Destruição e agrotóxico na Amazônia: o retrato de como a fome e a doença se instalam na troca da floresta pela lavoura. Entrevista especial com Guillermo Antônio Cardona Grisales

Missionário, que trabalhou na elaboração de relatório sobre o impacto da monocultura e de uso de agrotóxicos na região, adverte que a destruição das formas de cultivo militar esta também matando as comunidades

Reprodução da capa do Relatório Agrotóxicos no Planalto Santareno

Por: Patricia Fachin | Edição: João Vitor Santos | 22 Abril 2022


Que a região amazônica vem sendo extirpada já não é nenhuma novidade. Tampouco que essa devastação já está atingindo as formas de vida humanas e não humanas da região. No entanto, um relatório concebido pelo missionário jesuíta Guillermo Antônio Cardona Grisales e desenvolvido por estudiosos e voluntários da região do Planalto Santareno, bem no norte do país, corporifica toda essa destruição no relato de populações que vivem lá. São pessoas que veem suas formas ancestrais de cultivo de alimento serem ceifadas para dar lugar a lavouras, especialmente de milho e soja. “Nas conversas com os comunitários se chegou a contar 23 comunidades que desapareceram. O enfraquecimento da agricultura familiar na região do planalto é uma grande preocupação apontada pelos entrevistados”, explica Cardona Grisales.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o missionário traz a radiografia da região e também abre espaço à fala das populações nativas que sofrem com introdução das monoculturas e a altíssima dependência de uso de agrotóxicos. “Agricultores familiares do planalto relatam uma série de ameaças para permanecer em seus territórios e produzindo de acordo com sua cultura. De ameaças veladas a condições de impossibilidade de permanência por conta do ostensivo uso de agrotóxicos, os motivos para a migração forçada são variados”, denuncia.

 

É o caso de um dos depoimentos que ele reconstitui ao longo da entrevista: “A soja trouxe muitos danos para a gente, ela criou muitos danos na nossa cultura, na nossa convivência como mulher, como mãe, na nossa produção, diminuiu a nossa renda, diminuiu a diversificação dos produtos agrícolas... Sem contar que eles derrubaram muitos castanhais, derrubaram muitas abacabeiras, derrubaram muitas seringueiras, derrubaram muitas coisas que eram as culturas, fora as doenças que vieram”.

 

É a outra face do mesmo problema que Cardona Grisales apresenta, pois “a floresta também é fonte de segurança alimentar para as famílias do campo” e com ela no chão a fome se torna uma realidade. “Uma questão relacionada a essa questão dos alimentos que vêm da floresta é que eles muitas vezes provêm de árvores milenares, uma composição de floresta que levou centenas de anos, senão milhares de anos, para ser construída em sua totalidade, também estando relacionada aos povoamentos humanos. O desflorestamento que em poucas décadas reduziu a imensa diversidade da Amazônia, fruto da fome de destruição do capitalismo”, detalha.

 

Para o missionário, não há saída. É preciso combater esse ideário do agronegócio, sua fome por terras e desejos por agrotóxicos. Do contrário, a existência não só da biodiversidade amazônica, mas humana, está em risco. “São muitas as experiências bem-sucedidas de produção agroecológica orgânica da agricultura familiar e de manejo dos recursos pesqueiros que precisam ser incentivadas por uma política pública da agricultura familiar, de comercialização de produtos agrícolas locais”, indica, como uma das possibilidades de sobrevivência.

 

Guillermo Antônio Cardona Grisales (Foto: Jesuítas Brasil)

 

Guillermo Antônio Cardona Grisales  é jesuíta colombiano, nascido no município de Rionegro, perto de Medellín, capital do Estado de Antioquia, em 1946. Realizou estudos em Filosofia e Humanidades Clássicas na Universidade Pontifícia Xaveriana de Bogotá, na Colômbia. Ainda é licenciado em Teologia pela Xaveriana, mestre em missiologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, na Itália e doutor em Estudos Africanos pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais da Sorbona, Paris, França.

 

Na década de 1970, realizou trabalho educacional e pastoral no Congo, na África. Em seus mais de 26 anos pela Amazônia, atuou coordenador do Centro de Defesa da Arquidiocese de Manaus - CDH, no Serviço de Ação, Reflexão e Educação Social - SARES. Depois foi transferido para Santarém, no Pará, onde foi coordenador das pastorais sociais da Diocese de Santarém. No dia 07 de abril desse ano, retornou a Província da Colômbia onde aguarda sua nova missão.

 

De 2014 até o início deste ano, acompanhou de perto a situação na região. O ato de observar, documentar e acompanhar as lutas de resistência pela terra, pela defesa da natureza e dos direitos humanos sempre foram marcas do missionário. Foram dessas vivências e escutas do povo nasceu o Relatório Agrotóxicos no Planalto Santareno.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Qual a razão de produzir um relatório específico sobre o impacto dos agrotóxicos no Planalto Santareno?

 

Guillermo Antônio Cardona Grisales – As pastorais sociais da Arquidiocese de Santarém e também os movimentos sociais de Santarém têm se preocupado com o agronegócio instalado em Santarém desde 1995. Mas a preocupação maior veio com a construção do porto Graneleiro da multinacional Cargill, em 2003, e logo mais ao constatar os graves problemas na saúde das pessoas e na contaminação das águas devido ao uso intensivo de agrotóxicos nos campos de produção de soja e milho.

