Advogada revela que vivemos tempos de “violência estatal” em que, depois do aumento de casos de agressões, é preciso matar a fome para então lutar por Direitos básicos em meio ao desmonte de políticas públicas
Vivemos tempos sombrios no que diz respeito à violência doméstica e de gênero, talvez em um grau que jamais supúnhamos. Desde a eclosão da pandemia, tem se falado no aumento de casos em decorrência da necessidade do isolamento social. Mas a pandemia arrefeceu, e a violência não só segue em alta como quem já havia rompido com o ciclo de agressões agora se vê de novo nessa situação. “Com a chegada da pandemia, a Justiça e os serviços de atenção fecharam as portas. Foram para o trabalho remoto sem considerar a necessidade de ancorar as mulheres num momento como esse”, observa Márcia Soares, advogada e ativista da ONG Themis, que trabalha com vítimas de violência doméstica e de gênero.
Segundo Márcia, se levou muito tempo até que o Estado se organizasse para dar proteção a quem já vinha sofrendo violência, além dos novos casos. Com isso, ao longo desses mais de dois anos, muitas das medidas de proteção a mulheres, por exemplo, foram perdendo a validade. Ou seja, todo o sistema foi se tornando uma grande bola de neve. “Quando se consegue fazer a denúncia, não consegue estar na audiência. Quando consegue audiência e há concessão da medida protetiva, não tem quem faça o monitoramento da medida. Não adianta conceder uma medida e não ter ninguém para monitorar a presença do agressor. Isso tudo foi agravando os casos”, detalha, em entrevista concedida via Zoom ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
De outro lado, há ainda os casos de violência contra trabalhadoras domésticas. “O trabalho doméstico remunerado é a maior categoria de empregabilidade das mulheres brasileiras. Por isso e por outros motivos é a categoria que sustenta a autonomia financeira das mulheres”, pontua Márcia. Perceba a complexidade: mulheres que tinham independência financeira para sair de casa e romper com ciclo de violência perdem essa renda, enquanto as que não perdem são mantidas nas casas de empregadores quase como “escravas modernas”; logo, novos ciclos de violência se estabelecem sob um sistema de proteção combalido.
E o mais perverso de tudo ainda está por vir: o empobrecimento da população, a fome. “Eu estou com 57 anos, bem mais de 30 anos de ativismo, e não me lembro de ter passado por uma situação, no Brasil, como a que nós passamos, para além do problema da crise sanitária”, desabafa Márcia. “O empobrecimento da população - e das mulheres, especialmente - se agravou muitíssimo. Não temos como fazer um atendimento de uma mulher em situação de violência quando ela e os filhos estão passando fome. O que eu vou fazer?”, questiona a ativista.
Porém, em meio a tanto desassossego, Márcia ainda tem esperança, que para ela se converte em luta. A ativista tem clareza de que temos vivido um quadro de violência estatal que abandona vítimas e desmonta políticas públicas de atenção que há décadas vinham sendo construídas. “Era insuficiente, mas vínhamos num crescente de alguma forma. Só que chegou um momento, com a instituição do atual governo federal, que não só se estancou esse crescimento, como nos colocou num processo de retrocesso”, afirma. “Esse conservadorismo e os setores conservadores da sociedade hoje estão tomando para eles as nossas pautas e dando outro sentido para elas”, acrescenta.
Assim, Márcia soma forças com outros grupos para buscar proteger vítimas de violências, sem esquecer da fome, mas tendo em mente que é preciso ativismo para esclarecer muito bem o momento que estamos vivendo. “Não é qualquer momento, é um momento de violência estatal. Criminalização dos movimentos não é só uma expressão, isso é concreto hoje. Se era uma criminalização que se estabelecia a partir do discurso, hoje, é uma criminalização que está se estabelecendo concretamente através de prisão e assassinato de defensores de direitos humanos”, resume.
Márcia Soares (Foto: Acervo Themis)
Márcia Soares é advogada de direitos humanos e feminista, diretora-executiva e fundadora da Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, organização que atua para alterar os padrões de discriminação de gênero no judiciário e promover o acesso das mulheres ao sistema de justiça. Na organização, é responsável pela gestão institucional e coordenação dos programas. Entre os anos 2006 e 2011, esteve à frente da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Governo Federal. Neste mesmo ano (2011), passou a atuar como Oficial de Projetos da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Integra o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher
IHU – Entre os tantos perversos efeitos colaterais da pandemia está o aumento da violência doméstica. Como a senhora compreende esse aumento de casos? Em que medida a pandemia apenas visibilizou esse que é um problema maior e que já vinha acontecendo?
