Para o economista, esse pode ser uma dos caminhos para equalizar as finanças e assegurar o poder de compra dos mais pobres, eliminando com as imagens de pessoas que dependem da caridade e distribuição de comida
Se as primeiras gestões de Lula na presidência ficaram marcadas pelos bons ventos da economia global, o cenário para 2023 é bem diferente. O economista Ricardo Carneiro alerta que há vários aspectos que podem não só limitar as ações do governo, mas também agir como “possíveis gatilhos de transformação na ordem internacional e nas economias e sociedades dos diversos países”. De imediato, ainda antes de começar propriamente a entrevista que concedeu por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Carneiro detalha esses aspectos. São detalhes a serem observados, mas que nem de perto desanimam o também professor da Unicamp. “O mais importante de tudo é que vencemos, tanto para a Presidência da República quanto em vários estados da federação”, comemora.
Ainda assim, com os pés na realidade e com sobriedade, aponta os dois principais e imediatos desafios do governo recém-eleito. “Mitigar a crise social por meio da ampliação da política social e retomar o crescimento da economia. Só isso será uma tarefa gigantesca porque tanto o cenário internacional quanto o doméstico são desfavoráveis. A economia global está desacelerando rapidamente, já está prevista uma recessão para 2023. E há a possibilidade de que a recessão se converta em uma crise financeira, o que teria consequências ainda mais graves”, detalha. E também adverte: “no curto prazo, uma política anticíclica por meio da ampliação do gasto público é inescapável”.
Ao longo da entrevista, Carneiro observa que “do ponto de vista da economia, há duas instituições que são centrais que comandam e sintetizam o conjunto das disputas. O Congresso Nacional, tanto porque nele se aprova o orçamento quanto pela sua capacidade de definir a política fiscal no sentido mais amplo, e o Banco Central, que comanda a política de juros e cambial e que, no governo Bolsonaro, tornou-se independente”. Por isso, negociar, ter habilidade política devem ser palavras de primeira ordem no novo governo Lula. Do contrário, sem jogo de cintura com um parlamento de forte oposição e burocratas do sistema financeiro, as transformações podem ser brecadas.
E para quem está saudoso da chamada “inclusão pelo consumo”, uma das marcas dos governos Lula, tão criticada no passado, o professor faz questão de esclarecer: “É legítimo e correto ampliar o acesso da população mais pobre aos bens de consumo que fazem parte da vida contemporânea – eletrodomésticos e eletroeletrônicos. Mas isso não é tudo”. Por isso, defende a ampliação de acesso a bens públicos como saúde, educação, transporte e cultura. Coisa que, em sua opinião, Lula não ficou devendo no passado. “Não creio que os governos Lula tenham privilegiado a dimensão privada. Ocorre que é muito mais fácil e rápido ampliar a oferta e o consumo de bens privados, enquanto os bens públicos demoram mais, sobretudo se considerarmos a melhoria de sua qualidade. Mas isso também ocorreu”, resume.
Ricardo Carneiro (Foto: Arquivo pessoal)
Ricardo Carneiro é professor titular do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Possui mestrado e doutorado em Ciência Econômica pela mesma instituição. Foi diretor executivo pelo Brasil e Suriname do Banco Interamericano de Desenvolvimento, em Washington (2012-2016).
IHU – O senhor indica que, ainda antes da entrevista, é importante tecer algumas considerações. Quais são elas?
Ricardo Carneiro – As considerações sobre as questões mais imediatas, conjunturais, não devem perder de vista o plano dos aspectos mais profundos que estão sendo postos atualmente. Temas como o crescimento da extrema-direita nos países desenvolvidos, a crise climática, a disputa pela hegemonia global entre China e EUA nos planos comercial e tecnológico, o crescente protecionismo, a penalização das economias periféricas pelas políticas econômicas de combate à inflação dos países centrais, em particular dos EUA, o crescimento econômico reduzido desde a crise de 2008, a possível ocorrência de uma nova crise financeira global, são aspectos que devem ser tomados não apenas como limitações, mas também como possíveis gatilhos de transformação na ordem internacional e nas economias e sociedades dos diversos países.
IHU – Posto isso, como analisa o resultado das eleições?
Ricardo Carneiro – O mais importante de tudo é que vencemos, tanto para a Presidência da República quanto em vários estados da federação. Se considerarmos os candidatos da frente ampla e aqueles que apoiaram o Lula, fizemos um número expressivo de governadores. Mas os resultados das eleições para o Congresso Nacional não foram os melhores.