 

Região do Planato Santareno | Reprodução journals.openedition.org

 

Em 2017, o Ministério Público no Oeste do Pará instala, a pedido dos movimentos sociais, notadamente dos Sindicatos de Agricultores e Agricultoras Rurais da Região, o Fórum Contra o Uso dos Agrotóxicos. No início deste, houve funcionários públicos que contestavam o objetivo do fórum, negando a perigosidade dos por eles chamados “defensivos químicos”.

Na convergência destas conjunturas se decide, em 2018, fazer uma pesquisa sobre os impactos dos agrotóxicos no Planalto Santareno, onde tem se instalado os grandes campos de soja e milho.

 

 

IHU – Que percentual da agricultura desenvolvida no Planalto Santareno depende do uso de agrotóxicos?

 

Guillermo Antônio Cardona Grisales – Segundo o Sindicato Rural de Santarém (de produtores notadamente de soja e milho) – SIRSAN, em 2018 e 2019, todos os produtores de soja de Santarém, Belterra e Mojuí estavam autorizados a fornecer para a multinacional Cargill. Só em Santarém, segundo o Sindicato, são 235 famílias produtoras, com propriedades de, em média, 300 hectares, ou seja, uns 70.500 hectares. “Todos os produtores aqui da nossa região são cadastrados na Cargill, que só compra a soja se você não tiver desmatamentos”, afirmava Adriano Maraschin, presidente do Sirsan, em reportagem publicada em 2020.

Dados da plataforma Trase confirmam que toda a produção de soja de Santarém e Mojuí dos Campos em 2017 e 2018 foi vendida e exportada pela Cargill. A multinacional embarcou as 54.000 toneladas produzidas por Santarém e as 70.500 de Mojuí dos Campos para China, Espanha, Reino Unido, Holanda, México e França. O município de Belterra produziu 41.000 toneladas, com toda a produção destinada ao consumo doméstico no Brasil.

A multinacional Cargill inaugurou um porto graneleiro em Santarém em 2003, acirrando as disputas por terra, grilagem e expansão da soja na região. A área de cultivo de soja no Oeste do Pará passou de 85.400 hectares, em 2010, para 500.400 hectares em 2017, o equivalente a 30% do total da área de lavouras do estado. Esta região é a terceira em produção de soja no estado do Pará. Toda esta produção de soja e milho no Planalto Santareno depende totalmente do uso dos agrotóxicos. Este uso tem contaminado uma pequena parte dos agricultores e agricultoras familiares.

 

 

 

 

 

IHU – Quais são os principais impactos socioambientais da hegemonia da monocultura de soja e do uso de agrotóxicos no Planalto Santareno?

 

Guillermo Antônio Cardona Grisales – Vamos a eles:

 

1. O impacto maior é a mudança no tipo de agricultura, que muda toda a composição do bioma: o tipo de agricultura de monocultura de soja e milho que exige o uso de agrotóxicos destrói a biodiversidade que caracteriza o bioma amazônico, onde se pratica o extrativismo de alimentos da floresta e a agricultura familiar.

Tem sido a intervenção mais violenta que tem sofrido o Planalto Santareno. Todos os outros impactos são derivados deste maior.

As pessoas que vem de fora trazem e impõem outra lógica e outra prática agrícola. O que tem produzido um impacto violento na posse e uso da terra, ocasionando conflitos, agudizados ultimamente pelas políticas federais, com a falta de atuação dos órgãos de fiscalização, com insegurança jurídica na posse da terra dos pequenos trabalhadores rurais, com favorecimento das posses ilegais e da grilagem de terras do agronegócio.

 

 

2. Com a redução das unidades familiares e a presença dos agrotóxicos, a produção da agricultura familiar (extrativismo, agricultura familiar, pesca artesanal, criação de pequenos animais) viu-se severamente afetada e reduzida.

Vários alimentos se produziam, como conta um comunitário,

 

A gente teve que se reinventar. Antes, eu ainda lembro que quando tu chegavas na área de um agricultor, lá mesma roça, estava junto o milho, estava junto a mandioca, o feijão, até o arroz; tudo junto numa mesma área. E hoje, como muito dessas culturas já não dão mais, o arroz, toda a praga foi para dentro do terreno do cara e ele não conseguiu mais produzir; o feijão também. Hoje, praticamente a cultura virou milho e mandioca. Outros investiram em pimenta-do-reino, outros na questão do urucum, e macaxeira. Mas não se vê mais aquele roçado que a gente via antes, completo, tudo dentro da mesma área... Tem pessoas que não plantam; resolvem compra o arroz, resolvem comprar o feijão, e só plantam mandioca; porque sabem que é prejuízo plantar outro tipo de produção que não dá.”

 

Como visto neste trecho de entrevista com um comunitário, um dos efeitos foi a redução da diversidade de alimentos produzidos nas propriedades, e uma dependência da compra de alimentos para a necessidade familiar, que eram anteriormente produzidos.

E os alimentos que vêm da floresta (o agroextrativismo), que muitas vezes provêm de árvores milenares, cuja composição da floresta levou centenas de anos, senão milhares de anos, para ser construída em sua totalidade, se veem seriamente afetados pelo desflorestamento, que em poucas décadas reduziu a imensa diversidade da Amazônia. Assim, o modelo de produção capitalista destrói e suprime toda uma cultura milenar dos povos originários de aprendizado, experimentação e domesticação da rica flora regional.