Márcia Soares – É importante partirmos de uma declaração do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, durante a pandemia, quando ele diz que a violência doméstica se demonstrou também um problema pandêmico. Isso é bastante importante e os índices alarmantes de violência não são nenhuma novidade para quem trabalha com isso. O que aconteceu é que a pandemia conseguiu trazer à luz alguns problemas essenciais para as mulheres que, em geral, os Estados não põem foco. E isso por uma questão de gênero mesmo, por falta de priorizar estratégias de cuidado com a vida das mulheres.
Há dois pontos a serem considerados. Um dele é que, sem dúvida, a violência doméstica se demonstra em uma questão preponderante em nível mundial e a segunda é um conceito que foi forjado de um tempo para cá, que diz respeito à economia do cuidado. Essas são as duas questões foram trazidas à luz durante a pandemia, que terminou resultando num aumento considerável dos casos violência. E não só um aumento, mas também um agravamento.
Efetivamente, vimos aqui e no mundo um aumento de pelo menos 22% a 30% nos casos de violência. Nós, da Themis, fizemos uma pesquisa, junto com o Namati (uma rede que nós integramos na América Latina), no leste europeu, África e Ásia, envolvendo 16 países. Nessa pesquisa, analisamos o aumento da violência e o papel das paralegais na atuação e defesa da vida das mulheres num momento em que os Estados simplesmente fecharam as portas.
O que as mulheres puderam contar nesse tempo foi com suas redes pessoais de proteção e com as redes comunitárias de atenção e encaminhamento. E esse é um papel importante das paralegais que, aqui no Brasil, se chamam Promotoras Legais Populares, que é um programa que a Themis implementa há 30 anos.
IHU – Esse aumento e agravamento se dá somente em relação à pandemia ou há outros fatores?
Márcia Soares – Tem relação com a pandemia, mas não somente em relação ao confinamento. Por óbvio, há a questão do agravamento, com o confinamento, porque quem estuda o tema sabe que quando não há uma interrupção nesses processos de violência, que se dão normalmente pelas saídas ao trabalho, para ir à casa da mãe, pelo chamamento das redes que fazem proteção, enfim, quando a gente não consegue interromper esses processos de violência, eles tendem a se agravar, vão num crescente. Então, uma relação que era abusiva apenas do ponto de vista psicológico, por exemplo (embora não seja um problema menor, mas é um outro tipo de violência), ou uma violência física mais leve se agravou justamente por falta dessa interrupção desses processos. Isso é uma questão. E, claro, é algo que tem a ver com a necessidade de isolamento social em função da pandemia.
Contudo, há uma outra questão, e isso aconteceu na maioria dos países que a gente investigou, que diz respeito à falta de resposta estatal a este problema quando ele estava num processo de agravamento dos casos. No Brasil, com a chegada da pandemia, a Justiça e os serviços de atenção fecharam as portas. Foram para o trabalho remoto sem considerar a necessidade de ancorar as mulheres num momento como esse. Vemos, por exemplo, as delegacias das mulheres que passaram a operar de forma virtual. As políticas de atenção a mulheres em situação de violência não foram inicialmente contempladas como políticas essenciais e por isso não se mantiveram abertas.
O que isso implicou? Vejamos somente em relação à delegacia: primeiro, há muitos delitos em que é necessário, do ponto de vista jurídico, a presença física da mulher. O estupro é um deles. Uma segunda questão é a solicitação de medida de proteção. Quando houve a dificuldade de registro, houve uma redução absurda na concessão de medida protetiva. Afinal, se depende do registro para pedir a medida protetiva. O Judiciário já estava operando de forma virtual, sem nenhuma estrutura para as mulheres. Então, as que conseguiam fazer o registro de alguma forma, não conseguiam estar nas audiências.
E entramos em outro problema, pois muitas mulheres só têm um celular básico e aproximadamente 90% da população brasileira não tem acesso à rede wi-fi em casa; as pessoas acessam internet de casa desde seus celulares e acessam a rede wi-fi no trabalho. O wi-fi no Brasil ainda é para uma classe privilegiada.
