A política de renda básica continua sendo emergencial. Entrevista especial com Débora Freire

Segundo a economista, programas sociais de renda básica "serão muito necessários pós-Covid" e precisam ser elaborados tendo em vista o enfrentamento das desigualdades sociais e a recuperação econômica

Foto: Hypeness

27 Julho 2021

 

A experiência do Auxílio Emergencial concedido no ano passado, que repassou parcelas de até 1.200 reais para os beneficiários, indica a urgência desse tipo de política no país para enfrentar o aumento da pobreza. "Na minha concepção, a política de renda básica continua sendo emergencial e vai ser emergencial pós-crise. Teremos que discutir o aprofundamento da proteção social no Brasil se não quisermos perenizar o aumento da pobreza e da desigualdade que vai aumentar quando acabar o Auxílio Emergencial ", diz Débora Freire.

 

No ano passado, a economista fez um estudo acerca dos impactos da renda básica emergencial tanto na vida das famílias que receberam o benefício quanto na própria dinâmica da economia. "Observamos um impacto de quase 50% na renda das famílias mais pobres, aquelas que recebem de zero a um salário mínimo. Essas foram as famílias mais atendidas pelo Auxílio Emergencial. Para algumas delas, o auxílio mais do que cobriu a perda de renda naquele período. Também percebemos impactos nas classes que recebem de dois a três salários mínimos. Chamo a atenção para os impactos positivos em famílias que não são elegíveis do programa, que não recebem diretamente a transferência de renda. Esse é um impacto importante dos programas de transferência de renda e acontece porque as famílias que recebem o benefício diretamente estão na base da pirâmide e gastam sua renda em consumo. Então, elas aumentam o seu consumo e isso significa mais venda, ou seja, os setores produtivos têm que produzir mais para atender aquela demanda e, ao produzirem mais, empregam mais capital e temos mais geração de renda na economia", ressalta.

 

No ano passado, Débora Freire participou do evento "A Renda Básica Universal (RBU) para além da justiça social", promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Na palestra "Renda Básica Universal. Combate à desigualdade e busca da justiça social na experiência brasileira", ela defende a construção de um "aparato de proteção social que consiga se ajustar rápido às crises, visto que a população informal e uberizada tem uma característica de muita volatilidade nos seus rendimentos, e toda vez que os rendimentos tendem a ser reduzidos seria possível fazer alguma transferência imediata para as famílias".

 

A seguir, reproduzimos a conferência no formato de entrevista.

 

Débora Freire (Foto: Reprodução | Youtube)

Débora Freire é graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de São João del-Rei - UFSJ, mestra em Economia Aplicada pela Universidade Federal de Viçosa - UFV e doutora em Economia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais - CEDEPLAR/UFMG. É professora adjunta do Departamento de Ciências Econômicas da UFMG.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Quais as principais conclusões da pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos em Modelagem Econômica e Ambiental Aplicada - Nemea sobre o Auxílio Emergencial?

Débora Freire – Fizemos um estudo no Nemea acerca dos impactos da renda básica emergencial e o olhar que trago, para além das questões sociais e do impacto nas desigualdades [gerado pelo auxílio], é o de olhar para programas sociais de renda básica como programas também de incentivo econômico e de incentivo à recuperação econômica, que serão muito necessários pós-Covid.

A discussão sobre a implementação de programas de renda básica já existia [antes da pandemia], muito por conta da dinâmica do mercado de trabalho que estamos observando nos últimos anos, como o aumento de empregos de pior qualidade e fenômenos de flexibilização no mercado de trabalho, conhecidos como uberização. Muitas pessoas, dada a crise econômica, especialmente no Brasil desde 2015, aceitam empregos de pior qualidade, com jornadas exaustivas e sem garantias de direitos – isso, de fato, piora o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas. Ao mesmo tempo, ocorre um processo de robotização que tem gerado uma substituição da mão de obra de trabalho por máquinas e fala-se de uma tendência em que não haverá emprego para todo mundo. Então, temos visto um aumento do desemprego. Nesse contexto, no mundo todo, a discussão sobre uma renda básica, sobre um nível mínimo de vida necessário para as pessoas, já estava ganhando forma há algum tempo, em razão dessas novas dinâmicas, mas ganhou outra perspectiva e velocidade por causa da pandemia de Covid-19.

