Professora analisa os chamados ‘traficantes evangélicos’ e como conjugam o monopólio de poderes políticos, éticos, assistenciais em lugares onde a relação com outras instituições é frágil
Houve um tempo em que a religião tinha ainda mais centralidade nas sociedades humanas, sendo o polo irradiador de lógicas políticas, éticas, sociais, impondo também desde a guerra sua hegemonia. Mas, no mundo moderno, causa estranheza pensar que a religião retoma esse lugar de polo irradiador. E ainda mais se falamos do mundo do crime. “Parece contraditório afirmar, mas os casos não nos deixam mentir: a religião, seus códigos, imagens e repertórios constituem hoje um símbolo de dominação de alguns grupos armados nos territórios”, observa a professora Christina Vital, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Ela analisa os chamados ‘traficantes evangélicos’ e sua atuação em periferias já dominadas pelo tráfico de drogas e, mais recentemente, pelas milícias.
Para Christina, “não se trata de pensarmos esta relação, esta aproximação entre criminosos e redes e códigos evangélicos a partir da ótica da conversão, de uma transformação da vida do indivíduo, mas de uma composição específica que envolve expectativas de transformação, apelos morais, conexão com narrativas locais e uso de uma religião como ícone de dominação”. Assim, a religião seria mais uma forma de demonstrar poder.
A professora ainda observa que o crescimento das igrejas evangélicas entre os dirigentes do tráfico é mais sintoma do crescimento que vem ocorrendo como um todo no Brasil, especialmente nas periferias. “Nestas áreas havia muita filantropia católica feita por freiras [católicas] residentes. O apoio social também era exercido, embora de modo menos estruturado, por terreiros de candomblé e casas de umbanda que exerciam suas atividades religiosas nessas localidades”, recorda, ao lembrar que todas essas ações vão diminuindo na mesma proporção em que a penetrabilidade das igrejas evangélicas vai aumentando.
Tal inserção se dá pela escuta, aproximação e relações de confiança que se estabelecem numa espécie de vazio nas relações com outras instituições e entidades, como o próprio Estado. “Não acho correto dizermos que a Igreja cresce onde o Estado não está presente. O Estado está presente nessas localidades, mas de modo precário, reforçando sentimentos de desconfiança, elemento corrosivo da vida social”, pondera.
Estado esse que também está à frente da gestão do sistema carcerário, mas que, mais uma vez, deixa lacunas que na prática só são preenchidas por ações como as das igrejas evangélicas. E não só: Christina revela que os evangélicos estão nas direções dos presídios, são funcionários, o que indica mais um sintoma do crescimento dessa prática religiosa. “Para reverter o quadro de ascendência de algumas religiões no sistema penitenciário, uma profunda reforma teria de ser feita. Pois, diante da precariedade estrutural e da desumanização às quais os encarcerados estão submetidos, as instituições religiosas, com destaque para as evangélicas pelo volume de sua presença, têm sido fundamentais para a sobrevivência de inúmeros internos e para a organização cotidiana dos próprios gestores desses espaços”, analisa.
Com tudo isso, não é difícil imaginar por que tráfico, milícia e práticas evangélicas ficam imbricados nas periferias. “A subjugação de moradores é uma demonstração de força, de domínio. Uma atitude que combina crença religiosa com um modo de operação corriqueira do crime. Chama a minha atenção uma narrativa ‘moralizadora’ que vem acompanhando estas ações”, salienta.
Christina Vital (Foto: Arquivo pessoal)
Christina Vital da Cunha é professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense - UFF, coordenadora do Laboratório de estudos em política, arte e religião - LePar e colaboradora do Instituto de Estudos da Religião - Iser. É autora do livro Oração de Traficante: uma etnografia (Rio de Janeiro: Garamond, 2015) e coautora de Religião e política: uma análise da participação de parlamentares evangélicos sobre o direito de mulheres e de LGBTS no Brasil (2012), entre outros livros e artigos.
IHU On-Line – Um complexo de favelas na Zona Norte do Rio de Janeiro é conhecido como “Complexo de Israel”, local onde impera a ação de milícias e o tráfico de drogas, mas também muito próximos da prática evangélica. Traficantes e milicianos se anunciam como evangélicos e têm grande penetrabilidade nessas comunidades confessionais. O que essa realidade carioca revela acerca da relação entre evangélicos, especialmente neopentecostais, e a criminalidade?