Como essas mulheres vão participar de uma audiência? Sozinhas dentro de casa, às vezes, não conseguiam fazer porque estavam junto do agressor. Se saíam ali na esquina, ficavam expostas, pois passava gente na rua. Então, quando se consegue fazer a denúncia, não consegue estar na audiência. Quando consegue audiência e há concessão da medida protetiva, não tem quem faça o monitoramento da medida. Não adianta conceder uma medida e não ter ninguém para monitorar a presença do agressor. Isso tudo foi agravando os casos. Houve uma dificuldade também de frear o agressor, de realmente aplicar a Lei Maria da Penha.
IHU – Quem são essas figuras das paralegais, que, pelo que a senhora traz, foram um dos únicos apoios?
Márcia Soares – Foi uma atuação fundamental no Brasil inteiro, existem promotoras legais no Brasil inteiro e as paralegais fora do país. Falando aqui da realidade em Porto Alegre, nós firmamos um termo de parceria com o Tribunal de Justiça do Estado e as promotoras legais populares, que são essas mulheres capacitadas em Direito e que são lideranças comunitárias. Elas fizeram o monitoramento de forma remota e, eventualmente, em caso de extremo risco, de forma presencial.
A Vara de Violência Doméstica da Comarca do município de Canoas, por exemplo, fazia mensalmente e entregava para a Themis uma lista de mulheres que tinham recebido medida protetiva de urgência. Com os seus dados, pegávamos aquele caso e distribuíamos para a promotora legal de referência. Ela, por sua vez, fazia um rastreamento por telefone, identificava a mulher, perguntava se estava tudo bem, fazia os encaminhamentos para a rede que ainda existia e fazia o monitoramento pessoal. Essas mulheres vítimas tinham a quem recorrer no caso de um rompimento dessa medida; chamavam a promotora legal, que chamava a Patrulha Maria da Penha. As promotoras legais populares são lideranças comunitárias que estão absolutamente integradas na rede.
Então, efetivamente, quem fez o monitoramento das medidas protetivas foram as promotoras legais populares. São mulheres, voluntárias, lideranças comunitárias que são capacitadas pela Themis para identificar casos e encaminhá-los. Elas têm um conhecimento bastante forte da Lei Maria da Penha. Agora, veja que as promotoras legais populares atuam, normalmente, como uma rede comunitária de proteção e de prevenção do agravamento dos casos. Durante a pandemia, elas só conseguiam monitorar basicamente mulheres que já tinham passado por processos de violência. Não é o que acontece normalmente no trabalho delas. Temos um serviço, um espaço comunitário onde as mulheres podem recorrer e que, evidentemente, estava fechado também porque, se não, só as promotoras estariam expostas a um enorme risco, já que o resto todo estava fechado.
Aqui no Brasil, no início da pandemia, articulamos com as promotoras de São Paulo também, através de recargas de celulares, de recursos para cuidado. Aqui e em São Paulo a Rede Nacional de Promotoras Legais se manteve ativa e, mais do que isso, se consolidou nesse período. A gente conseguiu coordenar um processo de atenção às mulheres, de cuidado, da ativação da pouca rede que ainda sobrevive no Brasil nesse governo.
IHU – Quem é a mulher vítima de violência doméstica e familiar hoje?
Márcia Soares – Sabemos que, historicamente, todas as mulheres estão predispostas, vulneráveis e que efetivamente passam por processos de violência menores ou mais agravados, com mais ou menos chance de buscar recurso. Também temos um diagnóstico de um perfil mais agravado e onde se concentram mais os casos de violência e eles têm a ver com um componente racial muito forte no Brasil. Aliás, como tudo no Brasil. Ele resulta do racismo estrutural também. Assim, nós temos hoje um dado de que no Brasil 63% dos feminicídios são praticados contra mulheres negras (somente 37,5% das vítimas são brancas). E, apesar desses feminicídios e a própria violência serem concentrados nas mulheres negras, elas são, como no caso do Rio Grande do Sul, absoluta minoria na concessão de medidas protetivas de urgência. Ou seja, são as que mais sofrem e as que menos acessam os serviços de Justiça.