A despeito dos partidos de esquerda terem ampliado suas bancadas, a centro-esquerda e o centro encolheram e a extrema-direita e a direita cresceram. Fica a constatação também de que a extrema-direita, que se expressa no bolsonarismo, mostrou-se como uma força política importante, muito mais do que gostaríamos e tínhamos previsto.
IHU – Quais os maiores desafios do governo eleito e como os enfrentar?
Ricardo Carneiro – De imediato, temos dois desafios: mitigar a crise social por meio da ampliação da política social e retomar o crescimento da economia. Só isso será uma tarefa gigantesca porque tanto o cenário internacional quanto o doméstico são desfavoráveis. A economia global está desacelerando rapidamente, já está prevista uma recessão para 2023. E há a possibilidade de que a recessão se converta em uma crise financeira, o que teria consequências ainda mais graves.
No plano doméstico, temos uma economia praticamente estagnada, cujo crescimento, em 2022, foi fruto de anabolizantes, ou seja, das medidas eleitoreiras da dupla Guedes-Bolsonaro. Em resumo, os impulsos para o crescimento são negativos ou muito fracos, se não houver políticas ativas, de estímulo, iremos para a recessão.
IHU – Qual deve ser a política econômica adotada pelo governo Lula? Que nomes e pensadores parecem estar orientando as ideias da área econômica da campanha e, agora, do governo eleito?
Ricardo Carneiro – Com os estímulos fracos oriundos da dinâmica da economia, a política econômica terá um papel ainda mais importante. No curto prazo, uma política anticíclica por meio da ampliação do gasto público é inescapável.
Já o perfil da política econômica mais estrutural irá depender muito de como vai evoluir a correlação de forças no âmbito da frente ampla. Há alguns temas recorrentes e consensuais tais, como o formato da política social, a reforma tributária, a reforma trabalhista, a inserção externa e os setores econômicos prioritários.
O programa de governo apresentado pelo PT na campanha detalhou pouco esses temas, mas os economistas progressistas, think tanks e entidades da sociedade civil têm uma reflexão importante e propostas elaboradas nesses vários temas. Mas não há consenso sobre os conteúdos e as prioridades dessas ações nas diversas forças políticas e sociais que compõem a frente. Certamente, haverá uma resultante dessas negociações, mas é difícil antecipar exatamente qual.
IHU – A coalizão capitaneada por Lula e que o levou à vitória abriga um amplo espectro político que vai da esquerda à centro-direita. Quais os desafios para equalizar todos esses interesses? E que interesses estão em jogo?
Ricardo Carneiro – Do ponto de vista da economia, há duas instituições que são centrais que comandam e sintetizam o conjunto das disputas. O Congresso Nacional, tanto porque nele se aprova o orçamento quanto pela sua capacidade de definir a política fiscal no sentido mais amplo, e o Banco Central, que comanda a política de juros e cambial e que no governo Bolsonaro se tornou independente. O governo não terá controle sobre ambas as instituições e precisará negociar bastante para levar adiante suas políticas – de um lado com os parlamentares, e de outro com os burocratas que representam o poder financeiro.
Do ponto de vista substantivo e imediato, há dois temas na mesa: com o Congresso, o teto de gastos; com o Banco Central, a política de juros. Para assegurar um bom começo do governo, é essencial conseguir viabilizar a política anticíclica que depende dessas negociações.
IHU – Sobre o tal mercado, esse ente abstrato e de grande poder no Brasil, como projeta a relação entre ele o novo governo Lula?
Ricardo Carneiro – O mercado, na verdade o mercado financeiro, tem as suas instituições – bancos, bancos de investimento, gestoras de recursos, corretoras, bolsas de valores, associações, think tanks – e se constitui no poder dominante na sociedade, com grande capacidade de pressão e persuasão no aparelho de Estado e na sociedade. Assim, influencia a sociedade por meio da mídia, o Congresso e o Banco Central.
A síntese das demandas do mercado é a baixa inflação. Até aí, nenhum problema, pois ela também interessa à sociedade e aos trabalhadores. O problema é a forma de conseguir essa baixa inflação. Para o mercado, ela é um valor absoluto e deve ser perseguida mesmo com elevados custos em termos de produção e emprego. Isto é mais grave numa economia periférica, onde os preços são parcialmente dolarizados e o controle da inflação, pela via exclusiva das taxas de juros, pode impor ônus muito altos em termos de emprego e renda.