Christina Vital – Participei de alguns programas em 2020 nos quais já havia falado da associação entre Peixão (traficante do Terceiro Comando Puro - TCP) e milicianos. Esta situação foi confirmada por uma investigação policial que ganhou a mídia há alguns dias. Quem mora em favelas e periferias no Rio e/ou pesquisa nelas sabe que, desde a origem, o Terceiro Comando é uma facção conhecida por “tratar melhor” os policiais com fartos “arregos” e com uma política de redução de danos, ou seja, de contenção de mortes de policiais em suas áreas de atuação.
Região que compreende a dominação do Complexo de Israel (Imagem: Google Maps)
É claro que estas duas características de atuação sofrem mudanças circunstanciais, mas são reconhecidas como uma marca. Era corrente a “brincadeira” entre moradores de que várias ações governamentais de ocupação de favelas com consequente baixa nos ganhos dos traficantes (ainda que temporária) ocorriam de modo mais incidente (quando não exclusivo) nas áreas de domínio do Comando Vermelho. Observavam, com isso, que parecia haver uma coincidente proteção das áreas do Terceiro Comando - TC e depois TCP em relação a outras de comando distinto.
Se é verdade ou não, se os chefes do Executivo em cada época desde 1990 no Rio de Janeiro atuavam intencionalmente deste modo não há como comprovar, mas a sensibilidade popular indicava o que agora vem à mídia. Evidentemente que milícia não é igual a Estado, mas há muitos pontos de contato e inúmeras pesquisas sinalizam tal correlação.
O TCP é uma facção que tenta se estruturar a partir de justificações administrativo-econômicas e também morais (em meu livro Oração de Traficante: uma etnografia, apresento inúmeros casos que contribuem para compreendermos esta questão). A dimensão da honra tem ainda um peso que foi reforçado com a conversão de várias lideranças importantes a igrejas evangélicas. Há uma narrativa moralizadora também muito presente na mística em torno da milícia. No TCP existem chefes e gerentes ligados ao candomblé e umbanda, mas são residuais em relação ao grande número de traficantes que se identificam como evangélicos ou como simpatizantes, pessoas em processo de “libertação”. Como se sua participação no crime fosse passageira, rumo “à vida na graça”.
É importante lembrarmos que no Comando Vermelho há também esta aproximação entre traficantes e redes evangélicas no território, mas os modos de operação e “identidade” faccional são distintos.
Mas por que esta ostensividade evangélica entre estes grupos armados? Qual o sentido? Qual ou quais funções isso teria? Esses grupos criminosos se afirmam no território a partir de ícones. A dinâmica da guerra na qual se encontram/construíram na fricção com o Estado e a corrupção visceral que alimenta o crime, se expressa por códigos linguísticos e imagéticos. Eles têm uma função de comunicação para dentro e para fora do grupo. Operam como âncoras de uma identidade.
Marcos Alvito trouxe em etnografia realizada anteriormente à minha em Acari, no Rio de Janeiro, e em outras favelas que as imagens de santos católicos e entidades afro-brasileiras eram fortemente mobilizadas pelos traficantes: pintavam os muros das favelas e faziam tatuagens em seus corpos. Usavam colares e grossos anéis com imagens de São Jorge, São Cosme e Damião, Nossa Senhora Aparecida. Zé Pilintra, Escrava Anastácia, Xangô também apareciam em pequenas edificações e em pinturas murais. Essa expressão religiosa foi migrando para evangélica. Não exclusivamente, mas majoritariamente.
Parece contraditório afirmar, mas os casos não nos deixam mentir: a religião, seus códigos, imagens e repertórios constituem hoje um símbolo de dominação de alguns grupos armados nos territórios. Ou seja, não se trata de pensarmos esta relação, esta aproximação entre criminosos e redes e códigos evangélicos a partir da ótica da conversão, de uma transformação da vida do indivíduo, mas de uma composição específica que envolve expectativas de transformação, apelos morais, conexão com narrativas locais e uso de uma religião como ícone de dominação. Como se os outdoors com inscrições como “Jesus é do dono deste lugar” em Acari falassem sobre o domínio do tráfico naquela localidade e não, necessária e exclusivamente, sobre a condição ética e moral local, sobre um domínio dos evangélicos. Esta é a hipótese com a qual trabalho e que tem me ajudado a pensar sobre casos como os que ocorreram na Baixada Fluminense recentemente.