E isso não é por acaso. É porque o Estado brasileiro dá respostas distintas para as camadas sociais distintas do país. Embora a Lei Maria da Penha seja uma lei muito avançada, que tenha no seu escopo não só a medida repressiva, a resposta do Estado brasileiro é basicamente penal. Essa é a resposta mais fácil, porque depende só do Judiciário e de cadeias superlotas de homens e sem nenhuma estrutura. Necessita muito pouco recurso, e recursos que respondem a uma demanda de nós privilegiados, que é o recurso para Segurança Pública. Ou seja, se investe hoje em cadeia e não se investe em prevenção, não se investe em serviços de atenção. Essa tem sido a resposta mais fácil do Estado brasileiro para as questões de violência doméstica e sexual.
Agora, a gente sabe a quem é dirigida. A resposta violenta do Estado é dirigida para homens negros de periferia. Não vemos homens brancos, de classe média, média alta presos em função da violência doméstica. Para essas pessoas existem outros recursos ou as próprias famílias têm outras formas para recorrer diante de uma situação abusiva.
IHU – Por que essas mulheres negras não acessam a Justiça com a mesma resposta das demais?
Márcia Soares – Primeiro porque a resposta estatal violenta, de encarceramento, a resposta penal, atinge os filhos delas também. Quem faz o monitoramento? A polícia. A mesma polícia que deveria entrar nos territórios para proteger essa mulher, é a que assassina seus filhos. Não há uma confiança nesse serviço estatal.
Segundo, essas mulheres estão submetidas a territórios que muitas vezes são dominados pelo crime organizado. E o crime organizado não quer a polícia lá. Se elas chamam a polícia militar para esses territórios de moradia, ficam vulneráveis frente ao crime organizado. Só há uma forma de atender, que é através de uma rede forte de atenção que esteja nos territórios e que consiga acolher essas mulheres e dê outra resposta. A Defensoria Pública tem que funcionar.
Já era uma rede pequena para a demanda, mas era uma rede que vinha se constituindo ao longo dos últimos 15 anos, desde o governo Fernando Henrique. Quer dizer, é uma rede que vem se consolidando, vão se construindo delegacias etc. São políticas públicas que vieram sendo construídas nos últimos 30 anos, mas ainda era uma rede insuficiente. Com o atual governo, a política de atenção às mulheres e pessoas mais pauperizadas tem sido sistematicamente destruída. Isso não é novidade para ninguém que, minimamente, consiga olhar para o lado. Você soma a isso um governo que veio matando pessoas através da própria pandemia, um governo que não investe em direitos humanos; junta isso a uma situação pandêmica, ausência de serviços e com o encarceramento dentro de casa e chegamos ao resultado que temos aí.
É importante dizer também que esse histórico de isolamento social não é novo nas relações abusivas. Isso é uma coisa na qual o abusador investe ao longo do tempo, em impedir que as mulheres possam ativar suas redes pessoais de proteção. É produzir o rompimento com a família, com a melhor amiga, inviabilizar a relação com os irmãos, com as irmãs. Isso é um processo muito presente nas relações abusivas.
Quando chega a pandemia, só se consolida um processo que é próprio da relação abusiva. Para romper com essa relação, as mulheres precisam romper com o isolamento social e buscar retomar suas redes. E, inclusive, as do trabalho. Nós sabemos que há um direcionamento do agressor para o local de trabalho da mulher. Termina constrangendo de tal forma que a mulher abandona o trabalho. Esse é um fenômeno que a gente já conhece, mas que foi profundamente agravado pela pauperização, pela necessidade de políticas públicas e de isolamento.
Essa falta de olhar do sistema estatal para essas questões não é um privilégio do Brasil, pois nos outros países, do leste europeu, por exemplo, durante o lockdown – veja que o Brasil não teve isso efetivamente, pois o lockdown era uma medida que impedia as pessoas de irem para a rua - era necessário autorização para ir às ruas, e as mulheres em situação de violência não tinham autorização para sair de casa.
Demorou um tempo para haver uma regulamentação legal, ainda que provisória, acerca do funcionamento dos serviços, o que passa, também, por entender essa situação como emergencial.
No Brasil, essa regulamentação só veio lá por agosto. Foi a regulamentação que determinou que os serviços de atenção às mulheres são serviços essenciais e, por tanto, deveriam manter um componente presencial. Depois de aprovado, se teve que romper a resistência desses serviços para voltar a atuação presencial. Isso foi automático, foi acontecer lá por dezembro, dependendo do estado.
