A humanidade do humano não se esgota no sapiens. Entrevista especial com Rodrigo Petronio

Segundo o filósofo, o que caracteriza a humanidade dos humanos “é um problema em aberto e que sempre vai ficar em aberto”

Foto: Pixabay

Por: Edição Patricia Fachin | 17 Novembro 2022

A partir da mesologia, teoria dos mesons, que em grego significa meio, entendido como “meio-mundo”, isto é, o “meio circundante”, “um espaço situacional, fático, onde os seres vivos, os seres circunstanciais, os existentes, existem”, o escritor e filósofo Rodrigo Petronio propõe “fornecer uma base para a compreensão da hominização não apenas no sentido da vida e dos seres vivos de modo geral”. A proposta, publicada em seu mais recente livro, intitulado Abismos da leveza: por uma filosofia pluralista (É Realizações, 2022), foi tema da conferência virtual ministrada por ele no “Ciclo de Estudos Manifesto Terrano. Construindo uma geofilosofia de Gaia”, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. O propósito da obra, estruturada em três partes, explica, é uma “tentativa de tentar pensar a especificidade da narrativa humana” e “o processo de hominização, de formação dos hominídeos, do qual decorremos como humanos sapiens”.

Influenciado por filosofias da natureza, filósofos e cientistas contemporâneos e metafísicos como Gottfried Wilhelm Leibniz, que desenvolve “uma metafísica moderna que acompanha pari passu o desenvolvimento da ciência moderna”, Petronio afirma que “o que faz dos humanos, humanos, é um problema em aberto e que sempre vai ficar em aberto. Isso significa que ainda teremos novas maneiras de sermos humanos sapiens, novas humanidades e novas maneiras de ser humano de outras espécies que ainda vão surgir no horizonte, e novas humanidades possíveis no horizonte que devem se desdobrar”.

Segundo ele, hoje, “não há mais a possibilidade de pensarmos o mundo no começo do século XXI e do terceiro milênio de um ponto de vista unificador”. As filosofias da unidade, assegura, “morreram e nós ainda não temos uma epistemologia e uma ontologia pluralista à altura do mundo que tem se descortinado do século XVII até hoje e, mais agudamente, no mundo que vivemos e no mundo que ainda está por vir”.

A seguir, publicamos a conferência de Rodrigo Petronio no formato de entrevista.

Rodrigo Petronio

Foto: Arquivo Pessoal

Escritor e filósofo, Rodrigo Petronio é professor titular da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP. Desenvolve pós-doutorado no Centro de Tecnologias da Inteligência e Design Digital – TIDD/PUC-SP sobre a obra de Alfred North Whitehead e as ontologias e cosmologias contemporâneas. É também doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. Possui dois mestrados: em Ciência da Religião, pela PUC-SP, sobre o filósofo contemporâneo Peter Sloterdijk, e em Literatura Comparada, pela UERJ, sobre literatura e filosofia na Renascença. Entre suas publicações poéticas, destacamos História natural (Gargântua, 2000), Assinatura do sol (Gêmeos R, 2005) e Pedra de luz (A Girafa, 2005). Atualmente divide com Rodrigo Maltez Novaes a coordenação editorial das Obras Completas de Vilém Flusser pela Editora É.

Pelo IHUPetronio publicou Mesoceno. A Era dos Meios e o AntropocenoCadernos IHU ideias número 339; Yuval Noah Harari: pensador das eras humanasCadernos IHU ideias número 329; e Desbravar o Futuro. A antropotecnologia e os horizontes da hominização a partir do pensamento de Peter SloterdijkCadernos IHU ideias número 321.

Confira a entrevista. 

IHU – Qual é o fio condutor do seu novo livro, Abismos da leveza: por uma filosofia pluralista?

Rodrigo Petronio – O livro recobre vários textos e ensaios que fui publicando ao longo dos últimos anos, mas existe uma linha fina costurando todos eles, que é a mesologia. O livro é dividido em três partes. A primeira é sobre seres, a hipótese ontológica; a segunda parte é sobre mundos, mesologia e pluriversos; e a terceira trata da vida, mesologia e hominização, ou seja, do processo de formação dos hominídeos.