 

 

3. Impactos no modelo de agricultura tradicional devido ao uso dos agrotóxicos da parte da agricultura industrial.

 

Os agrotóxicos criam dependência nesse tipo de agricultura. Seu uso não traz uma solução definitiva para o controle de pragas, que acabam se adaptando, e desta forma, se faz necessária a utilização de doses cada vez maiores ou de mais um princípio ativo ou o surgimento de novos produtos para que este controle seja efetivado. Isto gera uma dependência crônica dos agricultores e insere cada vez mais produtos nocivos no ambiente, sendo difícil de se medir seus efeitos à longo prazo. De outra parte não se pensa em outras formas de “controle de pragas” e de fortalecer a biodiversidade.

 

4. Impactos nas mudanças na paisagem e na perda do “bem viveramazônico.

 

No modo de ser amazônico se vive uma relação recíproca, relação de comunhão entre a terra e a natureza, com os povos ribeirinhos e agroextrativistas da região, pois a vida das populações e da natureza está entrelaçada. Assim nos expressam vários depoimentos, explicitando essa relação intrínseca entre o homem e o ambiente, esse modo de vida das pessoas que moram neste bioma:

 

“Desde criança, eu brinco com as pessoas que eu sou filha da floresta, das águas, da terra, principalmente; eu não consigo me ver sem tocar na terra porque a terra é muito importante na nossa vida... A floresta e tudo vem da terra, tudo que nós consumimos, tudo vem da terra. Então eu olho a terra como minha mãe.

A gente não está lutando só pela terra, mas pela nossa Amazônia, pela biodiversidade, por tudo aquilo que a gente necessita, principalmente pelo ar que nós respiramos, para ter esse oxigênio que nós precisamos.... Preservar a floresta é preservar a nossa cultura, valores e os nossos princípios. Tudo é um conjunto. Eu não vi, nas pessoas que cultivam a soja, que eles têm esses princípios e valores, porque parece que só o poder econômico vale a pena...

 


Mapa da Amazônia (Foto: Pinterest)

 

E existe uma diferença mesmo, nós, como população tradicional, a terra e a floresta, ela tem um outro valor sentimental. Para a gente, é como se fosse a vida da gente também, e a gente sente uma necessidade de estar ali e de preservar também, de zelar por aquilo. E essa população que veio, a gente não está condenando, mas eles têm outro tipo de cultura, de costume.”

 

A posse da terra e a forma de transmissão da propriedade da terra acontecia conforme a necessidades dos posseiros. A financeirização da terra também surge como uma mudança vinda com o modelo de produção capitalista na região:

 

“Antes nós tínhamos a nossa divisão da terra, nós falávamos que tínhamos metros de terra, que era uma comunidade com muita gente e as famílias bem grandes e os terrenos eram pequenos, digo, para tanta gente; mas a nossa divisão, a estrema, que a gente diz, o nosso marco da terra com o vizinho era de uma planta, uma mangueira, uma laranjeira, um abacateiro, essas plantas que a gente tem, não era assim um marco, um marco de concreto; às vezes, alguém colocava uma madeirinha... mas eram as próprias árvores... não tinha interferência do Estado na demarcação; então a gente achava que tudo era nosso. Quando a soja chegou, nós vimos que eles podiam tomar a terra, porque até 2002, quando eu presidi o sindicato, eu fui descobrir como era isso, como é que se dava esse processo da tomada, da expulsão do agricultor e que no município de Santarém, contando todas as regiões que tinham, nós tínhamos noventa por cento dos agricultores familiares como posseiros da terra. Então nós éramos presas fáceis para os fazendeiros do agronegócio; a gente viveu um conflito muito grande por conta disso, para mim foi muito difícil, porque eu venho de uma cultura em que nós somos irmãos, nós da comunidade, como compadres, comadres que emprestam uma pouco de alguma coisa como um café, um açúcar, qualquer coisa que o outro não tenha. E não havia um quintal dividido. Nossos quintais, nós dizemos que não temos grandes terras, nós temos nossos quintais produtivos onde todo mundo tem manga rosa, tem sapotilha, tem laranja, tem limão, tudo... Então, a gente se alimenta e a gente também vende o excedente e plantamos também a mandioca que é uma das culturas que todas as comunidades produzem.”

 

A preocupação com a forma de desenvolvimento excludente também fica evidente nos relatos. A visão de que este desenvolvimento não atende aos interesses dos agricultores familiares:

 

“A gente sabe que tudo isso é colocado com um grande nome na frente, que se chama desenvolvimento. Mas que a maioria das vezes não fica bem claro para o pequeno, para quem está desinformado, que para chegar a esse desenvolvimento muitas coisas são mudadas, muitas pessoas perdem a cultura, muitas pessoas perdem o seu cotidiano de vida. Porque vão ter que sair da terra de qualquer jeito. Esse desenvolvimento a gente sabe que não vem beneficiar os pequenos; quando eu falo dos pequenos, eu falo dos pequenos agricultores, daqueles mesmos de fato; seja o agricultor da agricultura familiar, do extrativismo.... De forma geral, eles serão os mais prejudicados, justamente por isso. Porque eles estão acostumados viver de uma forma ali, e o grande desenvolvimento vem com outro olhar. A Amazônia, a gente percebe que ela sempre foi pensada como modelo de retirada de recursos para crescimento do país, explorar a Amazônia para tudo servir em crescimento do país. Mas por outro lado se deixou de se pensar que, se não for preservada, a Amazônia pode se acabar. Então, o desenvolvimento está sendo pensado só em explorar, explorar e explorar... Mas o pequeno é o que ainda preserva. Para que o desenvolvimento, dito pelo governo, se concretize, esse pequeno vai ter que sair de lá.”