Outro problema fundamental foi a prorrogação automática das medidas protetivas de urgência que já haviam sido concedidas. Não havia possibilidade de renovação automática e as mulheres não podiam sair para pedir a prorrogação, que tem que ser feita via serviço de justiça. O resultado é que essa medida se extinguia. E o Estado perdeu da conta, o Judiciário perdeu da mirada, no Brasil inteiro, onde estavam as mulheres que tinham medidas protetivas e que não conseguiram renovar.
IHU – E buscar tudo isso agora passa por uma reconstrução muito lenta. Correto?
Márcia Soares – É, e nessa atual conjuntura é uma reconstrução dificílima, porque se precisa de recurso para isso. E os recursos vêm se esgotando, inclusive para o Judiciário. Há atores, operadores do sistema de Justiça, que estão pessoalmente muito empenhados. Mas, isso é uma resposta quase que pessoal, uma resposta política e ideológica de operadores do sistema que durante a pandemia chegaram ao esgotamento.
IHU – Ao que parece, vivemos um outro momento. Mulheres que foram vítimas de violência não encontraram acolhimento e agora sofrem com o desemprego e perda de renda. Como essa realidade tem aparecido a vocês?
Márcia Soares – Junto a isso, é importante tocarmos na questão da economia do cuidado, que foi uma questão que veio à luz durante a pandemia também. Seja porque as mulheres brancas, de classe média tiveram que se recolher aos seus aposentos e desenvolver pessoalmente a atividade de cuidado, seja com as crianças, doentes ou idosos, seja no trabalho de cuidado que é, normalmente, remunerado, como lavar, cozinhar etc.
Isso foi trazendo à visibilidade o problema do trabalho realizado pelas trabalhadoras domésticas remuneradas. Isso tem relação com a violência e com a situação econômica das mulheres, porque o trabalho doméstico remunerado é a maior categoria de empregabilidade das mulheres brasileiras. Por isso e por outros motivos é a categoria que sustenta a autonomia financeira das mulheres. Seja porque é a categoria que mais emprega ou seja porque é a categoria que dá condições para a mulher sair para o mercado de trabalho.
É uma categoria de aproximadamente seis milhões de trabalhadoras domésticas remuneradas e durante a pandemia:
1) se perdeu um milhão e meio de postos de trabalho;
2) houve uma incidência enorme de trabalho forçado, pois muitas, para não perderem o trabalho, tiveram que se submeter a condições precaríssimas de trabalho. Já são uma categoria em que só um terço tem carteira de trabalho, dois terços estão na absoluta informalidade. A média salarial dessa categoria está a 92% do salário-mínimo, ou seja, é uma categoria que em média recebe menos que o salário mínimo. Considerando que há uma grande gama de trabalhadoras domésticas no estado de São Paulo, Minas Gerais, no Sul do país, ou mesmo Brasília que ganham muito mais, veremos que para manter uma média baixa é porque existem mulheres no Norte e Nordeste recebendo 400 Reais.
Assim, já são condições precaríssimas de um trabalho que, durante a pandemia, o Estado brasileiro tentou estabelecer que era essencial e que, portanto, deveria ser mantido sem negociação. Só que não deu prioridade na vacinação. Os serviços essenciais tiveram prioridade na vacinação, mas o trabalho doméstico remunerado não.
Qual foi o contramovimento que fizemos? O Ministério Público do Trabalho instituiu uma instrução normativa, 04/2020, que fez recomendações sobre como os empregadores deveriam proceder, destacando que não se tratava de serviço essencial, que era preciso negociação. E havia muitas formas de negociação, como a concessão dos Equipamento de Proteção Individual – EPIs, e deveria se negociar a redução do número de dias e alternância de horário de trabalho.
Nada disso foi incentivado pelo Estado brasileiro, pelo contrário. Muitas unidades familiares não queriam correr o risco de se contaminar e para isso mantiveram as trabalhadoras quase que em cativeiro, que foi o isolamento forçado nos empregos.
