Construir alianças no combate à desigualdade e melhorar a vida dos trabalhadores é o desafio das políticas municipais. Entrevista especial com Lucas Chiconi Balteiro

“É necessário um olhar mais atual para a sociedade e seus territórios, que seja mais flexível com questões que sempre tratamos de maneira pejorativa, como a ascensão social – seria mais justa se não fosse pelo capitalismo? É o que precisamos aprofundar e pôr em prática”, sugere o pesquisador de arquitetura e política urbana

Foto: Rovena Rosa | Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 30 Outubro 2024

O resultado das eleições municipais deste ano aponta para a complexidade social e territorial de um país composto por 5.570 municípios, cuja diversidade não permite reduções simplistas ou sínteses baseadas em estereótipos. Entre os dados que chamam a atenção neste pleito, destaca-se o número de abstenções: 29,26%, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ou seja, aproximadamente três de cada dez eleitores não compareceram às urnas. Esse resultado, segundo Lucas Chiconi Balteiro, “indica uma enorme descrença na política, efeitos dos solavancos da última década”. 

Nesta entrevista, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o pesquisador explica como o hibridismo e as contradições evidenciadas nas populações dos bairros de São Paulo ajudam a compreender não só a vitória de Ricardo Nunes na capital paulista, mas o fenômeno Marçal e a derrota da esquerda.

Nas periferias da capital do maior colégio eleitoral do país, informa, “a disputa foi apertada, chegando a proporções quase ‘meio a meio’ na apuração das zonas eleitorais”, enquanto regiões de classe média ascendente votaram majoritariamente em Nunes. “Regiões tradicionalmente de classes médias ascendentes e novas elites econômicas votaram com mais força em Nunes, como a porção da Zona Leste mais próxima ao Centro e sua faixa intermediária que se conecta com as periferias, além desse mesmo contexto nas Zonas Norte e Sul.

Na Zona Oeste, reduto da esquerda mais intelectualizada, vinculada às universidades, mesmo com a vitória de Nunes em todas as zonas eleitorais, é possível identificar a permanência do voto em Guilherme Boulos na porção Centro-oeste e em Pinheiros e arredores da Avenida Paulista. Já a região da Lapa, semelhante aos bairros das outras zonas que mais votaram em Nunes, também possui passado operário-industrial e representa estratos sociais ascendentes”, resume.

A partir desse panorama, analisa, “fica claro que a esquerda perdeu o protagonismo de lideranças periféricas para os espaços hegemônicos da intelectualidade, entregando a liderança para figuras herdeiras oriundas desses locais. A direita também acaba por marginalizar os movimentos de moradia, com a alcunha de ‘invasores’. Nesse caso, a direita se afasta daqueles que não têm resolvidas suas condições de moradia, como se o Brasil fosse justo e não tivesse um problema grave de habitação em todas as regiões”.

Os estereótipos que circulam pelas redes sociais ou acompanham análises da política nacional, adverte, “são falas perigosas pela sua condição traiçoeira, por serem facilmente manipuláveis e distorcidas no cotidiano da população, sobretudo em tempos de notícias falsas (fake news), inteligência artificial, pós-verdade e excesso rápido de informações. É muito fácil atingir, ofender e provocar desconfortos com essas falas, o que cria afastamentos difíceis de serem contornados depois”. 

Lucas Chicono Balteiro (Foto: Divulgação/Sou Mais Favela)

Lucas Chiconi Balteiro é graduado em Arquitetura e Urbanismo pelo FIAM-FAAM Centro Universitário e mestrando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP). Atua com consultoria técnica em política urbana, com ênfase em planejamento e patrimônio cultural. Foi coordenador do Núcleo de Valorização do Patrimônio, no Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo (DPH/SMC). É integrante dos grupos de pesquisa Cultura, Arquitetura e Cidade na América Latina (CACAL/FAUUSP) e Cidade, Arquitetura e Preservação em Perspectiva Histórica (CAPPH//UNIFESP). É diretor de Ação Regional Adjunto do Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento de São Paulo (IABsp), na gestão 2023-2025. 

Confira a entrevista. 

IHU – Como avalia o resultado das eleições municipais em São Paulo? Que complexidades sociais, territoriais e culturais das metrópoles brasileiras não são reveladas nos mapas do resultado eleitoral?