 

 

Na pandemia, os programas de transferência de renda foram utilizados na maioria dos países que conseguiram ser exitosos na tarefa de garantir um nível mínimo de renda para as famílias. No Brasil, não foi diferente: implementou-se um programa de auxílio emergencial que foi, de fato, um sucesso do ponto de vista das políticas públicas na pandemia em relação ao eixo econômico. Foi a política mais exitosa. No entanto, as transferências de renda foram reduzidas e não há perspectiva da continuação deste programa ou da implementação de um programa diferente. Também não sabemos, do ponto de vista da saúde, o que vai acontecer. Não sabemos até quando esta crise vai durar e, do ponto de vista econômico, a recuperação tende a ser lenta. Ao mesmo tempo, vemos uma discussão muito truncada e difícil de ser feita no âmbito federal, que não tem previsto no orçamento o que vai ser feito. O governo tem “batido muito a cabeça” [para encontrar formas] de como financiar uma renda básica, mas essa discussão não tem avançado na medida que precisa.

 

 

IHU – Como, a partir do Auxílio Emergencial, foi possível fortalecer minimamente o sistema de proteção social?

Débora Freire - Gostaria de destacar as potencialidades do tipo de transferência de renda, como a renda básica emergencial, para que possamos pensar novas perspectivas a respeito do aprofundamento da proteção social no Brasil, que vai ser necessário.

Não voltaremos para o mundo anterior e, muito provavelmente, teremos um mundo com muito mais desigualdades e com uma dificuldade de recuperação econômica muito expressiva. Na minha concepção, a política de renda básica continua sendo emergencial e vai ser emergencial pós-crise. Teremos que discutir o aprofundamento da proteção social no Brasil se não quisermos perenizar o aumento da pobreza e da desigualdade que vai aumentar quando acabar o Auxílio Emergencial.

A renda básica emergencial teve tanto sucesso, que conseguiu neutralizar o impacto da crise nas famílias. Não tivemos até hoje políticas tão distributivas como foi o Auxílio Emergencial no Brasil, mas tão logo o benefício acabe, vamos ver a face da desigualdade. Precisamos discutir possibilidades de políticas, de desenho de renda básica, e de financiamento.

 

 

Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde - OMS declarou a pandemia de Covid-19, e o Brasil teve um tempo para se ajustar, para tentar antever os efeitos da Covid. Mas, de fato, não aproveitamos esse tempo para nos planejarmos de maneira adequada. Do ponto de vista das medidas em relação aos impactos econômicos e das políticas a serem adotadas, primeiro, ouvimos declarações de que o governo continuaria com a agenda de austeridade, não mudaria os rumos da política econômica por conta da pandemia, o que de fato era um contrassenso, porque todos sabiam que a realidade iria se impor, a crise iria chegar e precisaríamos de um Estado fazendo política contracíclica, ou seja, aumentando os gastos estatais com saúde e proteção social. Já se sabia que isso deveria ser feito, mas o governo teve dificuldade de fazê-lo. Depois, o governo foi ajustando suas expectativas e anunciou que algumas medidas seriam tomadas, como a expansão do Bolsa Família, mas ainda havia uma incredulidade em relação aos impactos da crise. O ministro da Economia chegou a dizer que com oito bilhões seria possível dar conta da crise, mas hoje já se sabe que [aquilo] era uma fantasia, porque dada a magnitude dos gastos públicos que foram necessários e ainda são, aquela visão do início da crise era totalmente equivocada.

 

Impacto da pandemia na renda das famílias

Quando de fato foi decretada a pandemia de Covid-19, o nosso grupo de pesquisa reorientou sua agenda para avaliar os impactos sociais da pandemia. Nos perguntamos se o impacto seria homogêneo entre as pessoas e as famílias. Primeiramente, tínhamos um discurso de que por se tratar de uma crise sanitária, ricos e pobres enfrentariam a crise da mesma maneira. Obviamente, já sabíamos que isso não iria acontecer, do ponto de vista tanto da saúde como da economia.