Percebemos dois cenários, então: o da mulher que tinha trabalho - e ao sair de casa, em alguma medida rompia com o ciclo de violência - e que perdeu tudo. De outro lado, temos a mulher que consegue manter o trabalho, mas que é obrigada a desassistir a própria família, também deixando parte desta sob cuidados de um possível agressor.
E também tiveram que deixar crianças cuidando de outras crianças, pois junto com isso fecharam as escolas, as creches e os filhos ficaram sozinhos em casa ou as mulheres tiveram que levá-los para o trabalho. E aí temos o caso do menino Miguel, que foi largado à própria sorte num elevador, subiu atrás da mãe, caiu do alto do prédio dos empregadores e morreu. Enquanto isso, a empregada doméstica estava lá passeando com os cachorros da patroa.
Observe que as mulheres são fundamentalmente chefes de família, responsáveis por manter seus filhos. Por isso, as que não perderam o trabalho tiveram que se submeter a condições ainda mais precárias. Soma-se a isso, uma vez mais, o desmantelamento da rede de assistência. Ou seja, temos uma rede que não concede mais cesta básica, não tem mais recurso para transporte, é uma rede de saúde, especialmente nas periferias, que está sendo desmontada. E, além disso, os recursos da saúde – médicos, enfermeiros – tiveram que ser transferidos quase que integralmente para o enfrentamento da pandemia. As mulheres ficaram sem nenhuma condição de ir ao posto de saúde e ter alguém que atendesse, identificasse o caso de violência, chamasse outros serviços. E os Centros de Referências de Assistência Social – CRAS sem nenhuma condição de atender.
Em meio a tudo isso, as organizações da sociedade civil, como a Themis, além de terem um aumento enorme na demanda – veja que tínhamos mais de 30 casos por mês –, veem surgir casos com outro perfil. São casos de pessoas absolutamente empobrecidas. A Themis abriu um programa de ajuda humanitária que era para ser muito pontual, justamente naquele período mais agudo da pandemia, só que isso vem se estendendo.
E, como auxílio humanitário, estou dizendo comida, cesta básica! Aliás, cesta básica e conectividade, justamente porque as mulheres não têm wi-fi em casa. Inclusive as trabalhadoras domésticas precisavam dessa conectividade para buscar trabalho e informações sobre a pandemia. Para todas as mulheres que atendíamos, precisávamos dar a cesta básica e manter a recarga do celular para que pudesse pedir ajuda, falar com a mãe, ou para a trabalhadora doméstica falar com a família em casa ou mesmo para buscar trabalho, pedir ajuda.
O empobrecimento da população - e das mulheres, especialmente - se agravou muitíssimo. Não temos como fazer um atendimento de uma mulher em situação de violência quando ela e os filhos estão passando fome. O que eu vou fazer? E isso é constante entre as mulheres mais velhas e entre as jovens.
Vimos, por exemplo, um adoecimento das pessoas mais velhas. Muitas morreram em função da pandemia e as mais jovens acabaram tomando para si a tarefa de sustentar a família. Isso tem implicado, inclusive, numa alteração num perfil da categoria de trabalhadoras domésticas, que historicamente é um perfil de envelhecimento. São mulheres, em média, com mais de 40 anos. Só que a crise e a falta de trabalho acabaram implicando que as mais jovens fossem perdendo seus empregos, como no comércio, e tiveram que voltar para a categoria do trabalho doméstico. Essas jovens estavam na universidade com auxílio de programas. Essas mulheres foram perdendo a universidade, com a falta de recursos, e retomaram o trabalho doméstico remunerado como diaristas, basicamente.
A juventude está tomando esse espaço do trabalho doméstico porque não tem trabalho, o mercado está esgotado. Além disso, esses trabalhos têm uma remuneração muito baixa e essas jovens, ainda com energia física, ficam fazendo duas faxinas por dia para poder sustentar as crianças da família, seus filhos, pai, mãe, idosos.
IHU – Como podemos compreender o fato de as mulheres serem sempre as principais vítimas de crises econômicas e sociais? E vocês, enquanto profissionais que estão na frente, como se sentem diante desse quadro e da atual conjuntura?
Márcia Soares – Esse momento que vivemos não tem a ver somente com a pandemia. É claro que a pandemia surpreendeu a todos; ninguém pensava em passar por isso. Eu estou com 57 anos, bem mais de 30 anos de ativismo, e não me lembro de ter passado por uma situação, no Brasil, como a que nós passamos, para além do problema da crise sanitária. A crise sanitária é algo gravíssimo, mas o problema é a resposta estatal a essa situação de crise. Foi uma resposta muito frágil, foi uma resposta praticamente nula.