Em minha opinião, o governo Lula deveria negociar com o mercado novos parâmetros para a política de metas de inflação, como o índice a ser controlado, e uma maior permeabilidade do Banco Central a outros interesses na gestão dessa política.
IHU – Já no próximo ano, o governo Lula tem o desafio de gerir um orçamento gestado pelo governo Bolsonaro, recheado de cortes e contingenciamentos. Como enfrentar esse desafio, tendo um parlamento com uma ampla base bolsonarista?
Ricardo Carneiro – De um ponto de vista econômico, eu não enxergo restrições substantivas à gestão do orçamento no próximo ano. Primeiro, a dívida pública está sob controle. Segundo, a herança ruim da gestão Guedes diz mais respeito ao padrão errático e eleitoreiro das contas públicas com o qual será necessário lidar. A conta para o próximo ano, de gastos adicionais (R$ 100 bilhões), inclui manutenção do Auxílio Brasil em R$ 600,00 (R$ 50 bilhões) e precatórios (R$ 50 bilhões). Mas ela vai engordar, pois certamente o governo Lula vai ampliar o Auxílio, aumentar o salário-mínimo e corrigir os salários dos servidores, além de recuperar alguns gastos cruciais para saúde e educação.
A conta inicial deve dobrar, ou seja, chegar a R$ 200 bilhões ou 2% do PIB. Mas, essa política de gastos deve propiciar a retomada do crescimento da economia e, ao fazer crescer a receita, limitar o crescimento do déficit, pois o governo Bolsonaro concedeu uma série de bondades/isenções fiscais, inclusive no plano estadual, e Lula já prometeu isentar o Imposto de Renda até R$ 5.000,00. Estas isenções implicariam uma perda de arrecadação, se não houver a retomada mais forte da economia.
IHU – Durante a campanha de Lula, quase no mesmo tom em que se fala em extinguir o teto de gastos, sugeria-se a adoção de outros mecanismos de controle fiscal. Como observa essa dualidade? E seriam realmente só essas duas possibilidades da orientação de uma política econômica?
Ricardo Carneiro – O tema de uma nova âncora fiscal como sucedâneo do teto de gastos é recorrente e tem um duplo significado: o da dívida pública e o da carga tributária. A dívida pública é a contraparte da riqueza privada. Logo, definir as condições de sua sustentabilidade interessa a todos os proprietários da riqueza financeira. Isso inclui setores de classe média e trabalhadores mais bem remunerados, que possuem poupança financeira, sob a forma de fundos de pensão. O tema é legítimo, mas há divergências sobre o que é uma dívida sustentável; seu tamanho, perfil, etc.
O outro aspecto é o da carga tributária. O teto de gastos atual no Brasil teve, como uma das suas motivações, propiciar a redução dos gastos públicos e da carga tributária. Essa não é uma proposta das forças democráticas que enfatiza a sua redistribuição entre grupos sociais, tributando mais os ricos. Ou seja, a nova âncora fiscal deveria ter uma preocupação explícita com a sustentabilidade da dívida, mas ser neutra em relação à carga tributária.
IHU – Apesar do grande sucesso econômico, os primeiros governos Lula foram criticados por defender a chamada inclusão social pelo consumo. Quais os limites de uma política econômica nestes moldes? Em que medida este fator deve/pode estar no novo governo?
Ricardo Carneiro – Do ponto de vista econômico, a inclusão social tem uma dupla dimensão: a ampliação ou acesso ao consumo de bens privados e de bens públicos. Elas são complementares. É legítimo e correto ampliar o acesso da população mais pobre aos bens de consumo que fazem parte da vida contemporânea – eletrodomésticos e eletroeletrônicos. Mas isso não é tudo. A ampliação do acesso aos bens públicos – saúde, educação, transporte, cultura etc. – também é crucial.
Não creio que os governos Lula tenham privilegiado a dimensão privada. Ocorre que é muito mais fácil e rápido ampliar a oferta e o consumo de bens privados enquanto os bens públicos demoram mais, sobretudo se considerarmos a melhoria de sua qualidade. Mas isso também ocorreu.
IHU – Nos discursos após a vitória, Lula tem insistido que governará com atenção aos mais pobres, que o “pobre voltará a caber no orçamento”. O que realmente isso significa e como imagina que deva ocorrer?