Do ponto de vista da saúde, já sabíamos que a população mais pobre e vulnerável seria mais impactada, porque são pessoas que moram em condições mais precárias, vivem em locais com uma densidade populacional muito maior, aglomeradas, com mais dificuldade de acesso a serviços de saúde e a produtos de higiene que são necessários para tentar evitar o contágio e, além disso, pegam transporte público para ir trabalhar e não conseguem evitar aglomerações.

Do ponto de vista econômico, tentamos responder quão heterogêneo seria o impacto na renda das famílias, advindo de um cenário recessivo, que seria inevitável dada a crise de Covid-19. A nossa pergunta foi: como a queda de 1% no emprego impacta a renda das famílias por classes de renda? Para responder a essa pergunta, utilizamos um modelo de simulação – o qual desenvolvi na minha tese de doutorado – que mapeia os fluxos econômicos, como se fosse uma fotografia de toda a economia, mapeando os fluxos de vendas e compras entre setores produtivos, as famílias e o governo; as transferências de renda entre as famílias – como os setores produtivos remuneram as famílias na forma de renda do trabalho e do capital; e como essa renda é distribuída por classes de renda.

Do ponto de vista agregado, vimos que a queda de 1% no emprego se relacionaria a uma queda de 1,4% do PIB e a uma queda de 1,1% na renda disponível das famílias. Mas o nosso interesse era avaliar como esse impacto heterogêneo se daria do ponto de vista da renda das famílias por classes de renda, já que o modelo permitia essa análise. Conseguimos perceber que uma crise recessiva de 1% de queda no emprego afetaria a renda das famílias mais pobres – estamos considerando 11 classes de renda. Nas duas primeiras classes de famílias, que recebem até um salário mínimo e até dois salários mínimos, observamos que o impacto da recessão é 20% maior do que o impacto médio na renda das famílias de modo geral. Ou seja, projetamos que a renda das famílias mais pobres seria mais afetada do que a renda da maioria porque essa crise atingiu principalmente o setor de serviços, que emprega uma proporção maior de trabalhadores informais, com mão de obra menos qualificada e, portanto, a maior parte das famílias mais pobres trabalha no setor de serviços. Enquanto as famílias mais pobres têm uma renda menor e dependem exclusivamente da renda do trabalho e das rendas de transferência, as famílias mais ricas têm renda proveniente de rendimentos de capital, de ativos financeiros. Dada essa diferença, é mais impactado quem depende da renda do trabalho. Essas famílias precisariam ser auxiliadas porque, do contrário, aumentaria muito a desigualdade no país.

 

Implementação do Auxílio Emergencial

Primeiro, o Ministério da Economia anunciou um auxílio no valor de 200 reais para os autônomos. Já se sabia que isso seria insuficiente. O governo teve muita dificuldade de entender como conceder o auxílio: se iria utilizar o CadÚnico e como poderia expandi-lo. No entanto, a sociedade civil e os pesquisadores se mostraram muito participativos e pressionaram o Congresso para que votasse um benefício que fosse suficiente para lidar com a crise, visto que 200 reais era um valor insuficiente. O Congresso votou a renda básica emergencial de 500 reais, o governo acabou passando o valor para 600 reais, que foi aprovado no Senado.

 

IHU - Quais foram os impactos desse programa na economia?

Débora Freire - A pergunta da nossa pesquisa era: a renda básica emergencial é uma resposta suficiente aos impactos econômicos da pandemia de Covid-19 no Brasil? O nosso intuito era avaliar o impacto do auxílio na renda das famílias, mas também na economia, visto que, ao nosso ver, os impactos econômicos dos programas de transferência de renda têm de ser considerados. Esse tipo de política atua não apenas para diminuir a vulnerabilidade social das famílias no momento, mas como uma política de atenuação dos impactos da pandemia. Isso é importante de avaliar porque nos mostra os potenciais de um programa de renda básica para a recuperação econômica e como esses programas têm servido também do ponto de vista econômico e não apenas social.

Nós utilizamos aquele mesmo modelo de simulação que foi desenvolvido na minha tese de doutorado para simular os impactos da renda básica emergencial. No entanto, o adaptamos para um modelo trimestral – ele era anual – para captar os efeitos do trimestre e de curto prazo do programa. A estratégia de simulação mesclou duas bases de dados: a base de microdados do CadÚnico e os microdados da Pnad para mapear quem seriam os potenciais elegíveis para o programa, para conseguirmos mensurar os choques de transferência de renda que estabeleceríamos no nosso modelo.