Como parte introdutória, falando da teoria que tenho desenvolvido, gostaria de lembrar o que diz o filósofo Gilles Deleuze sobre o ato de pensar a filosofia: o filósofo é aquele que, acima de tudo, cria conceitos. A atividade da filosofia é imensa e existem milhões de obras disponíveis sobre um pensamento sólido e consolidado há séculos e isso nunca pode ser mitigado ou minimizado. Mas, ao mesmo tempo, nunca podemos nos relacionar de um modo frio com o texto, ou seja, simplesmente pensar os textos, a tradição, as obras e os autores apenas como ponto de chegada. Precisamos imaginar toda a tradição de mais de dois mil anos de filosofia também como um ponto de partida: é um acervo teórico que pode estar a nosso favor para que tentemos articular novos conceitos e criar teorias.

Desde muito cedo estive ligado e dividido entre a literatura e a filosofia e nunca consegui ver uma desvinculação entre essas duas atividades. Nesse sentido, tenho defendido e tentado criar formas de ver como se articulam o processo criativo dos conceitos e o aspecto propriamente conceitual entre literatura e filosofia. Este livro é um exercício e uma tentativa de exercitar a criação de conceitos. Basicamente, isto é um dos objetivos do livro e de todo meu trabalho. Claro que quando fazemos isso, corremos certos riscos. O grau de risco aumenta, o grau de erro aumenta, o grau de instabilidade epistemológica aumenta, e os desafios, por conseguinte, aumentam também. Mas acredito que seja válido. Precisamos nos arriscar mais no exercício do pensamento.

IHU – Como surgiu a intuição em torno do conceito “mesologia”, que é abordado no livro?

Rodrigo Petronio – A intuição da teoria da mesologia surgiu para mim em um determinado momento, há muitos anos. Se for fazer uma anamnese, uma reconstrução, nunca conseguiremos chegar de fato ao ponto inicial em que uma ideia nos captura. Como diz Deleuze, as ideias se aparentam mais a um verme que captura um organismo do que a modelos abstratos que simplesmente manipulamos. Então, não sei em que momento exato o verme dos mesons capturou meu organismo, mas diria que essa teoria começou a se consolidar simultaneamente a partir das minhas leituras da obra do filósofo Peter Sloterdijk, sobretudo da obra Esferas, a qual dediquei meu segundo mestrado, do ponto de vista da hominização e, em particular, por conta de uma questão trazida por ele sobre relacionalidade, as ontologias relacionais.

Uma das minhas principais linhas de pesquisa é a filosofia contemporânea e, ao longo de quase 30 anos, Sloterdijk foi uma chave importante para perceber a importância do conceito de relação ou da categoria de relacionalidade dentro do pensamento contemporâneo. Não estou falando apenas da filosofia, mas de praticamente todas as áreas do conhecimento. Se tomarmos o termo relação, chegaremos a teologias relacionais, cosmologias relacionais, biologia relacional, arqueologia relacional, sociologia relacional e assim sucessivamente. A teoria da relacionalidade nos leva a questões complexas no debate epistemológico do começo do século XXI.

Em um segundo momento, percebi uma série de autores contemporâneos que estavam dentro desta rede do pensamento complexo, da teoria da complexidade, do pensamento sistêmico, dos rizomas ou de um pensamento em rede. Nesse sentido, a mesologia é uma tentativa de produzir uma teoria específica dentro dessa trama e do conceito de relacionalidade. Então, este segundo momento da minha pesquisa diz respeito a uma percepção da categoria relação ao longo da história do pensamento e à constatação de algumas lacunas.

Metafísica substancialista

Dentro das dez categorias aristotélicas, houve uma predominância fundamental da categoria substância sobre todas as demais. Essa predominância gerou a predominância da metafísica da substância ou da metafísica substancialista, que vai de Aristóteles e Platão e toda a filosofia antiga, de modo geral, até Descartes, a partir da metafísica da subjetividade cartesiana. Então, temos aí quase 20 séculos de regência do pensamento substancialista, que é absolutamente potente. Trata-se, simplesmente, da base e dos fundamentos da filosofia antiga e de toda a filosofia medieval e renascentista – da qual sou apaixonado por muitos autores – e das metafísicas a partir do século XVII.