 

As florestas, muitas de uso coletivo, ou seja, em que várias famílias e/ou comunidades coletavam, eram fonte de riquezas e recursos para a vida. Os relatos sobre essa relação com a floresta para obtenção de frutos, instrumentos e medicamentos, e como isto foi se perdendo com esta mudança no uso da terra, são uma evidência da importância que as florestas têm para as populações rurais da região:

 

“Para mim foi muito impactante saber que chegou a soja no município e a gente não sabia como lidar. A gente só tinha visto o nome soja por uma lata de óleo, porque usava o óleo de soja, mas a gente não sabia o que era isso, como plantava, como destruía, então para nós foi extremante impactante; principalmente para mim. Porque quando eu olhei pela primeira vez, eu senti que eu tinha que defender o direito e o interesse dos trabalhadores e das trabalhadoras rurais do município de Santarém... Era terrível, gerou muito conflito, e como esses grandes tinham facilidade para documentar as terras e nós esperávamos pela reforma agrária feita pelo governo, foi muito dolorido esse processo. Todos os dias a gente recebia um conflito novo: vinham falar para a gente que tinham entrado na terra, que já estavam mecanizando, e foi muito cruel mesmo porque nós não estávamos acostumados com esse processo. Nós fomos criados trabalhando com o terçado, broca, depois era com machado para derrubar as árvores maiores... Um pedaço suficiente para a gente viver e alimentar a família. Então, foi muito impactante e criou muitos danos nas nossas vidas com a chegada da soja porque desmatou muito, expulsou muitas famílias da terra, muitas delas vieram para a periferia da cidade e depois não tinham como se sustentar.

 

5. Impactos na elevação da temperatura, na mudança do clima.

 

“Eu tenho uma grande lembrança, eu queria que minha terra retornasse ao jeito que eu a encontrei, mata, vento normal; você respirava um ar livre, você tinha sombra, você plantava e colhia sem praga. E hoje a grande saudade eu tenho porque estou lá e não tenho como comprar uma terra mais longe, então eu tenho que estar lá porque lá que é meu. Mas eu não me sinto mais feliz por conta disso, do agrotóxico, por conta de que quanto mais passa o dia, mais as coisas vão se fechando no entono da gente. A gente não tem mais como dizer assim “bom, hoje eu tenho uma terra livre e saudável com árvores naturais, árvore de cem, duzentos anos atrás”, não existe isso; e pra te falar a verdade, dentro dos terrenos de lá, se tiver alguma planta, tem sombra, se não tiver é só cascata mesmo. Então eu sinto muita falta daquele tempo que eu cheguei lá porque hoje nós não temos sombra, a sombra é só a nuvem que passa e cobre o sol, pelo menos nos lá na Boa Fé, e para a maioria daqueles moradores lá, noventa por cento, não existe mais isso. Então eu sinto muita falta, inclusive eu estou até procurando uma outra região para ver se eu me seguro, encontro uma felicidade de ar livre, de um ar saudável, de um vento.


Eu posso até dizer que não exista esse vento, um vento puro, porque dessa região daqui, de onde o vento vai, eu acho que até o final dele vai levando agrotóxico, mas não é tanto como a gente está lá convivendo no dia a dia, como é o uso do agrotóxico.”

 

6. Impacto sobre o meio ambiente e desmatamento.

 

Existe uma clara relação entre o avanço do agronegócio e o desflorestamento da Amazônia. O controle das ações que prejudicam o meio ambiente é insuficiente para evitar que vastas áreas, ano a ano, sejam substituídas por criação de gado e plantios de monoculturas. Principalmente após a última eleição presidencial, várias entidades nacionais e internacionais denunciam o desmantelamento das políticas de proteção ao meio ambiente no Brasil.

 

 

Porém, pouco ainda se discute sobre o papel que o uso de substâncias agroquímicas, que viabilizam a existência dos grandes campos de monocultura na região, tem no comprometimento da biota da Amazônia. Não existe praticamente nenhum controle efetivo no uso indiscriminado de tais substâncias. Inexiste, igualmente, o monitoramento das consequências desse uso nos ecossistemas amazônicos, sabidamente um ambiente por um lado rico em diversidade, e por outro extremamente vulnerável. Existe indícios do uso, inclusive, de substâncias contrabandeadas, algumas inclusive que não têm seu uso autorizado no Brasil.

 

7. Impacto sobre os polinizadores.

 

A morte de polinizadores é uma preocupação tanto ambiental quanto do ponto de vista humano, pois afeta diretamente a produção de alimentos.

Um levantamento da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) calculou 770 milhões de abelhas mortas no Brasil ao longo de quatro anos. Elas estavam contaminadas por neonicotinóides e pelo fipronil, que apareceu em 92% das amostras de insetos. Como nem todos os apicultores registram as perdas, a estimativa é que o número real de insetos mortos passe de 1,5 bilhão.