O modelo tem 11 classes de renda e analisamos separadamente as três primeiras classes, que são as famílias que recebem de zero a três salários mínimos e que seriam contempladas pelo Auxílio Emergencial. Usando e mesclando essas bases de dados, estabelecemos os filtros usados pelo governo para determinar a elegibilidade para o programa: o indivíduo deveria atender a todos os pré-requisitos estabelecidos, como ser maior de 18 anos, não ter emprego formal, não receber benefício previdenciário ou assistencial, exceto o Bolsa Família, ter renda familiar de até meio salário mínimo per capita ou até três salários mínimos totais e não ter recebido acima de 28.559 reais no ano anterior. Deveria também ou ser microempreendedor individual ou contribuir individualmente para o FGTS ou ser um trabalhador informal, tanto desempregado como autônomo, inscrito no CadÚnico, ou por meio de autodeclaração, que foi feita via aplicativo. Conseguimos chegar a um número de beneficiados muito próximo ao número projetado pelo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea e pelos dados divulgados pelo Dataprev. Posteriormente, o benefício atingiu um contingente populacional muito maior.

A estratégia de simulação que fizemos contemplou dois cenários: a renda básica emergencial nos três primeiros meses previstos, e depois analisamos um cenário sem o benefício.

 

 

Resultados

Observamos um impacto de quase 50% na renda das famílias mais pobres, aquelas que recebem de zero a um salário mínimo. Essas foram as famílias mais atendidas pelo Auxílio Emergencial. Para algumas delas, o auxílio mais do que cobriu a perda de renda naquele período. Também percebemos impactos nas classes que recebem de dois a três salários mínimos. Chamo a atenção para os impactos positivos em famílias que não são elegíveis do programa, que não recebem diretamente a transferência de renda. Esse é um impacto importante dos programas de transferência de renda e acontece porque as famílias que recebem o benefício diretamente estão na base da pirâmide e gastam sua renda em consumo. Então, elas aumentam o seu consumo e isso significa mais venda, ou seja, os setores produtivos têm que produzir mais para atender aquela demanda e, ao produzirem mais, empregam mais capital e temos mais geração de renda na economia. Uma vez que a distribuição de renda na economia entre as famílias é concentrada, os principais beneficiários indiretos desses programas de transferência de renda são as famílias que estão nas classes superiores. Esse efeito positivo para as famílias que recebem mais de três salários mínimos é um dos impactos indiretos da renda básica emergencial na economia.

 

Impactos macroeconômicos

Uma vez que esse tipo de programa gera impacto na renda das famílias, gera também efeitos macroeconômicos. Isso porque estimula o consumo das famílias que, por sua vez, gera um estímulo à produção de renda na economia, que se transforma em impactos macroeconômicos. Temos impactos no PIB, no consumo das famílias, no emprego e no investimento. Observamos um impacto positivo no PIB, de 0,44%, no primeiro trimestre, mas no cenário em que a renda básica fosse retirada, haveria uma queda nesses impactos, que perduraria ao longo do próximo ano (2021).

 

 

Dado o cenário econômico recessivo, o programa de renda básica emergencial teve o efeito de mitigar a recessão e a crise econômica, uma vez que gerou um impacto positivo no PIB e nas demais variáveis macroeconômicas. Se não fosse o Auxílio Emergencial, teríamos tido uma recessão econômica muito maior. Esse foi um programa muito importante, pois o consumo se manteve aquecido, apesar da crise. A queda do consumo foi muito menor do que se não houvesse a renda básica emergencial.

 

Financiamento

Uma questão importante das simulações é que nesses cenários nós consideramos o financiamento dessa política como de fato foi colocado em prática, por meio do endividamento público. Sabemos que os gastos para enfrentar a crise estão sendo financiados com o aumento do endividamento e, exatamente por isso, temos impactos maiores do ponto de vista econômico. Por que digo isso? Porque se tivéssemos que financiar a política com algum recurso como, por exemplo, impostos, teríamos um choque negativo na economia e os impactos seriam menores. Os efeitos [do Auxílio Emergencial] seriam maiores e teríamos um impacto ainda mais positivo se tivéssemos um financiamento baseado na tributação dos mais ricos, porque eles consomem uma maior parte da sua renda.