Ricardo Carneiro – As políticas de gastos do governo, além da tributação, podem ter um componente redistributivo importante. Incluir o pobre no orçamento significa privilegiar políticas direcionadas a esse segmento da população. Há várias políticas que atendem a esse objetivo. As principais são: as políticas de transferência de renda e a de reajuste do salário-mínimo.
As políticas de transferência de renda são direcionadas aos muito pobres e, se bem desenhadas, têm um impacto muito significativo na redução da pobreza, como já ocorreu. O reajuste do salário-mínimo atinge um espectro mais amplo, pois é o critério de correção da política de assistência social e de parcela das aposentadorias, além de melhorar a distribuição da renda, via salários.
Afora essas políticas, há um conjunto de políticas específicas, sobretudo de viabilização de acesso diferenciado – crédito, saúde, educação –, que melhoram a renda e a vida dessa população.
IHU – Qual a viabilidade ou como construir essa viabilidade do reajuste do salário-mínimo defendido na campanha de Lula?
Ricardo Carneiro – A fase heroica relativa ao salário-mínimo nos governos Lula, durante a qual foram concedidos aumentos reais de cerca de 70%, já passou. Ela foi necessária, pois o salário-mínimo havia perdido muito poder de compra na década de 1980 e na primeira metade da década seguinte, com uma leve recuperação nos governos de Fernando Henrique Cardoso. Agora, trata-se de praticar uma regra de reajuste que assegure não só a correção, mas também um ganho do valor real. Há várias regras possíveis para conseguir esse objetivo. É provável que seja adotado um critério de correção pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor – INPC e acrescentar como ganho real o crescimento médio do produto interno bruto de anos anteriores.
IHU – Um dos pontos que muitos economistas indicam como fator para estagnação econômica do Brasil há anos é a desindustrialização. Que política industrial imagina que deva ser assumida para reavivar a indústria nacional diante das transformações do século XXI?
Ricardo Carneiro – A desindustrialização e a reindustrialização, o seu antídoto, são temas centrais para o desenvolvimento brasileiro. É impraticável pensar em desenvolver o país sem uma contribuição mais decisiva da indústria. Porém não é trivial.
O novo paradigma da indústria no capitalismo contemporâneo – as cadeias globais de valor – criou obstáculos ao avanço da indústria na periferia. Com a exceção da China, a maior parte da industrialização desses países avançou apenas nos segmentos de baixo desenvolvimento tecnológico, fornecendo partes e peças para o núcleo da indústria instalada nos países centrais. O desafio do Brasil, como um país de grande população e força de trabalho, é amplo: incorporar novos segmentos, adensar cadeias produtivas, ampliar a competitividade. Aqui a questão reside em definir prioridades, como as sugeridas por pesquisadores da UNICAMP.
IHU – Ainda sobre transformações do século XXI, uma das mais cruéis tem relação com o mundo do trabalho. Qual sua análise quanto ao que Lula tem dito sobre a proteção social aos trabalhadores neste contexto de informalidade e uberização? Quais são os caminhos para a construção dessa rede de proteção?
Ricardo Carneiro – Neste caso, o aspecto crucial é a precarização do trabalho. Ele resultou de dois processos simultâneos: das mudanças tecnológicas e da desregulação do trabalho. Para lidar com as primeiras e evitar a precarização ou revertê-la, é necessário haver uma nova regulação das relações de trabalho.
Principalmente para os trabalhadores de aplicativos, algumas medidas seriam indispensáveis: a definição de um valor mínimo de remuneração por tempo ou tarefa; a criação de cooperativas com o apoio do poder público para se contrapor às grandes operadoras; financiamento a juros baixos dos equipamentos pertinentes; institucionalização de programas de garantia de renda.
IHU – Outro tema sempre em voga na troca de governo são as reformas, inclusive já citadas pelos presidentes da Câmara e do Senado em entrevistas de avaliação do pleito. Nesse sentido, de quais reformas o Brasil efetivamente precisa e como implementá-las?
Ricardo Carneiro – As reformas dependerão da capacidade de pressão da sociedade e de negociação no congresso. A lista é ampla. Do ponto de vista econômico, há uma crucial e inadiável: a reforma tributária. Isto para atender os objetivos de tornar o sistema econômico mais eficiente, sobretudo para introduzir, no Brasil, um princípio fundamental do financiamento do setor público: a progressividade.