Correlacionismo

A partir do século XVIII, essa predominância começa a se alterar um pouco, sobretudo a partir de [Immanuel] Kant, com a intuição de uma crítica à filosofia substancialista. Kant levanta o problema do correlacionismo, ou seja, da correlação consciência-mundo. A correlacionalidade e dialética existente entre númeno e fenômeno é estruturante de todas as antinomias kantianas dentro da estrutura correlacionista, que é a estrutura consciência-mundo. A estrutura fenomênica e o sujeito transcendental se desenvolvem dentro desse grande campo fenomênico e da estrutura correlacionista. Então, em Kant existe uma grande alteração da metafísica substancialista. Ele praticamente inaugura um novo modo de pensar para além da metafísica e, mais especificamente, para além da metafísica da substância. Não vou entrar aqui em questões mais específicas da filosofia kantiana, mas todo o idealismo alemão também está relacionado a isso, sobretudo [Georg Wilhelm Friedrich] Hegel e [Friedrich Wilhelm Joseph von] Schelling. Isto é, começa a aparecer uma tentativa de esvaziamento da visão substancialista e a se propor outros modelos.

Modelo rede

A partir do século XIX, sobretudo nas filosofias da natureza, o modelo rede ou situacional (ou relacional) começa a se desenvolver porque emerge, no campo epistêmico dos saberes das ciências e da filosofia, o conceito de meio. Não por acaso a noção de ecologia vem de ēkhōs, que é Oikós, casa, que é o meio, meio ambiente, meio circundante. O termo meio foi batizado por Ernst Haeckel, mas está no vocabulário de todos os naturalistas do século XIX, e começou a se desenvolver, de modo bastante forte, no século XIX no sentido das filosofias da vida, da filosofia da natureza, sobretudo na filosofia da natureza alemã, mas também a partir da teoria da evolução darwiniana. A partir daí, o conceito de meio começou a adquirir outro tônus, outro valor epistemológico e começou a assumir a centralidade em todo o debate e em toda a arquitetura conceitual e filosófica.

IHU – Qual é a centralidade deste conceito no seu livro?

Rodrigo Petronio – Quando falamos de relação, estamos usando uma das acepções do termo mesons, que em grego significa meio. Mesons seria a mínima partícula relacional, a categoria relação. Uma das acepções de mesons é a relação entendida como mediação. Ou seja, como um meio entre dois termos, como uma membrana que separa dois mundos, como um ponto de conexão entre duas substâncias, como diversas mediações e relações estabelecidas por múltiplas substâncias. Outra acepção, que exploro na mesologia, é a acepção de mesons entendida como meio não como mediador, mas como aquilo que chamo de meio-mundo. Ou seja, pressupõe um meio ambiente, um ecossistema, uma ecologia, um meio circundante, isto é, um espaço situacional, fático, onde os seres vivos, os seres circunstanciais, os existentes, existem. Todos os existentes – no plano terrestre, cosmológico, nos infinitos mundos que constituem trilhões de galáxias – teriam também seus respectivos meios circundantes, suas respectivas ecologias, ou seja, seus respectivos meios-mundos. A partir dessa dupla articulação do conceito de mesons, comecei a perceber que havia a possibilidade de explorar essa teoria, a qual seria uma unificação da teoria da relacionalidade, que teria como centralidade a categoria relação.

Relação

Nesse sentido, considerando as dez categorias aristotélicas, haveria um deslocamento da centralidade da substância e uma centralização da categoria relação diante das demais. Essa nova perspectiva da relação e da relacionalidade é uma demanda interna da própria filosofia moderna a partir de Kant e houve uma consolidação, ampliação e exponencialização dessa categoria meio a partir das filosofias da vida, da filosofia da biologia e da filosofia da natureza a partir do século XIX. A dupla articulação em torno do termo “meio” praticamente explodiu no século XX porque todas as teorias do século XX, em meu ponto de vista, são teorias relacionais.