Segundo dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), 75% dos alimentos cultivados no mundo dependem das abelhas. O 1º Relatório Temático sobre Polinização, Polinizadores e Produção de Alimento no Brasil avaliou o nível de dependência de polinizadores (em especial das abelhas) de 91 plantas, e conclui que 59% delas têm total ou alta dependência destes insetos. A soja, por exemplo, tem incrementos de até 40% na produção na presença de polinizadores (Wenzel, 2019).

Nos últimos anos, no mundo todo, ouve um alarmante declínio na população das espécies de abelhas. A ameaça às abelhas é uma ameaça à sobrevivência de todo o ecossistema pois, atuando como polinizadores de grande número de espécies, garantem o sucesso reprodutivo de mais de 80% das espécies de plantas com flores, inclusive de uma grande parte daquelas usadas na alimentação humana e de muitas outras espécies.

Um cultivador de abelhas no Planalto Santareno, visitado pelos membros do Fórum contra o uso dos Agrotóxicos em 2018, nos contou como chegou a ter 1.200 caixas de abelhas e agora somente lhe restavam 50, apesar de ter uma parte da floresta preservada, mas as plantações de soja vizinhas tinham matado a suas abelhas.

 

 

IHU – O que os agricultores familiares e comunidades indígenas relatam sobre as consequências do uso dos agrotóxicos em suas vidas?

 

Guillermo Antônio Cardona Grisales – São vários os relatos de consequências para a saúde.

A despeito da larga utilização de agrotóxicos em diferentes atividades agrícolas, existe um conjunto de evidências disponíveis na literatura científica que apontam que o uso de tais substâncias representa risco de impactos severos sobre a saúde humana, muitos desses irreversíveis ou mesmo fatais.

A questão do adoecimento tem preocupado os moradores de cidades e comunidades vizinhas aos plantios de soja. Na região, há relatos de pessoas que foram afetadas pelo uso de agrotóxicos e tiveram que deixar suas casas ou adoeceram. Segundo a pesquisa realizada pelo Projeto Odyssea (Coudel, 2019), 69% dos agricultores familiares que participaram da pesquisa se sentem prejudicados pelos impactos dos agrotóxicos (perda de produção, mudanças climáticas e degradação ambiental estão entre as queixas) e 19% se queixam de doenças crônicas.

Um dos relatos deste relatório é de uma família que se viu impossibilitada de permanecer em sua residência, pois cada vez que seus vizinhos pulverizavam em suas plantações agrotóxicos, viam uma invasão de bichos em sua casa. Outra família que residia em uma comunidade do interior se viu isolada após todos seus vizinhos venderem suas terras pela pressão do agronegócio e teve que deixar, mesmo contra vontade, sua terra. A fonte de água para alimentação e uso nas tarefas cotidianas ficava comprometida cada vez que havia pulverização nas lavouras, e a família era acometida por vômitos e diarreia. Em uma comunidade uma senhora conta que, quando fazem a aspersão de agrotóxicos, muitas crianças e idosos ficam com problemas na garganta e alergias por uns quinze dias, e até se dão casos que devem ir ao posto de saúde.

Em uma escola que fica no meio de campos de soja, quando fazem a aspersão do agrotóxico sem aviso prévio, como costumam, muitos alunos têm problemas de vômitos e dores de cabeça e vão ao posto de saúde, que fica ao lado da escola, e são medicados como se fosse gripe ou catarro, por medo de represálias da prefeitura.... Outro relato é de uma senhora que lavava as roupas do marido que trabalhava com agrotóxicos e começou a apresentar fortes reações e mal-estar cada vez mais graves e terminou com câncer.

 

 

“Olha em relação ao nosso igarapé, que tinha vários banhos bons. Várias pessoas adoecerem ou tiveram alguma reação alérgica. Por isso abandonaram, ninguém banha mais. A gente só tem lembranças dos banhos lá, porque ninguém banha mais nesse igarapé nos quatro locais que tinha de banho. Ninguém banha mais. Mas é assim a questão da contaminação. Isso tem acontecido, de as pessoas estarem contaminadas, nós tivemos um óbito, de uma pessoa que se contaminou e acabou vindo a óbito, um produtor da agricultura familiar, por sinal. E a gente não tem a fundo relatos, porque sabemos que tem pessoas contaminadas, mas, para frisarmos, precisava ter uma prova, e as pessoas têm medo de dizer realmente que estão acometidos - não dizem nem os sintomas, porque dizendo os sintomas a gente já tem uma noção de por que aquela pessoa está doente. A gente sabe que as pessoas estão adoecendo por causa do veneno, muita gente, mas não temos como comprovar isso, até as próprias pessoas se negam a dizer realmente o que estão sentindo.”

 

 

IHU – Quais são os principais conflitos gerados na região por causa dos agronegócios e da monocultura?

 

Guillermo Antônio Cardona Grisales – Agricultores familiares do planalto relatam uma série de ameaças para permanecer em seus territórios e produzindo de acordo com sua cultura. De ameaças veladas a condições de impossibilidade de permanência por conta do ostensivo uso de agrotóxicos, os motivos para a migração forçada são variados. Muitos foram seduzidos pela possibilidade de uma vida melhor nas cidades e muitos passaram a ocupar áreas de vulnerabilidade social nas periferias destas, tendo sua vida ameaçada pela violência urbana e pelo tráfico de drogas, e não conseguem retornar aos seus antigos territórios de vida.