Era preciso, e alguns países fizeram isso, investir em casas de acolhida, pois é preciso pensar para onde vão as mulheres depois da concessão de uma medida protetiva. E deveria haver um aumento de casas de acolhida, ainda mais num momento de crise e falta de trabalho. Não estou nem falando naquela casa de apoio tradicional, mas de pelo menos espaços de acolhida. Muitos países passaram a pagar diárias em hotéis, tendo assim locais para que as mulheres pudessem se abrigar com seus filhos provisoriamente.
Bem, no Brasil tivemos 600 mil mortos. Se a resposta estatal foi absurda para o tratamento da própria pandemia, o que dizer para atenção às mulheres? E sabemos que o cuidado com as necessidades das mulheres, nesse país de hoje, é uma questão absolutamente secundarizada, juntamente com a questão dos direitos humanos. Aliás, a questão dos direitos humanos tem sido frequentemente criminalizada.
Quando nós iniciamos a Themis, há 30 anos, éramos fruto da Constituição, da democracia, da consolidação da democracia. Era um momento em que as organizações da sociedade civil vieram para consolidar a democracia, criar serviços. De lá para cá, nós vínhamos num crescente de instituição de políticas, de atenção legislativa, de atenção judiciária. Era insuficiente, mas vínhamos num crescente de alguma forma. Só que chegou um momento, com a instituição do atual governo federal, que não só se estancou esse crescimento, como nos colocou num processo de retrocesso. E, inclusive, de questionamento das bases teóricas que a gente vem construindo ao longo dos anos para constituir essa resposta.
Aquela resposta que construíamos não só não existe mais, como ela também vem mudando. São, por exemplo, os casos que envolvem os direitos reprodutivos e que, além de fechar serviços, afrontam, inclusive através do Judiciário, na implementação da lei instituída desde 1940. É o direito ao abortamento legal em caso de estupro. Isso nós vimos muito recentemente. O governo federal incidindo nisso, o Ministério Público questionando, a juíza questionando a implementação da lei que existe desde 1940. E isso ainda mais num caso que envolve criança. É isso que considero como outra resposta do Estado, muito diferente do que vínhamos construindo.
O que aquela juíza apresentou como resposta? “Fique mais um tempo com a gravidez, entregue para adoção.” Isso não é uma resposta possível. A adoção é uma resposta ao problema das crianças em situação de vulnerabilidade que não têm família, ou seja, é uma resposta dirigida a outro problema. A resposta ao problema da violência sexual ou estupro e a gravidez decorrente disso é o direito à interrupção legal da gravidez. Estamos não só muitos assustados como também exauridos de trabalhar e muito preocupados.
IHU – Por que hoje é difícil discutir as questões de gênero? Como o inebriamento desse debate se converte em violência?
Márcia Soares – Veja que não é nem o problema de falta de debate, mas há um novo discurso carregado de uma enorme carga ideológica e que vem questionando o que construímos. Tem ainda um outro fator que é importante dizermos: esse conservadorismo e os setores conservadores da sociedade hoje estão tomando para eles as nossas pautas e dando outro sentido para elas. Se formos observar o que os partidos vêm apresentando nas redes, assusta muito, pois incorporaram a questão do racismo, a necessidade das mulheres na política, ou seja, foram incorporando nossas pautas e construindo outras respostas.
Isso é muito perigoso porque termina por acolher uma parcela da população que passa a se identificar. São processos que decorrem de uma tomada de consciência por parte da população construída com muito trabalho ao longo dos anos. A mulheres sabem que existem poucas delas na política; as empregadas domésticas sabem que são negras, que sofrem violência. Os setores conservadores tomam para si essa pauta, conseguem adesões e constroem outra resposta.
IHU – Como construir uma reação a esse quadro?
Márcia Soares – Temos alguns caminhos, mas ainda são incipientes. Um dos caminhos é o judicial, a contestação judicial. Por exemplo, a Themis, um coletivo de organizações de mulheres juristas, atua como amicus cure [quando contribuiu num processo como uma espécie de consultoria voluntária] em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI que está colocando em xeque o Escola Sem Partido. Nós, e muitas outras organizações, estamos atuando em muitos processos desse tipo.