Lucas Chiconi Balteiro – As abstenções foram vitoriosas e indicam uma enorme descrença na política, efeitos dos solavancos da última década. Embora Ricardo Nunes (MDB) tenha vencido na maior parte da cidade, isso não significa que foram vitórias homogêneas, com o mesmo grau de facilidade ou dificuldade. Nas periferias, os votos foram mais disputados, chegando a proporções quase “meio a meio” na apuração das zonas eleitorais. Por outro lado, as abstenções foram enormes e somaram quase três milhões de pessoas, o que endossa ainda mais a complexidade do cenário. Por fim, regiões tradicionalmente de classes médias ascendentes e novas elites econômicas votaram com mais força em Nunes, como a porção da Zona Leste mais próxima ao Centro e sua faixa intermediária que se conecta com as periferias, além desse mesmo contexto nas Zonas Norte e Sul. Na Zona Oeste, reduto da esquerda mais intelectualizada, vinculada às universidades, mesmo com a vitória de Nunes em todas as zonas eleitorais, é possível identificar a permanência do voto em Guilherme Boulos na porção Centro-Oeste e em Pinheiros e arredores da Avenida Paulista. Já a região da Lapa, semelhante aos bairros das outras zonas que mais votaram em Nunes, também possui passado operário-industrial e representa estratos sociais ascendentes.

Embora seja a segunda eleição de Guilherme Boulos para a prefeitura de São Paulo, fica evidente sua força nos votos, uma vez que consegue manter uma base estável e abrir leques de diálogo que antes eram pouco prováveis, como com Datena e a jornalista Leda Nagle. Entretanto, ficou claro que a esquerda vinculada aos espaços acadêmicos, mais rica, centralizada na Zona Oeste, pouco saiu da sua própria bolha. Enquanto isso, candidatos da direita reforçaram suas bases e ainda consolidaram votos em regiões em franca disputa – mas que a esquerda mesmo pouco as disputa, ao menos como poderia e deveria.

Em outras cidades, como o Rio de Janeiro, será importante observarmos a próxima gestão de Eduardo Paes (PSD), visto que ganhou em primeiro turno na metrópole que conta com um Game of Thrones das disputas do crime organizado, como falou Bruno Paes Manso em entrevista para Átila Iamarino em seu canal no YouTube. Outra cidade que deve apresentar pontos interessantes é Cuiabá que, apesar de ter eleito o candidato bolsonarista, Abilio Brunini (PL), teve uma disputa acirrada com o candidato petista, Lúdio Cabral (PT). É relevante em se tratando de uma capital do Centro-oeste, onde normalmente existe mais espaço para as direitas.

IHU – Como analisa o fenômeno Pablo Marçal na capital paulista, mas também em outras regiões brasileiras, onde eleitores acompanharam a campanha dele, apesar de ele não ter sido eleito para disputar o segundo turno das eleições municipais?

Lucas Chiconi Balteiro – Pablo Marçal surfou no Bolsonarismo. Está claro pelos votos que herdou do ex-presidente Jair Bolsonaro nas eleições anteriores, já que os territórios de predomínio desses votos se relacionam, com ênfase nas áreas mais privilegiadas e ricas das Zonas Norte e Leste de São Paulo. Entretanto, chama atenção o avanço dos votos de Marçal para regiões periféricas, nas duas zonas, o que talvez coloque uma camada ainda maior de complexidade no caldeirão bolsonarista, de extrema-direita. Acredito que a força do candidato nas redes sociais, juntamente com seu discurso empreendedor e religioso também proporcionam o avanço de votos nesses territórios.

Em outras regiões do país, chama atenção o caso de Fortaleza, maior metrópole nordestina, que esteve em risco de eleger o candidato bolsonarista do PL, André Fernandes, de apenas 26 anos de idade. Fortaleza é um sinal de que as esquerdas não estão podendo brincar em serviço, visto que metade dos votos foram para o candidato bolsonarista. Ainda que seja uma vitória importante para o PT nesse momento, sendo a única capital onde venceu em 2024, é evidente que André Fernandes e seus aliados conquistaram poder e devem fazer barulho pelos próximos anos. Será fundamental uma articulação precisa por parte das esquerdas no Ceará. Também é possível que o efeito Marçal reforce os elos políticos com o Centro-oeste, sua região de origem (Goiânia), especialmente pelo agronegócio e o setor imobiliário.

Também vimos em São Paulo uma relação quase direta de apoio do candidato por parte do PCC, uma organização criminosa nativa da cidade, que foi inclusive mencionada pelo governador Tarcísio de Freitas durante o período de votação no domingo, ao fazer associação com Guilherme Boulos.