 

 

 

As comunidades indígenas Munduruku do Planalto Santareno têm sofrido pressão e invasão dos seus territórios por parte de sojeiros que desejam expandir seus campos invadindo as terras alheias. E tumultuam as ações que o Ministério Público Federal realiza em prol dos direitos dos indígenas.

No fragmento de fala seguinte, é perceptível todo o processo até o surgimento dos conflitos e ameaças:

 

“Nos primeiros anos que eles chegaram, por volta de três anos, eles passaram três anos só construindo casa. Uns vieram do Rio Grande do Sul, outros vieram do Paraná, outros vieram de Santa Catarina... Inclusive, eles estão lá até hoje, só que eles são gente de fora, eles não são gente daqui, são brasileiros, mas não são aqui do Norte, não são amazonenses e não são paraenses. O que é a ideia deles? Quando eles construíram todas as casas deles, que eles estavam já estabilizados, começaram a comprar ao redor da comunidade e hoje, por prova, a nossa comunidade está toda tomada. Moral da história: eu fiquei tão sufocado através do agrotóxico que eu não mais resisti com a moradia lá, tive que vender para eu ir embora. Então eu fui expulso, não expulso através de atrito, de briga ou discussão. O que me expulsou foi o agrotóxico usado ao redor de mim e porque eu tive atrito de saúde. Meus filhos não ficavam mais bons, todo tempo era com gripe, todo tempo inflamação, dor na cabeça, e eu mesmo, começaram a sair algumas bolinhas no meu corpo. Até hoje eu tenho marca. Daí, então, eu achei por bem que eu não poderia mais ficar por ali, eu não aguentei mais. Além de eu ter sido sufocado pelo agrotóxico, as minhas terras não deram mais nada: o mamão não deu mais, a macaxeira não deu mais, as laranjas morreram, abacateiro não botou mais fruto! Isso eu acredito que seja por conta do agrotóxico. E hoje, onde era lugar da minha casa, onde era o lugar do meu terreno, hoje é só a plantação de soja: eles emendaram tudo!”

 

Nessa fala, vemos surgir fortemente a questão dos agrotóxicos. E esse assunto é recorrente, o papel dos usos de agrotóxicos nos conflitos e as ameaças à permanência dos comunitários:

 

“Quando eu vi os conflitos, quando eu vi o choro das mães, quando eu vi aquela terra sendo arrasada, que não ficava sequer a possibilidade de um inseto permanecer ali; envenenada, e isso é pior, porque a soja se produz com muito veneno que estão borrifando. Hoje nós temos comunidades, como é a comunidade de Boa Esperança, no planalto, e muitas pessoas morrendo. como recentemente morreu minha companheira... E tantas outras, que nós já choramos por elas, são das áreas onde o veneno é constantemente.

“Hoje eu estou indo lá em outra comunidade, mas eu estou em um outro terreno porque eu fui obrigado sair do terreno em que eu morava; fui morar com a distância de um quilômetro e meio, só que hoje também eu já estou sentindo, já estou impactado com o agrotóxico. Agora um cidadão gaúcho também comprou um terreno em que ele veio e já estremou com o meu, pelo lado do fundo, e já “aradeou”, já desmatou, então eu já estou para sair de lá também".

  

 

IHU – É comum o relato de comunidades sobre a escassez de alimentos em regiões de grande produção agropecuária ou de monocultura por causa da exportação. Essa também é a realidade do Planalto Santareno? A monocultura tem comprometido a segurança alimentar da região?

 

Guillermo Antônio Cardona Grisales – Como foi apontado exaustivamente na introdução, a floresta também é fonte de segurança alimentar para as famílias do campo. Apesar de ainda se carecer de trabalhos no campo da nutrição no que se refere à alimentação tradicional dos povos amazônidas, os que já existem apontam fortemente nessa direção. Alguns alimentos, como a castanha-do-Brasil, são riquíssimas fontes de proteína.

 

“Esses produtos deles, pelo que eu sei, não ficam aqui em Santarém; é tudo mandado para fora, eles financiam totalmente para a Cargill. Vem todo para a Cargill, o produto deles, tudo para a Cargill, tudo para fora. Não fica nenhum produto aqui para Santarém, não, e nem aqui por perto.

A soja trouxe muitos danos para a gente, ela criou muitos danos na nossa cultura, na nossa convivência como mulher, como mãe, na nossa produção, diminuiu a nossa renda, diminuiu a diversificação dos produtos agrícolas... Sem contar que eles derrubaram muitos castanhais, derrubaram muitas abacabeiras, derrubaram muitas seringueiras, derrubaram muita coisa que eram as culturas, e fora as doenças que vieram.”

 

Nessa fala seguinte, a floresta é apontada como fonte de alimentos, por isso deve ser defendida e protegida de forma a garantir que as fontes de alimento das populações do campo sejam garantidas.

