Por: Ricardo Machado | 16 Fevereiro 2017
Diariamente, às 5h30min, o radinho de comunicação dos integrantes do tráfico nas favelas de Acari e Santa Marta, no Rio de Janeiro, começa a chiar. O chefe do tráfico entoa uma oração que busca se comunicar, a um só tempo, com o divino e com seus comandados, apelando por proteção e dando orientações à sua “equipe”. “[o chefe do tráfico] Orientava condutas, porque ele dizia para matar menos, falava para os líderes comunitários cuidarem das pessoas. Aquela oração era uma comunicação com o alto e o baixo”, explica Christina Vital Cunha, pesquisadora e autora do livro Oração de Traficante: uma etnografia (Rio de Janeiro: Garamond, 2015).
A virada dos anos 1990 para os anos 2000 marcou uma mudança radical da sociabilidade nas favelas do Rio de Janeiro no que diz respeito à relação entre religiosidade e tráfico. O novo contexto passa a ter como marca social uma nova gramática, aquilo que a pesquisadora chama de “cultura pentecostal”. “[Esta cultura] existe nas localidades e se expressa dentro das lógicas do universo evangélico, a ver com a cosmovisão pentecostal do mundo como o lugar da guerra. É o mundo da guerra do bem contra o mal, da disputa das almas. Paralelamente, esse é o mundo do tráfico, da guerra e da vigia, é bíblico também, vigiar e orar. O vigiar vem antes do orar. O cotidiano dos traficantes é o de vigia constante”, descreve.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, a pesquisadora explica como a gramática da guerra, do deus de Davi, produz uma estética que vai impactar em toda economia local das favelas, do comércio às relações interacionais dos moradores.
Christina Vital | Foto: Arquivo Pessoal
Christina Vital Cunha é professora do Programa de Pós-graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense - PPCULT e do Departamento de Sociologia da mesma universidade. É doutora em Ciências Sociais pelo PPCIS/UERJ e mestra em Antropologia e Sociologia pelo IFCS/UFRJ. Integra a equipe de pesquisadores da Rede de Pesquisadores Luso-Brasileiros de Artes e Intervenções Urbanas, coordenada por Glória Diógenes (UFC) e Ricardo Campos (Universidade Nova de Lisboa) e o grupo Religião, arte, materialidade, espaço público: grupo de antropologia, coordenado por Emerson Giumbelli (PPGAS-UFRGS). É autora dos livros Religião e Conflito, Ed. Prismas, 2016, em parceria com Melvina Araújo; Oração de Traficante: uma etnografia, Ed. Garamond, 2015; Religião e Política: uma análise da participação de parlamentares evangélicos sobre o direito de mulheres e de LGBTs no Brasil, 2012, em parceria com Paulo Victor Leites Lopes. É colaboradora ad hoc do Instituto de Estudos da Religião desde 2002.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como se dá, atualmente, a relação entre religião e tráfico nas favelas do Rio de Janeiro?
Christina Vital Cunha – Na minha pesquisa eu tentava entender de que modo as redes evangélicas funcionavam como redes de segurança para os moradores dessas localidades que dispunham de um dia a dia muito entrecortado por situações de violência e de precariedade de serviços oferecidos pelo Estado. Eu pensava estas redes como um suporte material, espiritual e psicológico, entendendo que várias dessas igrejas pentecostais ou neopentecostais têm pastores e obreiros que são formados em psicologia e que fazem um tipo de abordagem misturando os diferentes universos de conhecimento. Durante este acompanhamento pude observar a proximidade dos traficantes às redes evangélicas, buscando por proteção, sobretudo porque muitos desses traficantes haviam sido formados em famílias evangélicas, mas que saíram de casa e acabaram indo para o tráfico.
O que acontece em Acari, como em outras favelas, é o crescimento do número de igrejas formando um público cada vez mais numeroso de pessoas que estão nas igrejas. E mesmo aquelas que não estão começam a partilhar daquilo que poderíamos chamar de “cultura pentecostal”. Isso é uma marca estética e uma gramática utilizada pelos moradores de modo que os traficantes são influenciados por essas perspectivas compartilhadas de modo mais geral.