Faço uma pequena digressão: é muito importante que tentemos desbravar conceitos ou trabalhemos com a noção de autoria de conceito. Hans Ulrich Gumbrecht, meu professor no doutorado sanduíche em Stanford, foi um dos grandes estimuladores de desenvolver essa teoria dos mesons. Precisamos desse estímulo dentro da universidade para deixarmos de fazer trabalhos que sejam apenas comentários de outros textos. Não estou minimizando o comentário de outros textos nem me colocando em uma situação melhor ou pior do que outros pesquisadores, mas dizendo que, quando investimos em uma questão autoral, estamos colocando os conceitos sob a influência e a perspectiva de uma ação criadora e autoral. Tudo que estou dizendo não é nada mais do que a reconstrução de um processo interno, subjetivo, autoral de como me relaciono com outros autores para construir algum sentido para conceitos e tentar gerar algum tipo de novidade ou algum índice de autoria no trato de alguns conceitos. Isso será cada vez mais importante no mundo de hipercomplexidade em que vivemos. Obviamente, não se trata de cair na ingenuidade de acreditar que exista originalidade nessa tarefa. Nada é original. Toda ideia é derivada de outra ideia. Todo conceito é derivado de outro conceito e existem milhares de autores que já trabalharam o mesmo conceito. Esta é a atitude básica e científica precisamos que ter: de humildade radical de nos relacionarmos sempre tendo em vista que tudo que já pensei, alguém já pensou melhor do que eu. Estou partindo desse ponto de saída, que não é o ponto de ilusão que tem se propagado nas redes sociais e no mundo da internet, segundo o qual temos uma visão original sobre a realidade.

Ao mesmo tempo, não podemos nos contentar em tomar uma atitude de neutralização do sujeito cognoscente. Precisamos buscar algum índice de autoria e esse índice de autoria, no fundo, é basicamente fazer o que eu tenho tentado fazer em tudo que faço. Essa é uma digressão para pensarmos que esse exercício será cada vez mais importante dentro das universidades e da ciência para a produção de conhecimento efetivamente científico. É importante conseguirmos articular conceito e criação. Conceitualização e criatividade precisam andar juntas.

IHU – Em que consiste sua proposta de uma metafísica pluralista a partir do tratamento do conceito de mesons?

Rodrigo Petronio – Um terceiro momento de minha pesquisa diz respeito a um autor específico, que foi um dos geradores das ideias que se inocularam em mim, [Gottfried Wilhelm] Leibniz, um racionalista do final do século XVII, um dos maiores pensadores metafísicos, um gênio impressionante, um polímata. Ele estudou o pensamento chinês e é um dos principais desenvolvedores do cálculo decimal na matemática, um dos pioneiros da paleontologia e estava estudando a idade da Terra. Existe um riquíssimo debate entre [Stefan] Huck, Leibniz no século XVII.

Leibniz tem uma obra chamada Protogaea, ou seja, noção de uma protogaia, uma terra unificada. Ele está nessa cruzada e missão de tentar compreender a evolução da Terra e da vida. Leibniz estava analisando fósseis em uma época em que não havia a noção de microrganismos nos séculos XVII e XVIII, ideia que começou a se consolidar a partir dos naturalistas franceses no século XVIII e depois se consumou na microbiologia, no século XIX. Mas Leibniz está tentando imaginar que, se existe uma protogaea, existe uma origem da vida e, portanto, o tempo da Terra obviamente não é de dez mil anos, mas de milhões e, como depois se provou, de bilhões de anos. Existe aquilo que Leibniz chama de lex continuitatis. É um longo debate, mas, resumindo, a teoria leibniziana tenta pensar a teoria da vida e a teoria da Terra e, para isso, ele cria uma metafísica. No caso, a metafísica é uma metateoria que fundamenta todas as demais teorias. Todo o trabalho metafísico não é nada mais do que a constituição de um metacampo, de uma metateoria que serve de alicerce e de fundamento a todos os seres reais e a todas as teorias sobre os seres reais. A metafísica leibniziana, arriscaria dizer, é uma das maiores e primeiras metafísicas pluralistas já geradas e produzidas que não está fundada sobre a noção de unidade. Leibniz funda uma nova metafísica substancialista fundada na pluralidade. Ele o faz a partir de um dos conceitos mais brilhantes da história da ciência, que é o conceito de mônada, simples, uno. Então, a noção da monadologia leibniziana é a noção segundo a qual o universo, os seres materiais, vivos e não vivos, orgânicos e inorgânicos – essa divisão ainda não era muito clara no século XVII –, não é pensado a partir de uma cisão. Leibniz pensa um pluralismo ontológico constelado e construído a partir desses mínimos tijolinhos metafísicos que são as mônadas, que são as mínimas unidades existentes e reais.