É importante ressaltar que o auxílio é uma política emergencial. Para pensar uma renda básica permanente, vai ser necessário algum tipo de ajuste e de mapeamento de fonte de financiamento. Não se financia uma política permanente com endividamento público. Então, precisamos pensar de onde tirar o recurso para desenhar uma política de renda básica permanente.

 

 

IHU – Quais setores econômicos foram impactados pelo Auxílio Emergencial?

Débora Freire - Esse tipo de transferência de renda para as famílias tem potencial de atingir setores produtivos de forma assimétrica porque eles têm participação distinta no consumo das famílias. Alguns setores têm uma participação muito mais efetiva. Quando consideramos as famílias em classes de renda, essa composição também muda porque enquanto as famílias de classe mais baixa gastam a renda em alimentação, serviços pessoais e eletrodomésticos, as famílias de classe mais alta têm uma cesta de consumo média diferente: elas consomem viagens, combustível, ou seja, têm outro perfil e padrão de consumo. Como as famílias de classes mais baixas foram as principais atingidas pelo auxílio, consequentemente o programa atingiu os setores de eletrodomésticos, de perfumaria, higiene e limpeza, de artefatos de couro e calçados, de saúde, de vestuário, de alimentos e bebidas. O setor de comércio foi muito afetado pela crise de Covid-19, mas o Auxílio Emergencial foi um programa de estímulo também para o setor.

Outro impacto do Auxílio Emergencial diz respeito à arrecadação do governo. O sistema econômico é integrado e muitas vezes fazemos algumas confusões em relação ao orçamento público, que não é igual ao orçamento familiar. Ou seja, a família gasta aquilo que ela tem de renda, mas o governo tem uma especificidade diferente: ele tem a capacidade de afetar a sua receita com seus gastos. O governo é um setor demandante da economia e, quando ele amplia os gastos, faz com que a economia se aqueça e gere o ajuste da produção dos setores produtivos para atender a demanda crescente. Esse novo cenário gera mais renda e, consequentemente, há um aumento na arrecadação de impostos. Então, o governo tem a capacidade de arrecadar e afetar a sua arrecadação.

 

 

Em função disso, chamamos a atenção para este resultado: a política de renda básica tem o efeito de, em partes, se autofinanciar, porque uma vez que o governo transfere renda para as famílias, a arrecadação do governo também vai ser afetada pela política. Segundo nossos cálculos, em três meses de renda básica emergencial, 24% do custo da política seria coberto pelo “desvio” que ela gera na arrecadação do governo. Ou seja, teríamos um efeito autoalimentador da política na receita do governo, que deveria ser considerado. Obviamente, a política não gera mais arrecadação do que o seu custo, mas no caso de uma política emergencial, o valor coberto seria de 24%. Então, é preciso considerar o custo líquido dessas políticas e não o custo bruto. O auxílio é primordial para as novas dinâmicas econômicas pós-Covid-19 exatamente porque essa nova dinâmica de desigualdades tende a se acelerar depois da pandemia.

 

IHU – Quais os desafios de instituir uma renda universal e incondicional?

Débora Freire - Quando falamos de renda básica, estamos falando de uma transferência de renda regular, incondicional e universal, ou seja, todos podem recebê-la. Mas a forma de financiamento é via imposto de renda: as famílias de classes mais altas seriam contribuintes líquidos, porque elas poderiam receber o benefício, mas teriam que pagar por ele no imposto de renda, ao passo que as famílias mais pobres seriam beneficiados líquidos, porque são isentas do imposto de renda.