IHU – A que atribui a rejeição eleitoral aos candidatos de esquerda ou do PT?

Lucas Chiconi Balteiro – O antipetismo instaurado na época do impeachment (golpe) contra a presidenta Dilma Rousseff foi central e ainda reverbera na metrópole. É muito certo que foi um dos principais golpes da perda de Fernando Haddad para João Dória nas eleições de 2016. Era comum ouvir pessoas que diziam respeitar e admirar Haddad por seu trabalho e trajetória intelectual, mas não darem seus votos a ele por ser do Partido dos Trabalhadores (PT). Viralizou a chamada de atenção de Mano Brown feita para Haddad naquela época, ao dizer que a esquerda se fechou no campo intelectual e mais rico – que é muito evidente nos votos à esquerda no Centro e na Zona Oeste, onde estão concentradas algumas famosas universidades e por isso é o lar de muitos professores, pesquisadores e estudantes vinculados a elas. Existe uma arrogância por parte desses grupos que já estão disseminando memes ao dizer que não há nada para fazer em São Paulo que não seja ir embora – pela derrota de Guilherme Boulos

No caso de Guilherme Boulos (PSOL), infelizmente existe a alcunha de “invasor” a ser vencida, ou driblada, pelo trabalho do candidato junto aos movimentos sociais de luta por moradia. O tema da habitação é muito sensível em um país onde mais de 80% das construções são feitas sem o auxílio de profissionais da arquitetura e engenharia, segundo dados do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR). As classes ascendentes, oriundas de outras gerações e sobretudo brancas, conquistaram privilégios de poder comprar boas casas e em localizações que, se no momento da compra não eram, vieram a se tornar estratégicas e valorizadas. Com a ignorância em relação aos problemas socioespaciais do país, fez com que esses grupos fizessem a disseminação da meritocracia pela conquista das suas vidas, expressas na materialidade das casas, ou seja, tratam os mais pobres, sobretudo negros, como “vagabundos” que não querem trabalhar para obterem as mesmas conquistas, quando na verdade sabemos que o buraco é mais profundo.

Outro ponto é a gestão da máquina e como as direitas operam de forma massiva, seja por meio das igrejas ou outros espaços de socialização. Também são imperativas as obras desnecessárias ou feitas às pressas para impressionar, como o famoso recapeamento de asfalto, além das emendas parlamentares. A sociedade ainda cai muito nesse tipo de ilusão e passa a se contentar com pouco em termos políticos – o que se relaciona com aqueles que foram para a abstenção conforme a descrença no sistema político.

IHU – No artigo “As esquerdas derrapam nas esquinas da cidade”, você acentua a complexidade social dos territórios. Como essa complexidade se manifestou nas eleições municipais de São Paulo? Pode dar alguns exemplos?

Lucas Chiconi Balteiro – No caso de São Paulo, existe uma graduação na quantidade de votos à esquerda, que aumenta conforme chega nas periferias, o que indica que são áreas mais disputadas. Territórios intermediários, como a região do Ermelino Matarazzo, Itaquera, Cidade Líder e Sapopemba, oscilam entre votos mais à esquerda ou à direita a depender de cenários maiores. São lugares que consolidaram muita infraestrutura nas últimas décadas, ainda que sejam entendidos enquanto periféricos no contexto macro da metrópole. Entretanto, evidenciam um hibridismo grande por suas posições estratégicas e por abrigar famílias de classes médias em menor número quando comparado com bairros mais centrais.

IHU – Você também menciona que territórios consolidados pelo trabalho operário tornaram-se ambientes híbridos. Pode descrever o que caracteriza esses ambientes hoje? 

Lucas Chiconi Balteiro – São regiões da metrópole que, embora tenham sido chamadas de periferias há quase cem anos, pela sua posição de cinturão industrial ao redor do centro mais consolidado na época, atualmente usufruem de muita infraestrutura pública e privada e estão ao redor do núcleo central, o que as consolidou como vetores de expansão. Em um cenário capitalista, significa que são áreas muito dinâmicas em termos econômicos, com centralidades variadas, muito investimento dos setores imobiliários e um franco mercado consumidor. Por outro lado, nos últimos 30, 40 anos, perderam números expressivos de população pobre e negra, o que significa que a valorização não foi tão democrática quanto pode parecer, expulsando os mais vulneráveis que não têm condições de viver nessas áreas. Esse movimento inchou ainda mais o que seriam as periferias contemporâneas, surgidas em meados dos anos 1970 por meio de loteamentos precários e da autoconstrução (quando a própria família é responsável pela construção da sua casa, normalmente aos finais de semana), bem mais distantes da região central da metrópole.

