 15 a 20% dos volumes de água recebidos pelas chuvas, haverá uma enorme possibilidade de escassez nas estiagens. E as bacias hidrográficas que estão se comportando mal acabam levando, para os aquíferos, apenas 8 a 10% desses volumes recebidos.

IHU – O senhor disse que a “hidrologia praticada no país está muito sofisticada, mas pouco operacional”. O que isso significa? Como torná-la mais operacional? 

Osvaldo Ferreira Valente – A hidrologia que é predominantemente ensinada e praticada no Brasil está muito voltada para os comportamentos de cursos d’água em si e para as drenagens urbanas. Concentra-se no desenvolvimento de modelos matemáticos que são tentativas de enquadrar realidades. Mas como as realidades das pequenas bacias, responsáveis pelo processamento dos volumes de água recebidos pelas chuvas, estão em constantes mudanças, os modelos acabam engolidos por realidades novas. Além do mais, as pequenas bacias são vaidosas e guardam segredos que só podem ser bem desvendados por análises diretas de suas especificidades. Por isso a hidrologia, que nós qualificamos como aplicada às pequenas bacias hidrográficas, tem seus fundamentos assentados em estudos de campo. 

Para nós, da Hidrologia Aplicada, botas e capas de chuvas tendem a ser tão ou até mais importantes do que os computadores. Para isso, desenvolvemos uma metodologia de trabalho denominada Contabilidade de Água e que pode ser feita com simples calculadoras, aquelas presentes em praticamente todos os celulares que estão nos bolsos ou nas mãos dos brasileiros. O importante é a aquisição de dados; operação que pode ser feita com equipamentos simples, pois a hidrologia aplicada à pequena bacia, para a boa produção de água, não necessita de muito rigor nas medições. Rigor que os modelos matemáticos, mesmo sofisticados, acabam não conseguindo obter, sendo traídos pelas realidades de ocasião.

IHU – O senhor tem defendido a aplicação da hidrologia nos planos de manejo de bacias hidrográficas para produção de água. Em que consiste esta proposta?

Osvaldo Ferreira Valente – Consiste em começar com uma boa análise do ecossistema hidrológico da pequena bacia, ou seja, saber como ela está processando os volumes de água recebidos pelas chuvas. Tenho visto planos de manejo que nem sequer mencionam as produtividades atuais de água. Sem isso, não é possível julgar o comportamento hidrológico e propor soluções. Os planos ficam presos a questões ambientais e se esquecem dos aspectos hidrológicos. A pequena bacia é uma “fábrica natural de água” e não é possível gerir nenhuma fábrica sem conhecer muito bem os seus elementos produtivos. 

IHU – Que mudanças uma hidrologia mais operacional poderia gerar nos sistemas hídrico e energético do país?

Osvaldo Ferreira Valente – As pequenas bacias são as operadoras das grandes. Se estiverem funcionando bem, o somatório delas, as grandes, também irão funcionar bem. E para fazer as pequenas funcionarem bem, é preciso um bom domínio de seus ecossistemas hidrológicos. E precisamos, também, estabelecer metas hidrológicas, ou seja, quais produtividades queremos alcançar. Sem meta definida não haverá como avaliar os resultados das ações propostas e implementadas. Se a produtividade atual de uma pequena bacia for de dois litros por minuto e por hectare (2L/min.ha) e a meta estabelecida for de 3L/min.ha, o plano de manejo deverá ser feito para isso. A quantidade de áreas a serem reflorestadas ou metros de terraços a serem construídos, por exemplo, não são metas para fins hidrológicos, mas apenas meios.

IHU – O que é a “anamnese hidrológica”? Como esse processo pode contribuir para evitar a escassez hídrica, de um lado, e as enxurradas, de outro?

Osvaldo Ferreira Valente – Anamnese, no contexto da saúde, corresponde a uma entrevista que o profissional faz com o paciente, buscando ajudá-lo a lembrar de acontecimentos que podem estar relacionados à sua atual condição clínica. No caso da pequena bacia, ela irá buscar construir o seu histórico do comportamento hidrológico em conversas com moradores atuais a anteriores, buscando entender as mudanças de uso da terra, as alterações de vazões ao longo dos anos, se os veranicos eram frequentes, se dá para perceber mudanças no regime das chuvas e outras informações que poderão surgir permeando as conversas. Dados atuais e históricos serão fundamentais para embasar providências necessárias para o bom comportamento hidrológico, evitando escassez de água nos períodos de estiagens e que as enxurradas não tenham volumes capazes de provocar alagamentos, cheias e inundações.