Do final da década de 1990 e virada dos anos 2000, começamos a perceber um movimento em todas as favelas no qual vários traficantes se sentiam mais protegidos e acolhidos na rede evangélica do que na rede, que historicamente a bibliografia publica, das religiões de matriz africana. Atualmente observamos que em Acari, onde o atual chefe do tráfico não é evangélico, há uma série de grafites na favela com motivos religiosos, mas que foram financiados pelo tráfico, onde nessas pinturas há uma gramática muito jovem, usam-se cores alegres. Mesmo não sendo evangélico, o chefe do tráfico possibilita e divulga a presença pentecostal como um modo de agradar moradores e de se comunicar com eles. Internamente, na quadra onde os traficantes fazem shows, os desenhos são outros, no espaço deles não há estas mensagens bíblicas. Contudo, ainda que o atual chefe do tráfico não seja evangélico como o anterior, ele tem um respeito em relação a estas lideranças religiosas e aos evangélicos presentes.
Temos que considerar que a despeito da tese da sociabilidade violenta, do Luiz Antonio Machado da Silva, que fala em uma completa desconsideração da alteridade, a falta de respeito com o outro que os traficantes teriam, observamos que os traficantes querem agradar as pessoas da favela porque eles vivem ali e ficam vulneráveis. Trata-se, então, de uma relação de necessidade, troca e respeito, apesar do desequilíbrio do poder das armas. Portanto, a questão da religiosidade é levada em consideração mesmo pelos traficantes.
É preciso dizer, também, que não é pelo fato de haver um traficante evangélico que há a perseguição de pessoas de religiões de matriz africana. Em várias favelas observamos que são principalmente os moradores que fazem os constrangimentos e que são essas pessoas que vão até os traficantes para solicitar que ajam de um modo mais violento contra as lideranças de religiões de matriz africana. Em muitos casos há a anuência de lideranças religiosas locais, que se valem do poder desigual das armas para fazerem seu domínio territorial.
IHU On-Line – Neste contexto, como podemos compreender a questão da intolerância religiosa? Quais seus efeitos na sociabilidade das comunidades?
Christina Vital Cunha – Esse é um ponto muito importante porque vários estudos de georreferenciamento com base nos estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, desde 2010, vêm mostrando como o crescimento evangélico, o chamado “fenômeno pentecostal”, é localizado principalmente nas cidades, sobretudo nas favelas e periferias. Embora o número de integrantes da classe média venha crescendo, com um discurso voltado aos pequenos empresários focados no empreendedorismo, boa parte dos evangélicos se concentra nas regiões marginalizadas.
O que percebemos é que o crescimento de uma perspectiva religiosa se espraia para outras coisas e tem a ver com a sociabilidade, impactando na economia local. O que isso significa? Há um impacto direto nos comércios que vão se formando, como lanchonetes, lojas de R$1,99, estabelecimentos que vendem produtos evangélicos, salões de beleza evangélicos, lan houses etc. Há vários empreendimentos de moradores evangélicos que têm uma determinada marca, às vezes uma referida estética, o nome dos estabelecimentos faz uma referência ao universo religioso evangélico.
A Favela de Acari, quando tinha um tráfico bastante pulsante e uma menor presença de evangélicos na localidade, era um comércio de bares, quiosques, pensões, vendas de quentinhas que abasteciam o tráfico, e havia as pessoas que iam à localidade para consumir drogas. Isso tudo mudou com o aparecimento dos evangélicos e com a ocupação policial, que mudou o perfil do comércio local e teve um impacto político. Há marcas temporais que tinham a ver com feriados católicos e festividades de santos que começaram a ter outras marcas, como, por exemplo, o dia de São Cosme e Damião, que tinha festa na favela com distribuição de doces e passou a ter uma invisibilidade em boa parte das favelas. Mesmo as festas juninas vão esmaecendo em razão do financiamento do tráfico, que deixa de apoiar os festejos e acaba com a estrutura que se valia de uma organização comunitária.
IHU On-Line – Como a questão da intolerância entra nesse processo?
Christina Vital Cunha – O que vem a se chamar de intolerância religiosa tem uma marca sociopolítica desde o início da constituição do Estado brasileiro porque se dá a partir de uma violência em relação às tradições distintas ao catolicismo que existiam aqui. Todavia, o que aconteceu a partir do evento que ficou conhecido como “chute na santa”, no final da década de 1990, quando um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, gerou uma certa marca de um movimento que começou a se organizar de modo mais intensivo a partir dos anos 2000. No Rio de Janeiro houve a formação da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, formada por lideranças da umbanda e do candomblé, com a participação de outros religiosos, como muçulmanos, hare krishnas e budistas que integram este movimento de combate à intolerância e defesa à liberdade religiosa.