A outra resposta é o ativismo, não há outro jeito. Nós reunimos num fim de semana, há pouco tempo, 100 Promotoras Legais do estado inteiro no Encontro Estadual de Promotoras Legais Populares do Rio Grande do Sul. É fundamental criar uma agenda de incidência para as lideranças, para o movimento e para que o ativismo que contemple e compreenda em que momento estamos.
Vimos ativistas em todos os lugares, desde clube de mães, associação de moradores, que estão lá na ponta e vendo as pessoas morrerem de fome sem direito à alimentação básica. As pessoas estão lá, dando cestas básicas para suprir essa necessidade, mas elas precisam entender em que momento estamos, precisam compreender que conjuntura é essa. O ativismo hoje é o que pode manter o mínimo que temos.
Não acho que a resposta hoje seja legislativa, por exemplo. Porque qualquer tentativa de questionar a legislação cria um precedente que não sabemos onde vai parar. Não estamos em um momento de avançar na legislação. Estamos num momento de garantir direitos. Aliás, isso também é uma resposta, entender isso e ver no âmbito do legislativo o que é possível fazer. No legislativo, qual é a resposta? Brecar o retrocesso, que são as centenas de projetos de lei para criminalizar aborto, para reduzir a idade penal, para reduzir a idade para trabalho. Então, nossa resposta legislativa, via de regra, tem que caminhar no sentido de impedir a alteração da legislação protetiva, para garantir o que temos.
E, hoje, nos deparamos com a questão da informação, por isso acho fundamental o trabalho de vocês. Precisamos dizer o que acontece, pois estamos, inclusive, com o direito à informação violado com fake news e tudo mais que sabemos. Se as redes e os novos meios serviram num momento para democratizar a informação, hoje estão servindo para desinformar. E como enfrentamos? Para nós ativistas, temos que enfrentar lá na ponta, na base. Temos que ir lá disputar narrativa, levar outro ponto de vista, não tem outro jeito. Nós não vamos conseguir conter isso somente com a ação nas redes. Temos que ir para ponta, para os territórios.
São muitas respostas possíveis. Agora, veja que a Themis é uma organização com 30 anos, que está alinhada com organizações de mulheres que são importantes no país, e conseguimos manter um quadro de oito pessoas trabalhando, diante de um agravamento enorme. E isso também tem a ver com a criminalização dos movimentos, precisamos atuar com muito cuidado.
Estamos vivendo um processo de agravamento da violência estatal contra as ativistas e o Brasil é um dos países que mais mata defensores de direitos humanos. Então, além de tudo isso, desse quadro de crise extrema, precisamos operar com muito cuidado, garantindo a segurança institucional e jurídica.
A questão da informação também é importante nisso. Sabemos que há uma violência nas redes, precisamos garantir a segurança dos dados, das informações, e das próprias ativistas. Muitas das organizações vêm sendo atacadas pelas redes. Existem ataques a reuniões, especialmente as que tratam de direitos sexuais e reprodutivos.
Estou dizendo isso porque as pessoas precisam se dar conta do momento que estamos vivendo. Não é qualquer momento, é um momento de violência estatal. Criminalização dos movimentos não é só uma expressão, isso é concreto hoje. Se era uma criminalização que se estabelecia a partir do discurso, hoje é uma criminalização que está se estabelecendo concretamente através de prisão e assassinato de defensores de direitos humanos.
É um momento bastante difícil e as pessoas precisam saber que momento é esse e quais são os cenários possíveis que existem pela frente.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Márcia Soares – Gostaria de concluir dizendo que a Themis nunca foi uma organização partidarizada, nunca se manifestou partidariamente em eleições para candidatos, mas Themis é uma organização feminina, antirracista de promoção de direitos humanos, que nasceu à luz da Constituição e que tem compromisso com a democracia. E é importante que as pessoas entendam que o que está em jogo hoje não é um partido, não é uma liderança. O que está em jogo é a estabilidade democrática do Brasil e por isso estamos nos manifestando publicamente, sem medo, porque o que está em jogo está para muito além de uma eleição. Está em jogo a sobrevivência do movimento popular, das pessoas mais pobres, das nossas instituições democráticas.