IHU – O senhor tem dito que “o consumo para abastecimento e para geração de energia está superior à capacidade de suporte das represas”. Esta é a causa da escassez hídrica de cinco bacias hidrográficas dos rios Madeira, Purus, Tapajós, Xingu e Paraguai, anunciada pela A Agência Nacional de Águas (ANA) recentemente? A que atribui a falta de conhecimento do comportamento hidrológico das bacias hidrográficas que alimentam as represas e captações de água?

Osvaldo Ferreira Valente – As minhas observações se referem mais especificamente às bacias das regiões Sudeste e Sul. Nestas, as demandas estão crescentes e não há garantias de que, no estado atual, possam cumprir o que se espera delas. Uma Contabilidade de Água envolvendo dados de chuvas, de vazões e de outras características hidrológicas mostra que há um desbalanço entre a realidade produtiva da “fábrica natural” e as demandas para abastecimento e geração de energia. E tal desbalanço traz o risco de colapso do sistema, o que já tem acontecido em várias oportunidades. 

IHU – Quais as implicações socioambientais da escassez hídrica dessas bacias? 

Osvaldo Ferreira Valente – Como a água é fundamental para a vida humana, a sua escassez traz sérias consequências para as populações. É claro que as pessoas costumam ter, com a água, tanto uma relação de amor quanto de temor. Explico com um exemplo: 

A criança levanta-se para ir para à escola, entra no banheiro, abre a torneira e grita para a mãe – não tem água; o amor pela água na torneira vai fazer com que aquela mãe prenuncie um dia turbulento. Mas a mesma mãe se assusta com uma chuva forte, à tarde, pois a sua rua sofre com alagamentos; aí vai aflorar o temor pela chegada da água.

Com relação ao ambiente, é claro, a água é fundamental para a diversidade de plantas e animais. Sua escassez conduz aos desertos.

IHU – A partir do conceito de cidades esponjas, o senhor tem falado em “bacia hidrográfica-esponja”. Em que aspectos elas se diferenciam das bacias hidrográficas? Qual seria a função das bacias hidrográficas-esponja em tempos de enchentes e secas, por exemplo?

Osvaldo Ferreira Valente – A bacia hidrográfica-esponja nada mais é do que aquela capaz de segurar o máximo de volumes de água recebidos pelas chuvas e, por consequência, gerar o mínimo possível de enxurradas. Tal comportamento tem o dom de produzir dois benefícios: primeiro, reduzir riscos de alagamentos, cheias e inundações; e, segundo, abastecer bem os aquíferos subterrâneos para que eles possam garantir boas vazões de nascentes e córregos nos períodos de estiagens. Transformar bacias degradadas em bacias-esponja é, na verdade, a essência do trabalho de “hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas”.

IHU – Uma das suas propostas para evitar enxurradas e permitir a infiltração da água no solo é a construção de “estruturas como terraços e caixas variadas”. Pode explicar essa proposta e nos dizer como prospecta a sua implantação?

Osvaldo Ferreira Valente – Há uma esperança errada de que basta reflorestar áreas ciliares para garantir a produção de água. Outra esperança errada está na crença de que a aplicação do Código Florestal vai ser suficiente para regular a produção de água. 

Áreas ciliares não resumem as bacias hidrográficas e podem até mesmo competir com vazões de nascentes e córregos. São ambientalmente importantes, é claro, mas seus comportamentos hidrológicos precisam estar sempre sendo avaliados.

Quanto ao Código Florestal, a sua aplicação em bacias já ocupadas com exploração agropecuária não irá proteger mais do que 20 a 30% das áreas nas regiões mais habitadas do país. É utópica a ideia de que é possível proteger mais do que isso, pois há, também, uma pressão de demanda por alimentos. 

A alternativa, então, está na adoção de práticas, chamadas de mecânicas, tais como terraços e caixas de retenção de enxurradas. Ao segurarem bons volumes de enxurradas, elas minimizam os riscos de alagamentos, cheias e inundações e promovem infiltrações que irão colaborar com o armazenamento nos aquíferos subterrâneos.

IHU – Deseja acrescentar algo? 

Osvaldo Ferreira Valente – Com vontade de disponibilizar gratuitamente conhecimentos de hidrologia e manejo e pequenas bacias hidrográficas, criamos um canal no YouTube chamado Faculdade da Água. Já são 84 vídeos postados, com duração média de vinte minutos cada.

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