 

“Bom, a questão da alimentação ficou, vamos dizer assim, reduzida porque antigamente cada um produzia seu alimento, era o feijão, era o arroz, era o milho, o jerimum, tudo era produzido para o próprio consumo e também para vender pra fora; mas como chegou o agrotóxico e as pragas eram muito fortes, e sempre afetavam, deixaram de plantar o café. Na minha comunidade mesmo era café, o arroz, o milho, o feijão. Era basicamente a base da nossa alimentação, então a gente parou de produzir e hoje tem que comprar, porque não tem como produzir devido à invasão das pragas e dos insetos. Lá também tinha muitas castanheiras, hoje em dia são poucas que ainda existem; na minha comunidade é um número bem reduzido... E para caçar, às vezes temos que ir para outra comunidade, porque lá mesmo não tem mais aquela mata onde as pessoas caçavam o tatu, paca; hoje em dia já é bem reduzido o número desses animais que tinham antigamente, bem dizer, dentro de casa, e hoje em dia já está bem longe da gente em outras comunidades.”

 

Um problema relacionado a essa questão dos alimentos que vêm da floresta é que eles muitas vezes provêm de árvores milenares, uma composição de floresta que levou centenas de anos, senão milhares de anos, para ser construída em sua totalidade, também estando relacionada aos povoamentos humanos. O desflorestamento que em poucas décadas reduziu a imensa diversidade da Amazônia, fruto da fome de destruição do capitalismo, portanto, suprime toda uma cultura milenar dos povos originários de aprendizado, experimentação e domesticação da rica flora regional.

 

 

 

IHU – Outros dois pontos do relatório dizem respeito à extinção de comunidades e à migração da população para as periferias dos centros urbanos. Como isso tem ocorrido?

 

Guillermo Antônio Cardona Grisales – Nas conversas com os comunitários se chegou a contar 23 comunidades que desapareceram. O enfraquecimento da agricultura familiar na região do planalto, como já destacado em tópico anterior, é uma grande preocupação apontada pelos entrevistados. Neste sentido, é apontado por lideranças sindicais que a extinção de comunidades é um processo que se inicia a partir da chegada dos cultivadores de soja. Algumas falas nas entrevistas deixam evidente essa situação:

 

“Na região da Curuá-Uma, (comunidade de) Boa Sorte... a escola hoje se encontra, com as poucas famílias que ainda há, no meio da soja; o poço lá tem quase 200 metros de profundidade, já foi feito exame da água, o glifosato já está nessa água também com toda essa fundura. Na nossa região tem umas três ou quatro comunidades que acabaram, comunidade com sessenta, setenta famílias... O Curupira, pelo menos, Novo Império, tem alguns moradores lá, mas não são muito mais os originais; Igarapé-Açú não existe mais, está até a armação do colégio lá na estrada, que eles tiraram todo o telhado, e muitas comunidades por aí vão se acabando porque eles vão comprando tudo.”

“Não existe terreno maior ali que seja dos próprios moradores. Todos aqueles terrenos que ali têm agronegócio, que é uma extensão muito grande, todos já são dos gaúchos que moram lá. Os que moram lá têm terreninhos pequenos de um hectare, dois hectares; os terrenos maiores já foram todos vendido. A ideia deles, mesmo, é que quem quiser vender até um metro de terra, eles vão comprando. A ideia é acabar com as comunidades. A ideia do pessoal do agronegócio não é manter a comunidade em si ali, não é manter a paz ali, por exemplo, as coisas bacanas, a paz; tudo bem, eles podem até ajudar, somos amigos, mas a ideia deles é comprar pedacinhos de terras que estiverem por ali.

 


Região de Curuá (Foto: Google Maps)

 

Só que na região da Curuá-Una, próximo da minha comunidade, a gente consegue relatar ali três, quatro comunidades que... comunidades que tinham até 30 famílias, e hoje tu passas e tem 5 famílias. Comunidade que tinham 30, hoje tu passas, tu não acreditas que era uma comunidade, porque não existe mais nada, está o campo de soja... varreram tudo. Então, estrutura de escola, de barracão comunitário que existia, isso tudo foi derrubado; então não existe mais nada. Então, é... Às vezes, a gente passa com alguém, olha [e diz] “aqui já foi uma comunidade de 30 famílias”, a gente passa em frente de carro e a pessoa não acredita que ali era uma comunidade, e não existe mais nenhuma estrutura. Então, um dos grandes impactos foi principalmente isso, sem falar nessas enganações, e depois a própria grilagem de terra, também, que vieram acontecendo. Salvo engano, em 2004, quando houve aquela apreensão aqui no Tipizal de computadores que estavam sendo usados por esse grupo, onde estavam fazendo a própria grilagem de terra, mapeando isso via satélite, e vendendo essas terras para fora, então isso foi um dos grandes impactos que gerou quando a soja chegou.