IHU – Como os partidos políticos atuam nesses ambientes híbridos?

Lucas Chiconi Balteiro – O antigo PSDB sempre mantinha bases sólidas nessas regiões, como é o caso da Mooca, o bairro da Zona Leste mais próximo ao Centro de São Paulo. Eram frequentes articulações de cunho social e cultural, como festas e encontros em geral que buscam reunir lideranças e representantes locais que englobam empresários da região. Atualmente, é comum esbarrar com membros do MBL em bares e restaurantes, sobretudo do Tatuapé e Jardim Anália Franco. Existem parcerias entre os representantes do movimento político e os empresários, beneficiando a divulgação de ambos, o que acaba por construir raízes sólidas no território. Enquanto isso, a esquerda parece se reunir de maneira mais tímida e bem menos frequente na região. Não por acaso, a Sede do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, que foi um espaço importante das esquerdas em pleno Tatuapé, praticamente não teve apoios consistentes para seu tombamento (instrumento de preservação cultural e histórica), longe do que poderia ter tido, em vista dos frequentes barulhos que a ala intelectual faz na imprensa quando espaços afetivos da Zona Oeste estão em risco de demolição. 

A Sede do Sindicato dos Metroviários foi demolida quase que em silêncio, com barulho e articulação somente por parte dos sindicalistas e apoios mais próximos. Parece que lugares como o Tatuapé causam uma espécie de constrangimento pelo status de ascensão social, como se trabalhadores não pudessem ter alcançado ou desejado esse cenário, tanto que é muito comum ver pessoas da academia que preferem ir em bares considerados “pé sujo” para se afirmarem mais de esquerda do que quem frequenta estabelecimentos mais sofisticados, “gourmetizados”.

Acredito que uma coisa é cair na ilusão neoliberal do capitalismo, de que conseguimos tudo por mérito individual, abrindo mão de disputar o Estado e as políticas públicas, assim como achar que somos o 1% apenas pelos bens de consumo. Outra coisa, bem diferente, é lutarmos por dentro do sistema para que, dentro do possível, o maior número de pessoas tenha acessos e oportunidades de ascender socialmente, sobretudo por um viés coletivo e de bem-estar social para todos, sem ingenuidades perante o sistema capitalista que nos organiza e nos deprime.

IHU – Que tipo de ações políticas e sociais emergem desses ambientes?

Lucas Chiconi Balteiro – Em grande medida, são ações políticas que atuam em conjunto ou por meio dos espaços privados, tanto com relações fortes com o comércio local, quanto por empresas maiores, como construtoras e incorporadoras. Em casos mais específicos, já ocorreram ações de cunho político em momento de revisão de Plano Diretor e Zoneamento dentro de estandes de vendas de empreendimentos imobiliários, com iniciativa de vereadores locais. Também é comum ações políticas de caridade, vinculadas a instituições religiosas, o que reforça a ideia de caridade versus justiça social. Em muitos casos, diferente do que as esquerdas imaginam, esses eventos não são tão homogêneos em tipos de frequentadores ou mesmo opressores a minorias. São ambientes que apresentam contradições.

IHU – Por que esses ambientes híbridos são ainda pouco compreendidos pela academia?

Lucas Chiconi Balteiro – É importante frisar que a academia não é mais um espaço homogêneo e existem novos pesquisadores, entre professores e estudantes, que rompem com a hegemonia tradicional, seja por serem de origens populares, seja por não compactuar com a manutenção do status quo elitista que sempre estruturou certas instituições. Então, as críticas que faço são direcionadas aos grupos mais tradicionais ou que ainda flertam com os tradicionais, que tratam a cidade e a sociedade como cobaias, marionetes, onde todos supostamente são alienados e possuem gostos duvidosos – na moda, na arquitetura, na política, na música etc. Quando novas vozes e representações emergem nos espaços de poder e ganham evidência, a hegemonia se sente tensionada a novos movimentos e precisa abrir espaços – não sem conflitos e disputas. O hibridismo desses territórios demonstra complexidades que muitos pesquisadores não estão dispostos a enfrentar nos dias de hoje. É mais fácil reduzir, simplificar, categorizar, zonear, desagregar, ao invés de tratar o território como elemento conjunto, complexo, coletivo, contraditório, como defendia Milton Santos em “O retorno do território”, nos anos 1990. 