IHU On-Line – Há uma máxima de que, na favela, onde o poder público não alcança, o tráfico – e agora as milícias – assume esse papel e passa a ditar suas regras. Podemos associar essa lógica ao crescimento evangélico nas periferias e favelas? É, de fato, a única religião que consegue alcançar essas pessoas?
Christina Vital – As periferias e favelas sempre foram territórios de forte atuação de religiões cristãs e também afro-brasileiras. Mais recentemente, com atuação crescente de muçulmanos, ainda que estatisticamente não tão relevante. Nestas áreas havia muita filantropia católica feita por freiras residentes. O apoio social também era exercido, embora de modo menos estruturado, por terreiros de candomblé e casas de umbanda que exerciam suas atividades religiosas nessas localidades.
As igrejas evangélicas se dispersaram nessas localidades a partir, principalmente, dos anos de 1970. Sua multiplicação no ambiente é ao mesmo tempo propulsora e resultado do crescimento evangélico identificado no Brasil de 1980 em diante. Quer dizer, desde 1940 o número de evangélicos cresce no Brasil, mas, de modo acentuado, desde os anos 1990. As cidades são o principal foco de crescimento e nelas, em suas favelas e periferias. As igrejas evangélicas, como toda religião, desempenham um papel social. Sua atuação envolve uma dimensão espiritual e social.
Em especial, as igrejas evangélicas foram investindo cada vez mais no trabalho emocional com pastores formados em psicologia, escuta constante da membresia, oferecimento de cursos direcionados a casais e a jovens nos quais os trabalhos chamados de “cura e libertação” emocional são um ponto alto. Além destas dimensões, a igreja tem um lugar importante na sociabilidade de seus integrantes e seu crescimento impacta a sociabilidade local na medida em que vários marcadores da vida cotidiana nestas localidades passam a ser orientados pelas igrejas: festividades, cultos públicos e mesmo o comércio que vai assumindo uma face gospel com salões, lanchonetes, pequenos mercados com nomes referidos ao universo cristão, além de pinturas com passagens bíblicas tão comuns em favelas hoje. As igrejas compõem, assim, redes de proteção espiritual, emocional e mesmo econômica (há muitas trocas e indicações de vagas de trabalho e cursos de capacitação e formação profissional entre os fiéis, por exemplo).
Não acho correto dizermos que a Igreja cresce onde o Estado não está presente. O Estado está presente nessas localidades, mas de modo precário, reforçando sentimentos de desconfiança, elemento corrosivo da vida social. Para uma coletividade existir e conseguir administrar suas tensões é necessário que seus integrantes confiem uns nos outros e em instituições.
A atuação (talvez intencionalmente) precária do Estado interfere na produção ou reforço de inseguranças formando um terreno propício para organizações que promovam sentimentos coletivos de confiança. Então, a correlação direta entre ausência do Estado e crescimento de religiões é parcialmente válida.
Importante também entender por que crescem umas religiões e não outras. Ao destacar o caráter multifacetado da atuação evangélica busquei apresentar uma das razões para o seu crescimento no campo. Evidentemente, em um país de hegemonia católica, uma narrativa igualmente cristã conforma um elemento significativo para o seu crescimento. Ou seja, acionavam uma linguagem que já comunicava culturalmente.
IHU On-Line – Como compreender o trabalho e a grande adesão a igrejas evangélicas dentro dos presídios? Por que parece que esses grupos conseguem chegar aonde nenhuma outra igreja consegue? Quais os limites de outras ações como, por exemplo, a Pastoral Carcerária da Igreja Católica?
Christina Vital – Há uma relação muito importante entre atuação evangélica nos presídios e no acolhimento a usuários de drogas e a adoção de uma linguagem evangélica pelos traficantes. O “cristianismo estrutural”, revelado em acordos que favorecem a fé cristã nas instituições públicas, é importante para pensarmos também o crescimento desta linguagem religiosa entre milicianos, tendo em vista que vários destes criminosos são oriundos de forças policiais em cujas estruturas a presença de uma narrativa religiosa cristã de viés cada vez mais evangélico é muito significativa. O direito à assistência religiosa em expedições militares, hospitais, penitenciárias e outros estabelecimentos oficiais foi garantido no artigo 113, número 6 da Constituição Federal Brasileira de 1934.