Outra coisa é a questão da Boa Sorte, e tem a outra comunidade que é o Ramal da Moça, que também era duas comunidades grandes, e hoje tem 3 famílias lá, que ainda resistem porque também não venderam os seus lotes, porque eram nas áreas de relevo, e a gente sabe que essas áreas não são propícias para soja. Então, por conta disso, ainda consegue estar ali, somente para desenvolver a produção, mas morar eles não conseguem mais; mora em outra comunidade e vai trabalhar nessa. Então, é Boa Sorte, Ramal da Moça, Igarapé Vermelho, também, que era outra comunidade que não tem mais ninguém, por conta da chegada da soja, e aqui... Guaranazinho, também, que era uma comunidade que passava do Henrique Mendes, que a gente entrava, que tinha pessoas, e hoje só tem soja. São essas que a gente consegue citar, isso quando eu digo que se acabaram definitivamente, praticamente tudo. Boa Sorte hoje não tem mais a associação. Por exemplo, existe lá o colegiozinho, com poucos alunos funcionando. Então, todas as pessoas que levavam essa luta em frente nas comunidades tiveram que ir mais pra frente, e isso a gente sabe; o projeto do governo é empurrar cada vez mais pra frente, e inclusive estão lá no chapadão. Em 2013 eu acompanhei uma equipe aqui na região da Curuá-una justamente levando pra ver essas pessoas nas comunidades que foram extintas. E a gente ainda encontrou moradores dessas comunidades morando em outras, que nos informaram alguns endereços dessas pessoas aqui em Santarém, dessas pessoas que viviam lá, e vieram para cá com o impacto da soja, venderam as suas terras e tiveram que vir morar na cidade. E aí nós estivemos com a equipe na residência dessas pessoas para também fazer esses mesmos questionamentos: como era a sua vida antes da soja e como ela está sendo hoje depois que você vendeu sua terra e veio para cá? Então, tem casos muito complicados, pessoas que tiveram que vir para cá, venderam os seus lotes lá por um preço, pessoas que venderam lá 100 hectares por seis mil reais, e não conseguiram comprar um lote aqui em Santarém, alugaram a casa enquanto compravam um terreno e o dinheiro foi acabando em aluguel e não conseguiram comprar mais nada. Pessoas que adoeceram e compraram uma casa, mas o cotidiano mudou; todo dia da sala para a cozinha, que era aquela atividade que tinham lá de trabalhar mesmo, todo dia da sala para a cozinha, da cozinha para a sala. Também adoeceram, se queixam que hoje se vive só com a aposentadoria, que só dá para comprar o remédio, pessoas que não tem uma idade tão elevada; igual a gente ver hoje pessoas lá na comunidade, de 70, 80, 85 anos que ainda andam de um lado para outro sadios. E essas pessoas perderam totalmente esse costume que vivia lá. Pessoas que nos relataram que estão com filhos na cadeia porque os filhos não tiveram outra opção, não porque vieram de lá com a opção de fazer o que não prestava, mas pessoas cujos filhos tomaram outro rumo por necessidade. Que a gente imagina que pessoas que têm uma formação já não conseguem um emprego, imagina aqueles lá que não têm, né? Como é que eles vão viver aqui. E pessoas que hoje vivem vendendo churrasquinho na beira da esquina à noite para sobreviver também, porque não tiveram uma renda e aquilo que ele comercializou lá na terra dele não dá. Teve exemplos de pessoas que ainda conseguiram vender a terra, vir pra cá e ainda deu tempo de se arrependerem, voltar e conseguir comprar um lote lá novamente. Então, são alguns relatos desses impactos aí. Entre 2003, que foi o mais forte, e agora, até 2015, mais ou menos, quando ainda estava muito forte a questão da venda de terra na Curuá-Una.

 

 

IHU – Que tipo de desenvolvimento é possível e desejável para a Amazônia hoje, a fim de enfrentar tanto os problemas ambientais quanto os sociais da região?

 

Guillermo Antônio Cardona Grisales – Muito se tem falado de um modelo de desenvolvimento circular e não linear, que favoreça a produção agroecológica e os mercados locais, que possa dar segurança e soberania alimentar às populações locais. São muitas as experiências bem-sucedidas de produção agroecológica orgânica da agricultura familiar e de manejo dos recursos pesqueiros que precisam ser incentivadas por uma política pública da agricultura familiar, de comercialização de produtos agrícolas locais.

 

 

IHU – Quais são os principais desafios sociais da Amazônia hoje, pós-pandemia?

 

Guillermo Antônio Cardona Grisales – Com a precariedade que se vive na Amazônia os grandes desafios sociais são: o desemprego, a fome e a saúde. Com a pandemia e as medidas do governo o desemprego continua muito difícil para conseguir e a retomada das atividades econômicas está lenta demais.

Amazônia, a região Norte do Brasil, é uma região de baixos ingressos, pobre e com a pandemia voltou a fome. Os serviços de saúde pública são precários e as sequelas da Covid-19 e as enfermidades emocionais tem aumentando destes tempos de pandemia.

 

 

IHU – Como a Encílica Laudato Si', do Papa Francisco, pode dar outra direção e orientação em relação aos desafios gerados pelos efeitos das mudanças climáticas da nossa era?

 

Guillermo Antônio Cardona Grisales – O Papa Francisco tem falado muito claro na Laudato Si’ da crise socioambiental que padecemos no Planeta Terra: a crise social da pobreza e desigualdade e a crise ambiental da terra, que se trata de uma crise, a crise socioambiental. E a causa da essa crise única é o modelo de desenvolvimento de esgotar os bens da terra em benefício de poucos, orientado pelo domínio do paradigma tecnocrata, dominado pela economia e a política (LS ns. 49, 106, 108, 109)

Mas, na Amazônia, a prepotência do modelo hegemônico de desenvolvimento destruidor do meio ambiente, e socialmente injusto por excludente e concentrador de riqueza, próprio do agronegócio e da exploração mineral, está fazendo muito difícil uma luta pela preservação do bioma e suas populações.

 

 

IHU – Deseja acrescentar algo?

 

Guillermo Antônio Cardona Grisales – Um desafio para as igrejas locais da Amazônia é se posicionar diante do agronegócio que desmata expandindo seus negócios e envenenando solos, águas e alimentos com agrotóxicos.

 



 

 

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