As esquerdas criticam muito as respostas fáceis e simplistas que a direita oferece aos problemas complexos, mas na prática, prefere reduzir muita coisa a um modelo Centro-Periferia simplista que pouco se interessa em observar nuances, contradições, complexidades que fogem à regra. É necessário um olhar mais atual para a sociedade e seus territórios, que seja mais flexível com questões que sempre tratamos de maneira pejorativa, como a ascensão social – seria mais justa se não fosse pelo capitalismo? É o que precisamos aprofundar e pôr em prática.

IHU – Nos territórios paulistas, onde encontram-se os pobres? É possível afirmar que eles deram uma guinada da esquerda para a direita, como muitos analistas afirmam? Sim ou não e por quais razões?

Lucas Chiconi Balteiro – Em São Paulo, os grupos pobres se localizam principalmente em periferias distantes das áreas centrais, mas também em enclaves de pobreza internos aos centros, como é o caso dos cortiços e ocupações de moradia em prédios vazios – situação comum à outras metrópoles, como Rio de Janeiro, Porto Alegre, entre outras.

E não é possível fazer essa afirmação [de que deram uma guinada à direita] justamente pelas complexidades socioterritoriais que envolvem as abstenções que já mencionamos e a disputa acirrada dos votos nas regiões periféricas. Uma grande referência sobre estudos periféricos paulistanos é o professor Tiaraju D’Andrea, da Unifesp, que exalta com propriedade a força da trajetória dos movimentos sociais periféricos e como suas bases ainda são bastante consideráveis nessas regiões – caso da manutenção de grande parte do voto desse eleitorado. Quando a imprensa diz que um candidato “levou” uma determinada região, está se baseando em uma cartografia muito superficial e que apenas considera o candidato vencedor, mas sem olhar para outras nuances do território.

IHU – Quais os riscos do estereótipo “pobre de direita”? 

Lucas Chiconi Balteiro – É um estereótipo semelhante ao de “classe média burra”, como se ser de esquerda fosse sinal literal de inteligência, enquanto a direita estaria associada à estupidez e manipulação. São falas perigosas pela sua condição traiçoeira, por serem facilmente manipuláveis e distorcidas no cotidiano da população, sobretudo em tempos de notícias falsas (fake news), inteligência artificial, pós-verdade e excesso rápido de informações. É muito fácil atingir, ofender e provocar desconfortos com essas falas, o que cria afastamentos difíceis de serem contornados depois.

IHU – Quais são os estereótipos criados pela esquerda e pela direita que mais afastam e aproximam as pessoas do campo progressista e da direita? 

Lucas Chiconi Balteiro – A direita cria estereótipos que, normalmente, tentam essencializar o trabalho intelectual das esquerdas, onde tratam muitos enquanto “esquerda caviar”, “esquerda cirandeira” e coisas do tipo, como se as esquerdas fossem somente esses grupos – no caso de São Paulo, hipsters de Santa Cecília e Vila Madalena; no Rio de Janeiro, os hipsters de Laranjeiras. O próprio Tiaraju D’Andrea chamou atenção para o erro de agir dessa maneira, diante da fala de Vladimir Safatle ao dizer que a esquerda não tem nada a dizer para as periferias, sendo que as periferias são parte fundamental da esquerda. Portanto, fica claro que a esquerda perdeu o protagonismo de lideranças periféricas para os espaços hegemônicos da intelectualidade, entregando a liderança para figuras herdeiras oriundas desses locais. A direita também acaba por marginalizar os movimentos de moradia, com a alcunha de “invasores”. Nesse caso, a direita se afasta daqueles que não têm resolvidas suas condições de moradia, como se o Brasil fosse justo e não tivesse um problema grave de habitação em todas as regiões.

Enquanto isso, a esquerda acaba abrindo mão de disputar as classes médias ao tratá-las sempre na chave da alienação, como se não soubessem que são classes trabalhadoras, não herdeiras. Elas sabem disso. A construção da moral desses grupos por meio do trabalho evidencia essa consciência, mas grupos de esquerda ainda surfam no estereótipo de que as classes médias pensam ser elites e, por sua vez, não saberiam que são trabalhadoras. Fora isso, alimentam alguns estigmas que provocam muito desconforto desnecessário, por exemplo: na arquitetura, o movimento moderno é dos mais estudados e valorizados por suas grandes contribuições ao país, com razão. Entretanto, qualquer coisa que foge desse estilo, acaba sendo jogada na ordem do “brega”, “cafona”, “ridículo”, de ordem inferior, o que claramente demonstra elitismo por parte de setores privilegiados da academia que sempre se promoveram nas suas relações sociais entre famílias, empresas, instituições de classe etc. Pior é quando esses grupos proferem falas como “o Nordeste é meu país”, mas sem sequer saberem o que é a região nordeste na realidade e as razões pelas quais votam, ainda em maioria, no PT – que não é por questões de raça, sexualidade e liberdade religiosa (sem generalizar, claro).

