10 Dezembro 2020
Maria de Nazaré e Letícia Ferreira são trancistas que obtêm seu ganha-pão na capital Belém (PA). Conseguem sobreviver fazendo tranças afro, mas isso quando há pessoas interessadas. Com a pandemia do novo coronavírus, elas deixaram de aparecer. E até aquelas que poderiam contratar o serviço para um atendimento doméstico ou ir a um salão de belezas não o fazem mais. Boa parte delas está sem renda suficiente. Mulheres negras, as duas trancistas temem pelo amanhã, mesmo sem ter certeza do que poderão comer hoje.
A reportagem é de Vivianny Matos, publicada por Amazônia Real, 07-12-2020.
“Está sendo um ano muito difícil. Uma crise econômica que ainda não sabemos como vamos resolver, os alimentos sobem todo mês e ninguém faz nada”, desabafa Maria de Nazaré Costa da Cruz. Aos 40 anos, ela é formada em História e mora no bairro da Terra Firme, na periferia da capital paraense. Com um filho adolescente, é a responsável pelas contas da casa onde mora de aluguel, junto de mais quatro familiares. Obrigada a sair para trabalhar, mesmo sabendo das dificuldades de encontrar clientes na cidade, ela contraiu a Covid-19. Sentiu os sintomas da doença, mas ainda carrega, como uma dolorida sequela, crises emocionais.
A trancista Maria de Nazaré e uma amiga, manicure, tinham um salão afro, mas as duas decidiram entregar as chaves ao proprietário depois que a sócia adoeceu, no início da pandemia. Era impossível manter o negócio aberto. “Mesmo fechado tínhamos que pagar o aluguel, e isso nos deixou numa situação muito delicada. Também tivemos que ajudar familiares e amigos, pois a crise afetou a todos”, relata.
Mulher negra, 31 anos, Letícia das Neves Ferreira teve a primeira gestação no começo da pandemia do novo coronavírus. A trancista trabalha nas ruas de Belém desde que tinha 13 anos, mas mora com a filha recém-nascida no distrito de Icoaraci, na região metropolitana. “Só de aluguel eu pago o valor do auxílio emergencial de 600 reais. O que me ajudou muito foi doação de cesta básica. Estou de resguardo por causa do parto, mas já estou trabalhando, pois sou autônoma. Se eu parar de trabalhar por muito tempo, passo fome. Preciso trabalhar”, declara ela à Amazônia Real.
A jovem mãe fez parte de um mapeamento desenvolvido pela rapper e poetisa paraense Shaira Mana Josy, que em março, no início das política de isolamento social, criou a campanha “Me ajude a ajudar”. A ação social atendeu a mais de 50 famílias de bairros periféricos de Belém.
“Foi aí que cheguei na Letícia Ferreira, que eu já conhecia o trabalho. Sabia que ela estava grávida e precisava de ajuda”, explica a artista, que é uma das idealizadoras do Slam Dandaras do Norte – um coletivo para mulheres que realizam batalhas de rap.
Letícia trabalhando na praça. (Foto: Arquivo pessoal)
Foi pelo projeto cultural que Mana Josy descobriu que muitas meninas participantes simplesmente não tinham o que comer ou estavam passando por dificuldades financeiras. Ao lançar a campanha, descobriu que o problema ia além das participantes das batalhas de rap. E Letícia Ferreira era uma delas. Mana Josy conseguiu ampliar sua rede de apoio e recebeu ajuda, tanto de pessoas amigas quanto de desconhecidas, para distribuição de cestas básicas. A ajuda chegou a famílias de bairros como o Jurunas, Guamá, Marco, Terra Firme e o distrito de Icoaraci.
O problema é que nos últimos meses a sensibilidade ou a percepção equivocada de que o pior da pandemia já passou fez com que as doações para a campanha “Me ajude a ajudar” reduzissem bruscamente. “Atualmente, tenho apenas quatro cestas básicas. Preciso continuar a receber apoio para seguir com esse projeto, pois não sou uma pessoa abastada. Não tenho muitas condições financeiras, mas pelo menos na minha mesa nunca faltou nada do básico”, diz Mana Josy. A rapper mora com os pais, mas sabe que muitas mulheres, que são chefes de famílias, estão precisando dessa ajuda mais que emergencial.
Metade das brasileiras passou a ter de cuidar de alguém por conta da pandemia do novo coronavírus, apontou o levantamento “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, da Gênero e Número, uma iniciativa de jornalismo de dados, e da Sempreviva Organização Feminista. O acúmulo de mais responsabilidade por parte das mulheres foi detectado nas respostas de 2.641 mulheres, de todo o Brasil, que acessaram o questionário online entre abril e maio.
Mulheres trabalham nas ruas em Belém. (Foto: Jader Paes/Agência Pará)
Essa proporção segue uma tendência que detectou estar havendo um aumento de famílias brasileiras sendo chefiadas por mulheres. Passaram de 14,1 milhões em 2001 para 28,9 milhões em 2015, segundo estudo realizado pela Escola Nacional de Seguros. Quase metade dos domicílios tem uma mulher no comando. Dados do IBGE, em 2018, indicam que cerca de 7,8 milhões de mulheres negras brasileiras chefiavam famílias.
Essa realidade, contudo, não sensibilizou o presidente Jair Bolsonaro, que vetou integralmente o Projeto de Lei de 2508/20, da Câmara dos Deputados. O PL priorizava o pagamento do auxílio emergencial em cota dupla, ou seja, no valor de R$ 1.200, para mulheres chefes de família onde também o pai informa ser responsável pelos filhos (o objetivo era evitar que eles sacassem, no lugar delas, o benefício). O PL também havia sido aprovado no Senado e a lei do auxílio emergencial (13.982/20) estabelecia que as mães que criam os seus filhos sozinhas recebem os R$ 1.200.