Nas favelas onde esse debate vai chegando muito lentamente em termos de política de visibilidade à intolerância como um crime, as relações são muito tensas não somente com o tráfico contrário às religiões de matriz africana, mas em relação aos moradores contra os próprios moradores. Há um contexto sociopolítico muito desfavorável à presença de religiosos de matriz africana. Isso nas favelas se tornou mais intenso porque é um local com uma densidade demográfica muito grande, onde esses rituais têm um tipo de sonoridade em que é impossível realizar as celebrações em segredo. Esses vários terreiros que existiam nas favelas foram para a Zona Norte ou para a Baixada Fluminense. Uma mãe de santo falou que esse êxodo se dá em parte pela intolerância religiosa e em parte pelo aumento da violência nas favelas, o que pôde ser percebido no trabalho de campo em Acari desde a década de 1990. O crescimento do tráfico e o superarmamento do tráfico traziam uma condição muito instável para os moradores e para os filhos de santo que iam à favela.
Ainda na década de 1990 houve a “gratificação faroeste”, em que vimos a violência crescer no estado e na cidade do Rio de Janeiro. Resumindo, há duas ocorrências. O movimento da intolerância religiosa praticada por moradores e a questão que diz respeito à violência estrutural, que se apresenta deste modo em razão do crescimento do tráfico e que dificulta a ida dos filhos de santo para a favela.
IHU On-Line – Que visão de mundo está implícita na ideia de “gramática pentecostal”?
Christina Vital Cunha – Esta gramática diz respeito a um certo comportamento que, apesar de não gostarmos de reificar o conceito de cultura, poderíamos chamar de “cultura pentecostal”, que existe nas localidades e se expressa dentro das lógicas do universo evangélico, a ver com a cosmovisão pentecostal do mundo como o lugar da guerra. É o mundo da guerra do bem contra o mal, da disputa das almas. Paralelamente, esse é o mundo do tráfico, da guerra e da vigia, é bíblico também, vigiar e orar. O vigiar vem antes do orar. O cotidiano dos traficantes é o de vigia constante. Quando fazia minhas entrevistas para a pesquisa, eles [os traficantes] ficavam o tempo todo olhando para trás, é o que eles chamam de neurose, paranoia, em razão do contexto que é muito instável.
Há uma aderência do mundo pentecostal ao universo da batalha, que no caso religioso é a batalha espiritual e no dos traficantes uma batalha contra os inimigos (os internos do próprio tráfico, a polícia, as outras facções). Mobiliza-se muito a gramática religiosa da guerra, do deus de Davi da proteção e da confirmação. Há uma estética que faz com que os traficantes se vistam de modo mais sóbrio, muito diferente daquele divulgado na mídia, com um monte de colar de ouro, camisas de time de futebol, estilo rapper. O diário de um traficante que foi apreendido em Acari falava das inquietações dele, do momento em que ele deixaria o tráfico e ficaria só na igreja, do momento em que ele sairia da tentação do dinheiro. Há uma conexão com o modo como eles estão olhando para a própria vida, como compreendem a conversão como um ato e a “santificação” como um processo. Nesse sentido, a santificação implica que os traficantes se desprendam daquele apego ao dinheiro. Também falavam que a disciplina aprendida nas igrejas evangélicas era levada para os traficantes e diziam “você quer sair do tráfico? Então tem que se preparar para isso”. Aí passaram a investir em negócios, abrir lojas, comprar posto de gasolina, investir em bens que permitisse saírem, de modo disciplinado e programado, do mundo do tráfico sem se verem em uma precariedade absoluta, pois esta situação de precariedade, na justificativa dos traficantes, era o que os levava de volta à vida no crime. Isso é importante para compreendermos uma movimentação sociológica local do tráfico.
IHU On-Line – Isso pode ser compreendido como um efeito positivo deste fenômeno?