Já no caso de movimentos de esquerda das periferias, em alguns casos, existem afastamentos em relação às classes médias trabalhadoras, o que é compreensível e precisamos respeitar, já que a condição de periférico, para mim, é imperativa para que eu tenha respeito por esses sujeitos, já que formam a base da pirâmide social. Ainda assim, acredito que seja necessário construir alianças se o objetivo final for o mesmo, no sentido de combatermos desigualdades e ofertarmos melhores condições de vida aos trabalhadores – com óbvia prioridade aos trabalhadores periféricos, sobretudo negros.

IHU – Por que “a ideia de ricos versus pobres se tornou pouco realista, ou palpável, diante das transformações das últimas décadas”? Que visão seria mais fidedigna com a realidade?

Lucas Chiconi Balteiro – É fundamental que tenhamos ciência das desigualdades sociais em diferentes escalas no país. Primeiro, quando falamos que São Paulo é desigual, entre bilionários e populações faveladas, é uma verdade. Entretanto, entre os dois polos sociais extremos existe a maior parte da cidade e da sua população, em um leque muito variado de setores, sobretudo de classes médias (no plural). Bilionários são o 1% mais rico? Com certeza. Mas isso não significa que aqueles que têm renda superior a 10 ou 20 mil reais por mês sejam pobres. Longe disso. Quando olhamos para a desigualdade regional, o Norte e o Nordeste se tornam periferias nacionais, já que a divisão social do trabalho nessas regiões é diferente do que nas regiões Sul e Sudeste. Principalmente, no eixo Rio-São Paulo. Mudam os números de educação, saúde, investimentos no espaço urbano, no poder de compra das famílias, nos privilégios acumulados por diferentes gerações, nas oportunidades de trabalho e, consequentemente, na ascensão social. E claro, a concentração de poder das elites políticas e econômicas no Sudeste, o que hierarquiza o país como um todo. 

Não é à toa que cidades como Salvador e Belém tenham metade das suas populações, respectivamente, vivendo em favelas, em condições de vulnerabilidade. Bairros ricos dessas cidades não se sobressaem aos bairros de classe média de São Paulo, por exemplo, ou mesmo periferias de São Paulo que contam com mais infraestrutura do que suas congêneres em cidades do Norte e do Nordeste. Essas diferenças têm condições de influenciar no imaginário popular sobre as desigualdades, de quem é “rico” ou “pobre”, a depender do ambiente em que vive, da qualidade construtiva da sua casa, da qualidade urbanística do bairro, da oferta de comércio e serviços e, respectivamente, o acesso de cada um a toda essa infraestrutura disponível. Por esse motivo, ao enfrentarmos o problema das desigualdades no campo político, precisamos ser mais estratégicos, mais assertivos e claros, ao invés de dizermos que as classes médias são “pobres plus”, ou “burros” por não entenderem que não são trabalhadores. Elas sabem que são trabalhadoras, tanto que João Dória se elegeu pelo slogan de “João Trabalhador”. Se o trabalhador for sempre associado à condição de pobreza, então estamos assumindo que não existem chances de qualquer tipo de ascensão?

IHU – Deseja acrescentar algo?

Lucas Chiconi Balteiro – Acredito que ainda veremos muitas discussões e novas informações a respeito do cenário político. É evidente que a preservação da memória das bases da esquerda é de fundamental importância, mas não significa que o campo precise voltar aos anos 1970. Novas gerações surgiram e com elas, novas ideias, objetivos e perspectivas, assim como tecnologias e maneiras de ver o mundo. É preciso respeitar a pluralidade de modos de vida para aprendermos como chegar nas pessoas ao convencermos que, aquilo que almejamos para o mundo (para o bairro, para a cidade, para o estado e o país) é benéfico para o bem-estar coletivo. E mais: que o bem-estar coletivo, da maioria, é benéfico para cada um de nós individualmente. Sejamos estratégicos.

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