A atriz e feirante paraense Edinete Pamplona da Silva, de 61 anos, também está tendo que buscar forças internas para ajudar o filho, Mayk Lee Pamplona, de 38 anos, na luta contra um câncer. Ela é a chefe da família. “Logo quando iniciou o cadastro para receber o auxílio emergencial eu me inscrevi. E a resposta foi que não poderia receber, pois a minha filha já estava recebendo” diz Edinete. A filha dela recebe um benefício do governo por ter feito uma cirurgia do coração. “Tentei contestar, porque não tenho renda. Eu tinha uma barraca na feira e, com a pandemia, não consegui mais vender nada. Fui na Caixa Econômica, levei todos os meus documentos e só consegui receber um auxílio de extensão, de 300 reais.”
Edinete Pamplona. (Foto: Roberta Brandão/Amazônia Real)
Edinete mora com oito pessoas, três netas, três filhos, o ex-marido e mais um rapaz que ela acolhe, que também precisa de atenção especial. Atualmente, ninguém da casa trabalha com carteira assinada. A feira era o maior sustento da família, mas com a pandemia não deu mais para trabalhar, sobretudo, pelo fato dela estar cuidando do filho, que agora é do grupo de risco. Ela se preocupa que, passadas as eleições, tudo volte a fechar por conta de uma nova onda da Covid-19.
De acordo com a última atualização do boletim da covid-19, na capital do Pará foram 51.518 mil foram contaminados. Em todo o estado, o número total de casos registrados é de 276 221 para uma população de mais de oito milhões de habitantes. Já são 6.959 óbitos pela doença. Os dados foram atualizados até nesta segunda-feira (7) tanto pela Secretaria Municipal de Saúde de Belém (Sesma), quanto pela Vigilância Epidemiológica da Secretaria Estadual de Saúde do Pará (SESPA). Os dados tornados públicos não distinguem gênero ou raça, dificultando uma melhor compreensão dos efeitos da pandemia na população. Mas não é incorreto que a doença tem atingido mais duramente as populações historicamente oprimidas.
“Essa pandemia é a redução de recursos à população. Falo aqui de pandemia como ausência. Nós, mulheres negras, estamos subnotificadas, sub-representadas nos espaços de poder e decisão”, diz a feminista e antirracista Fátima Matos, que também é militante do Centro de Estudos e Defesa do Negro no Pará (Cedenpa) e do Fórum de Mulheres da Amazônia Paraense. “Essa pandemia da necropolítica já está instalada em nosso país há muito tempo, quando nós temos uma redução de recursos para melhorar a vida da população, sobretudo da negra.”
Para Fátima, muitos municípios paraenses estão sem nenhuma política pública que atenda às mulheres em situação de vulnerabilidade social. Isso não precisaria ser assim, já que o Brasil possuía a Secretaria Nacional de Políticas às Mulheres e a Secretaria de Promoção e Igualdade Social. Mas o que fazer quando elas foram “reduzidas em uma diretoria, dentro do Ministério da Família”, questiona a feminista. “De que pandemia estamos falando?”
Cintia Maria Salles Pereira, de 28 anos, moradora do bairro Coqueiro, da cidade de Ananindeua, na região metropolitana de Belém, estava prestes a arrumar um trabalho. Mas na semana da contratação começaram as medidas de isolamento social e ela perdeu a vaga. A jovem não tem filhos, mas é a responsável pelas contas da casa alugada, onde mora com mais duas pessoas da família.
“Desde então as coisas ficaram mais complicadas, pois o dinheiro ficou escasso e o custo de vida mais alto. Mesmo com a ‘ajuda’ do governo (o auxílio emergencial), tudo ficou mais difícil, até mesmo pra conseguir uma oportunidade de emprego. As empresas se valem dessa desculpa para não admitir novamente”, destaca Cintia, que é formada em Segurança do Trabalho. Embora curse Direito, até agora só surgiram oportunidades como auxiliar administrativa.
A secretária Emilly Cassandra. (Foto: Arquivo pessoal)
Outra mulher negra e trans, Emilly Cassandra Bonifácio Ramos, de 26 anos, moradora do bairro Ponta Grossa, distrito de Icoaraci, também teve que tomar conta das despesas da sua família. Ela trabalha como secretária em uma ONG e mora de aluguel, com a sobrinha e a irmã. Esta é autônoma, e durante o lockdown, viu a renda das vendas cair a zero. Restou a Cassandra arcar com uma boa parte do aluguel e da alimentação. Parentes do companheiro de sua irmão ajudaram na alimentação e com o plano de saúde da sobrinha. “Mesmo com poucas finanças, conseguimos nos manter. Recebemos cesta básica, o que supriu bastante nossa necessidade. Hoje enfrento bem menos desafios do que no início, pois trabalho de carteira assinada e isso ajuda bastante”, lembra Cassandra, que comemora ter encontrado equilíbrio financeiro em sua vida.
Para colaborar com a campanha “Me ajude a ajudar”, da happer Mana Shaira Josy, entre em contato pelo telefone: (91) 9 9145.1535
Para colaborar com doações financeiras para a Edinete Pamplona, mãe do Mayk Pamplona, entre em contato pelo telefone: (91) 9 8545.8270 ou deposite qualquer valor na conta:
Banco: Caixa Econômica Federal
Agência: 4110
Conta Poupança: 00031147-3
Operação: 013
Favorecida: Edinete Pamplona da Silva
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Covid-19 aumenta os desafios das mulheres chefes de família, em Belém - Instituto Humanitas Unisinos - IHU