Observamos em pesquisas realizadas no Iser, assim como podemos ver em outros trabalhos, que de um direito do interno (em penitenciária ou em espaços socioeducativos), a assistência religiosa virou um direito das instituições. As igrejas evangélicas se multiplicam nesses espaços e, dada a vinculação evangélica de vários funcionários e mesmo da direção dos locais, conforme vimos em entrevistas, há um favorecimento na inscrição regular daqueles que são líderes e missionários de igrejas evangélicas. A Igreja Católica tem, historicamente, uma atuação nesses espaços de privação de liberdade, mas, há pelo menos 20 anos, perdeu a centralidade nesta interlocução tanto com presos quanto com funcionários e direção penitenciária.
As igrejas evangélicas oferecem redes de apoio aos presos que envolvem cuidados com higiene, alimentação, para os familiares do preso e dos egressos do sistema. Além deste suporte material e emocional, tem o espiritual e de proteção e organização da vida carcerária de cada um, como vimos em reportagens e em trabalhos acadêmicos de expressão.
Assim, para reverter o quadro de ascendência de algumas religiões no sistema penitenciário, uma profunda reforma teria de ser feita. Pois, diante da precariedade estrutural e da desumanização às quais os encarcerados estão submetidos, as instituições religiosas, com destaque para as evangélicas pelo volume de sua presença, têm sido fundamentais para a sobrevivência de inúmeros internos e para a organização cotidiana dos próprios gestores desses espaços.
IHU On-Line – Como compreender o controle e os ataques sobre outras religiões, especialmente de matriz africana, que o tráfico e a milícia ‘evangélica’ impõem nas favelas cariocas?
Christina Vital – É preciso entender, em primeiro lugar, que o domínio territorial sempre foi um modo de operação de grupos armados no Rio de Janeiro. Desde os grupos de extermínio, aos milicianos e traficantes de drogas, todos atuavam a partir de um controle territorial exercido de alguns modos. Como argumentei acima, a criação de uma identidade imagética, gramatical e de procedimentos é importante entre estes criminosos, embora estas formas de identidade/acordo tenham um caráter mais provisório do que o esperado, dado o ritmo da própria vida no crime.
A intolerância religiosa praticada por vários desses traficantes atende, em parte, à vinculação institucional ou cultural deles aos evangélicos, mas também aos seus próprios grupos na medida em que ícones, códigos religiosos são utilizados para expressar seu domínio e sua força. A referência à Israel, ao Deus de Davi, do Antigo Testamento tem uma função importante que se refere ao próprio grupo criminoso, suas tentativas de proteção espiritual e contenção da “paranoia” e “neurose” que a vida no crime lhes oferece.
São fenômenos complexos e com motivações muitas vezes pouco evidentes. Um exercício responsável de compreensão destes casos deve levar este quadro diverso em consideração. A subjugação de moradores é uma demonstração de força, de domínio. Uma atitude que combina crença religiosa com um modo de operação corriqueira do crime. Chama a minha atenção uma narrativa “moralizadora” que vem acompanhando estas ações. Como se os traficantes fossem doutrinar as pessoas, subjugarem para lhes melhorar a existência. Uma operação parecida com a mística das milícias em sua origem.
IHU On-Line – Além do contexto do Rio de Janeiro, o jornal El País revelou em reportagem que, no Acre, um grupo formado por ex-criminosos agora pastores administram conflitos com facções e dão salvo-conduto para que integrantes deixem a vida do crime. Como a senhora analisa essa realidade? Que relações podemos fazer com o contexto do Rio de Janeiro?
Christina Vital – Este tipo de ação não é nova. A intercessão de pastores ex-traficantes em “tribunais da morte” em socorro das vítimas ocorre há bastante tempo no Rio de Janeiro. Pode ser exercido por missionários e por pastores de várias denominações. Em especial, no Rio, vimos a atuação da Assembleia de Deus dos Últimos Dias - Adud, com o pastor Marcos Pereira.