A renda mínima diz respeito a programas focalizados, segundo critérios de renda, como o Bolsa Família, em que as pessoas precisam ter um limite de renda para receber o benefício, e também são condicionais porque tem alguma contrapartida, como as crianças terem que estar na escola para a família receber a renda etc. Os programas também podem ter focalização indireta, ou seja, crianças, idosos, famílias com crianças. Essa proposta tem sido muito discutida, visto que um programa de renda básica, inicialmente, é de difícil implementação porque é muito amplo. Teríamos que começar com programas com desenhos menores e, a partir das melhoras econômicas e fiscais, ir expandindo os programas. Poderíamos pensar na universalidade em um determinado tipo de focalização, como crianças, por exemplo. Ou seja, todas as famílias que têm crianças receberiam o benefício. Atingiríamos principalmente os mais pobres, visto que as famílias com mais crianças são as mais pobres, e teríamos um esquema de contribuintes e beneficiários líquidos. Também tem uma discussão importante acerca de uma renda para os jovens, porque as famílias com jovens costumam ser mais vulneráveis. Nesse sentido, a renda poderia ser estendida posteriormente aos jovens e depois aos idosos, por exemplo. Alguns desenhos estão sendo discutidos, principalmente na academia brasileira. O grande problema é o financiamento exatamente porque o governo tem sido reticente em fazer uma reforma tributária que angarie recursos dos mais ricos, que hoje são subtributados.

 

 

Poder de barganha

Além de combater a pobreza e a desigualdade, a renda básica tem a característica de dotar o cidadão de poder de barganha e, talvez, essa seja uma característica muito importante para os tempos atuais, visto as dinâmicas do mercado de trabalho. O trabalhador tem perdido muito poder de barganha e muitas pessoas estão trabalhando de forma precária, com jornadas exaustivas, sem nenhum tipo de direitos. Em geral, as pessoas aceitam essas condições uma vez que não conseguem encontrar empregos em outras atividades.

Vejo a renda básica como uma política que não só vai auxiliar a recuperação da economia, como vai ajudar no processo de dotar o cidadão de poder de barganha, garantindo a ele um nível de renda mínimo. Com esse nível de renda mínimo, poderá barganhar melhores condições de trabalho, visto que ele não depende fundamentalmente daquele trabalho que o explora para sobreviver e mitigar os problemas relacionados à oferta de emprego.

 

 

IHU - Quais são as perspectivas para a proteção social no Brasil?

Débora Freire - Será necessário algum tipo de proteção social, porque do contrário tende a se perpetuar uma situação de vulnerabilidade, de aumento da pobreza e da desigualdade. Só o Bolsa Família, nos seus moldes atuais, não será suficiente.

É preciso um aparato de proteção social que consiga se ajustar rápido às crises, visto que a população informal e uberizada tem uma característica de muita volatilidade nos seus rendimentos, e toda vez que os rendimentos tendem a ser reduzidos seria possível fazer alguma transferência imediata para as famílias. A grande questão, como comentei anteriormente, é como financiar esse tipo de programa. Existem as propostas de realocação de programas, sem alterar gastos, como acabar com alguns programas e canalizar isso para expandir o Bolsa Família ou criar um programa de renda básica. Tem ainda as propostas de financiar por meio da tributação dos mais ricos. Na minha concepção, o ajuste e a recuperação da economia brasileira têm que ser via sistema tributário e gasto social. Se redistribuirmos a renda dos pobres para os extremamente pobres ou a da classe média baixa para os pobres e extremamente pobres, estamos limitando o efeito progressivo da política e, consequentemente, limitando o impacto da política na economia ao mesmo tempo que tendemos a gerar crises sociais exatamente porque sabemos que esse equilíbrio não é estável. Uma vez que os mais ricos continuam com seus benefícios tributários, com as reduções no imposto de renda, com a isenção de lucros e dividendos para pessoa física, isso tende a gerar uma instabilidade muito grande, porque a classe mais rica mantém seu aparato econômico, inclusive, ganhando participação na renda nacional, ao passo que a classe média baixa está sendo muito afetada e comprimida para que a renda seja transferida para os mais pobres. Isso não é um equilíbrio viável.

O caminho mais viável economicamente e socialmente para financiar a renda básica seria a tributação dos mais ricos. A grande questão é: por que tanta resistência? Para fazer isso, precisamos rever e flexibilizar o teto de gastos. Não estou dizendo que não precisamos de regras fiscais, precisamos, sim, mas temos de ter uma regra que não trate o gasto de forma homogênea e que possibilite uma canalização do gasto para transferências sociais. O teto de gastos, ao limitar o crescimento real dos gastos a zero, elimina esse tipo de possibilidade de tributar mais os mais ricos e canalizar recursos para os mais pobres via um programa de transferência de renda. Nesse sentido, o imposto de renda de pessoa física é a potencial grande fonte de recursos para financiar uma renda básica.

 

 

 

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