Quando acessamos esse tipo de visão, vemos uma enorme potência. Como é possível pensar o pluralismo e um pluralismo radical sem pensar o conceito de infinito? Como é possível pensar um pluralismo radical e o conceito de infinito sem corroer todos os alicerces daquilo que tinha sido instaurado e institucionalizado como a base oficial teológica, filosófica e científica? Leibniz abre uma grande autoestrada do pensamento moderno, que é ligada, segundo meu entendimento, a uma metafísica pluralista, uma metafísica da pluralidade infinita dos mundos, e não mais a uma metafísica que estivesse conectada ou cuja base principal seja a busca de uma unidade. De modo geral, essa metafísica substancialista pluralista é um dos alicerces da teoria dos mesons.

IHU – Por que compreende esta metafísica pluralista como fundamentalmente importante?

Rodrigo Petronio – Porque nesse caso, diferente de Kant, [Martin] Heidegger e Hegel, ou seja, diferente dessa outra grande estrada do pensamento, que vai rechaçar ou tentar suplantar ou suprimir a substancialidade, Leibniz reposiciona a metafísica substancial em outro lugar. Ao fazê-lo é como se nós tivéssemos relendo toda a história e a metafísica ocidental à luz de uma nova lente e, por conseguinte, gerando uma nova metafísica, uma metafísica moderna que acompanha pari passu o desenvolvimento da ciência moderna, e que oferece soluções pluralistas para um mundo que precisa ser cada vez mais entendido sob o ponto de vista pluralista, e para um mundo para o qual as soluções unificadoras e simplificadoras não respondem mais – estou falando no sentido político, ecológico, ecossistêmico e planetário. Não há mais a possibilidade de pensarmos o mundo no começo do século XXI e do terceiro milênio de um ponto de vista unificador. As filosofias da unidade morreram e nós ainda não temos uma epistemologia e uma ontologia pluralista à altura do mundo que tem se descortinado do século XVII até hoje e, mais agudamente, no mundo que vivemos e no mundo que ainda está por vir. Os nossos conhecimentos se desdobram cada vez mais em um abissal conhecimento de um universo que é absolutamente infinito e que vai se absalisar (noção de abismo), vai se tornar cada vez mais abissal e, portanto, cada vez mais múltiplo e pluralizado. Nessa linha leibniziana, retemos um conceito muito potente, que é o de substância.

Modelo organicista

Leibniz é conhecido por ser um representante do chamado organicismo. A filosofia organicista, o organicismo, não pressupõe que o universo seja vivo, que ele seja um grande organismo ou um ser vivo. Ou seja, não há um animismo – o conceito básico de que tudo tem vida – necessariamente suposto na filosofia do organismo. O organicismo é uma maneira de introjetar complexidade na conceitualização porque, até onde se sabe, os organismos e a vida são as entidades mais complexas do universo porque são irredutíveis a padrões e modelos. Sempre que tentamos produzir modelos e matematizar a vida, por mais sofisticados que sejam os cálculos, eles fracassam porque os organismos são, por definição, aqueles seres cuja essência é a irredutibilidade. Ou seja, os organismos não são redutíveis a modelos, sejam eles transcendentais, abstratos, conceitos ou processos matemáticos.

Quando pensamos na filosofia do organismo, a questão básica que se coloca é a própria ideia de que o organismo começa a ser um modelo epistemológico para se pensar tudo que existe. Ao fazer este deslocamento, pensar a parte pelo todo, ao transpor e a projetar uma parte do universo para gerar uma compreensão de hipercomplexidade em relação ao todo do universo, nós produzimos um tipo de filosofia que, do meu ponto de vista, é uma das filosofias mais potentes porque é um tipo de filosofia que estabelece um compromisso com aquilo que não pode ser depurado, que não pode ser quantificado, que não pode ser matematizado.