Em Acari, um famoso chefe do tráfico do TCP tinha se convertido à Adud no início dos anos 2000. Naquele período, gozava de uma vida na igreja e ainda no comando do tráfico local. Se autoconsiderava no papel de “super-homem” por estar limpo na vida civil e social e ainda gozar de grande prestígio entre os traficantes. Ele fez uma referência muito interessante porque, se observarmos, são poderosos nesses ambientes: sabem os códigos e por isso estabelecem uma comunicação fluida, conhecem as pessoas, os esquemas, as negociações possíveis. E fazem uso disso em seu favor e de suas denominações e grupos religiosos.
No Rio de Janeiro a ala religiosa em presídios já é real. Para além do espetáculo que essas ações promovem, ficamos pensando qual o pagamento pela libertação da morte? Quais os deveres e obrigações morais impostos? Em diversos trabalhos vemos que se espera do “liberto” fidelidade à instituição, ao projeto, ao centro. Deste modo, são impelidos a evangelizar na rua, vender quentinhas nas praias, vender doces e balas em sinais etc.
IHU On-Line – Suas pesquisas também versam sobre a influência da religião no campo político. Mas que novidade essa associação entre criminalidade e religião pode trazer ao campo político?
Christina Vital – Candidaturas de sucesso exigem investimento financeiro e apoios institucionais. Infelizmente, a dobradinha milicianos, leia-se, criminosos armados, e igrejas evangélicas pode ter um rendimento eleitoral muito positivo e corroer a vida pública de uma forma avassaladora. Esta junção realiza o que uma campanha necessita: influência, fartas quantias em dinheiro investidas em candidaturas, instituições fazendo o apoio e apresentando os nomes escolhidos.
IHU On-Line – A senhora também está iniciando uma pesquisa acerca da ‘esquerda’ evangélica nas eleições 2020. Poderia nos explicar em que consiste essa ideia de ‘esquerda evangélica’? Como ela se manifestou nas eleições de 2020?
Christina Vital – As eleições 2020 foram muito singulares. Pela sua ocorrência neste contexto de pandemia e de uma sensação pública de atordoamento muito acentuada em relação às eleições que ocorreram desde 2014, momento no qual este sentimento público ficou tão evidente. Partidos fisiológicos tradicionais se organizaram, assim como os nanicos de outrora e que se fortaleceram em 2018. Partidos de esquerda também fizeram seus investimentos. Algumas legendas de esquerda e centro-esquerda fizeram questão de convidar evangélicos identificados com suas pautas para comporem um grupo que fizesse frente ao mainstream evangélico na política identificado com conservadorismo moral e liberalismo econômico.
Por outro lado, atores ligados ao movimento evangélico de esquerda na sociedade perceberam a relevância destas eleições em termos de preparação para 2022 e se organizaram para lançar candidaturas que se contrapunham à Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional. Estes evangélicos de esquerda que acompanhamos nas eleições, uma parceria entre Iser, Fundação Heinrich Böll e LePar/UFF, tinham perfis distintos, estavam em diferentes denominações e partidos. Em comum a quase todos eles havia um pertencimento de classe (a maioria residentes em periferias e que tinham nessas localidades suas bases políticas) e uma defesa da vida e de direitos de pessoas negras e de mulheres em nossa sociedade.
As trajetórias dessas pessoas que acompanhamos na pesquisa são riquíssimas do ponto de vista de suas atuações, inserções, aspirações. Vamos soltar os resultados mais completos ao longo do ano.
IHU On-Line – Não podemos perder a perspectiva de que vivemos uma pandemia que tem consequências muito mais duras em regiões periféricas. Como tem analisado a rede de apoio a essas comunidades no contexto atual? O mundo do crime e as igrejas evangélicas mais uma vez são os que mais tocam essas populações?
Christina Vital – Sem dúvida alguma as igrejas evangélicas, como falei anteriormente, têm um papel muito importante na assistência social de pessoas em favelas, periferias e em espaços de privação de liberdade. Em um contexto como o da pandemia, com o aumento significativo da vulnerabilidade dessas populações, a igreja passou a ser ainda mais central e acolhedora. No início da pandemia, os traficantes lançaram toque de recolher em várias favelas. As motivações eram várias, mas tiveram sua relevância no contexto específico.
Posteriormente as coisas foram se rotinizando e o tráfico perde a centralidade organizativa, digamos, mas segue como fonte de socorro para muitos moradores em situação de extrema necessidade nessas localidades. Há variações em termos desta relação tráfico-população residentes, mas, no geral, atuam com um suporte financeiro para muitas pessoas em situação emergencial.