Existe um grande problema aqui que é o problema da racionalidade. Os físicos podem detestar essa teoria porque, para eles, existe uma exigência de racionalidade e ela repousa sobre o fato de que os seres precisam ser quantificados porque se não há quantificação não há leis, se não há leis não há racionalidade, se não há unidade não há leis nem racionalidade. Então, a visão organicista e pluralista gera ruídos e atritos epistemológicos e alguns podem até considerá-la anticientífica. Mas, gosto de citar uma frase de Edgar Morin: estamos na pré-história do espírito e não podemos pensar a partir dos conceitos dados, da natureza dada e daquilo que foi constituído. Precisamos pensar daqui para o futuro. E daqui em direção daquilo que ainda não existe.

Mesologia

Então, o modelo organicista pode ser um modelo pluralista e, por conseguinte, a mesologia pode fornecer um novo modelo que, em primeiro lugar, supere o dualismo cartesiano e, em segundo lugar, supere as dicotomias entre vida e não vida, orgânico e inorgânico – que é um problema que se arrasta sem solução satisfatória desde o século XVII – e, em terceiro lugar, pode fornecer uma base epistemológica integradora de todos os saberes porque todos os saberes e todas as ciências, cada um a sua maneira, estariam lidando com redes conectoras de mundos, meios circundantes, que têm que ser pensados a partir das suas relações e das propriedades que emergem das relações e não a partir de qualidades intrínsecas a determinadas substâncias – essa é a base relacional que subjaz a teoria. E, além de tudo, haveria sempre um certo devir em relação à conceituação, aos conceitos e ao próprio pensamento porque se o organismo é um limite daquilo que é irredutível, esse ponto cego e essa irredutibilidade geraria, o tempo todo e cada vez mais, um devir de incompletude e de não conclusividade de nada porque nada pode ser fechado. A noção de organismo é a noção de um sistema ou de um metassistema aberto, múltiplo, rizomático no sentido Deleuze e Félix Guattari, que se expande para todos os lados e para todas as direções, e que nunca poderá ser fechado, a não ser a partir de fechamentos operativos, parciais, locais, para conferir ali níveis de racionalidade possíveis, pragmáticos, de certas ciências, de certos conceitos, de certas elaborações laboratoriais. Mas do ponto de vista epistemológico e ontológico, teríamos uma espécie de deriva ou multiplicação de mundos. Nunca poderíamos dizer que um meio-mundo ou um universo ou pluriverso possa legislar como régua de aferição de outro. Aí adentramos na dimensão de um pluralismo radical, de uma filosofia pluralista radical, que é o que é ambicionado pela teoria dos mesons como eu a entendendo.

Tripé

Na teoria existe um tripé. O primeiro seria o dos seres, uma ontologia propriamente dita, como a desenvolvo no livro, e a relação entre mesologia e mereografia. Mereografia é um termo que vem da etnografia, de uma antropóloga britânica chamada Marilyn Strathern, que trabalhou na Nova Guiné com os povos da melanésia, e criou esse conceito para descrever uma concepção muito curiosa desses povos, que é a de que eles não têm a noção de totalidade. Toda a conceitualização e a cosmologia desses povos se organiza de partes para partes, e essas partes não compreendem uma totalização e um fechamento em seu horizonte. Toda a relação parte-parte é uma relação mereográfica. Esse é um problema que concerne à etnografia, mas que, na verdade, vem desde a Antiguidade e está ligado à noção de holismo e mereologia. Holos significa estudo do todo. Mereologia, estudo das partes. A relação entre holismo e mereologia é a relação entre as partes e o todo cuja base está em Platão, em Aristóteles, em Tomás de Aquino, ou seja, é a base de toda a teologia medieval. Esse primeiro tripé do livro é explorado de modo bastante ensaístico e pouco filosófico e sistemático. Tento explorar, no fundo, a questão das superfícies, a questão da leveza, de uma leveza abissal, porque se tudo se relaciona, somos partes de partes de um todo que não se fecha e de um universo que é constituído pelo tecido de partes, como uma poeira cósmica. O pensamento sobre as partes e a noção de não totalização possível é um pensamento abissal. Como se a superfície fosse o ápice da abissalidade porque não há uma divisão entre superfície e profundidade. Se entendermos que os fenômenos são poeira cósmica, a concepção dos fenômenos e dos seres como poeira cósmica será uma concepção abissal.

Na segunda parte, sobre mesologia e pluriverso, trago a noção dos pluriversos. Esse é um conceito central para a mesologia, que vem de William James, um autor central. Outro autor central nesta perspectiva é Alfred North Whitehead, para quem toda a filosofia ocidental é uma nota de rodapé a Platão. Eu diria que toda a filosofia que começa agora e que vai se projetar ao longo dos próximos dois mil anos será uma nota de rodapé a Whitehead, que é o Platão do terceiro milênio. Tenho um interesse imenso pela obra dele, que é um filósofo do organismo. Em Processo e realidade: ensaio de cosmologia, sua obra mais importante, ele desenvolve uma cosmologia organicista, uma cosmologia cujo compromisso é pensar a partir da matriz dura e processual de indiscernibilidade, de irredutibilidade, de complexidade, de um devir outro das substâncias que nunca consiga ser domesticado pelo conceito. Por isso, Isabelle Stengers define Whitehead como o pensador selvagem dos conceitos, um criador selvagem de conceitos. Na verdade, Deleuze e Guattari são praticamente continuadores da filosofia do processo de Whitehead. Deleuze chegou a expressar que Whitehead é o último grande filósofo da tradição de língua inglesa.

Outro filósofo importante desta parte é Jakob von Uexküll, famoso filósofo da biologia, estoniano, que revolucionou a biologia ao pensar nos meios circundantes e ao pensá-los como sendo necessários para repensar toda a taxonomia e estrutura taxonômica da biologia e dos seres vivos. Obviamente que em tudo isso que estou dizendo a figura de Darwin é central. É um pouco redundante dizer, mas a teoria darwiniana será lida daqui três, cinco mil anos porque é uma das teorias mais importantes da história. Existem algumas mediações interessantes na teoria da evolução que são feitas por filósofos organicistas e pelo novo pensamento mesológico e da complexidade que se desenvolve a partir do século XXI. Nessa segunda parte do livro, tento fazer um torneio no sentido de tourear alguns conceitos e proponho a criação de alguns neologismos para enfatizar o espectro e o aspecto criativo dos conceitos: cosmorfologia, tecnocnoses, mesopolítica, paleontologia, cosmobiologia, politanatologia, pananemismo, entre outros. Esses são conceitos para descrever novos campos conceituais. Eles são pouco específicos e são aderentes a diversos autores, conceitos, obras, mas têm uma certa especificidade. É preciso explorá-la lhes concedendo uma certa especificidade terminológica para que entendamos qual é o ponto da especificidade conceitual que eles estão recobrindo.

Por fim, a terceira parte do livro, mesologia e hominização, é a tentativa de, a partir da teoria dos mesons, fornecer uma base para a compreensão da hominização não apenas no sentido da vida e dos seres vivos de modo geral. Seria mais uma tentativa de tentar pensar a especificidade da narrativa humana, ou seja, qual é a narrativa possível a partir das mediações, a partir dos mesons, de como podemos pensar o processo de hominização, de formação dos hominídeos, do qual decorremos como humanos sapiens.

Como tudo está em aberto, a vida está em aberto, tudo está em devir, a humanidade do humano não se esgota no sapiens. A humanidade do humano é sempre um ser outro em relação ao próprio humano que somos. Como a humanidade é inclassificável – e houve múltiplas humanidades inclusive do ponto de vista biológico –, o que faz dos humanos, humanos, é um problema em aberto e que sempre vai ficar em aberto. Isso significa que ainda teremos novas maneiras de sermos humanos sapiens, novas humanidades e novas maneiras de ser humano de outras espécies que ainda vão surgir no horizonte, e novas humanidades possíveis no horizonte que devem se desdobrar. Acredito, creio e torço para que tenhamos ainda muitas narrativas e muito tempo de vida nesse universo.

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