Christina Vital Cunha – Neste quesito da proximidade das redes religiosas com o tráfico é difícil dizermos o que é positivo como perspectiva, porque há grupos religiosos que são absolutamente contrários a esta proximidade. Havia pessoas que diziam que se os traficantes gostariam de estar na igreja de verdade, eles deveriam fazer isso integralmente, senão estariam dando mau testemunho. Isso implicava uma poluição moral dos evangélicos nestas localidades, porque se, em algum sentido, ser evangélico era um mecanismo de se limpar moralmente do fato de que os moradores de favela tinham sempre uma condição de atividade com o crime, dizer-se evangélico era um modo de limpeza moral.
Para os evangélicos a proximidade é negativa, para os traficantes é positiva, porque está orientando condutas tanto no tráfico quanto fora dele, de modo que mesmo aqueles que não saíram do tráfico mostravam uma orientação que eles diziam ser dos pastores. Então a política de redução de violência na favela, ou seja, diminuição da violência no futebol, da violência contra as pessoas que roubavam na favela, contra os policiais que entravam etc., todas estas situações eram narradas como uma orientação daquele traficante local que se converteu, disse que teve uma visão e que a partir dela acreditava que a libertação viria pela redução do número de mortes e da violência. Houve um aumento do pagamento de propina, o que eles chamam de “arrego”, em relação aos que usavam crack, os traficantes passaram a ter um outro tratamento que, às vezes, não era bater, nem expulsar, mas de levar à casa dos pais para eles verem a situação dos filhos. Havia agressão física em vez de matar. Era uma política de redução de danos, orientada por uma perspectiva religiosa. Mas eu não gosto de pensar muito nesse sentido, porque é uma relação muito complicada.
IHU On-Line – A senhora realiza pesquisa na Favela de Acari e no morro Santa Marta desde a década de 1990. Que tipo de mudanças houve ao longo de aproximadamente três décadas no que diz respeito à relação entre religião e tráfico?
Christina Vital Cunha – É importante pensarmos de modo longitudinal porque assim conseguimos ver os movimentos. Desde antes de eu fazer o trabalho de campo em Acari, em 1996, já havia vários relatos dos moradores de uma marca muito forte do catolicismo nas favelas, porque havia os missionários, as irmãs que faziam o trabalho assistencial, tanto em Acari quanto em Santa Marta. Isso era um marcador da sociabilidade e da cultura, festejos que reuniam pessoas locais e de fora que iam lá assistir às comemorações e isso integrava muito a partir de uma simbologia, de uma gramática e de um calendário muito católico. Essa marca católica coexistia, de modo geral, com a existência de terreiros e casas de candomblé e umbanda (vale lembrar, também, que a densidade demográfica era muito menor). As igrejas ocupavam chácaras que iam sendo ocupadas lentamente, algumas de um modo bem regular e lento, até que houve um boom.
Com o crescimento da população local, com o crescimento dos evangélicos de modo geral, e nessas localidades de modo específico, eles começaram a produzir uma marca importante em termos de visibilidade na paisagem sonora, porque as pessoas caminham pela favela e ouvem os cultos, veem-se vários templos, várias faixas anunciando cultos, celebrações especiais, shows que serão feitos, campanhas das igrejas etc. Aqueles terreiros que existiam antes vão perdendo espaço, em razão da intolerância religiosa e da própria densidade demográfica que vai comprimindo as áreas desses lugares. Os antigos espaços religiosos católicos que ainda existiam perdem centralidade, porque muitas vezes não têm um padre no local (vai uma vez por mês à igreja) e abrem com uma frequência muito menor que as igrejas evangélicas, que funcionam em vários momentos do dia, enquanto a igreja católica de Acari e Santa Marta está quase sempre fechada. Em Acari fizeram um movimento da arquidiocese de levar párocos da renovação carismática à comunidade para competir com o pentecostalismo crescente.
Essa política diocesana se deu a partir de meados dos anos 2000, que coincidentemente é o mesmo período em que os grupos de combate à intolerância religiosa começavam a se formar no espaço público. Embora os religiosos da matriz africana não eram exatamente visíveis, eles tinham marcas importantes nas festividades dos terreiros que começavam a decrescer. Precisamos entender que isso não decorre somente da intolerância religiosa, muito menos da intolerância religiosa de traficantes, mas tem a ver com o contexto social mais amplo, que envolve a questão da violência e de uma certa perda de público local. Começamos a ver fenômenos de conversão massiva, de estabelecimento do pentecostalismo como uma referência moral importante na localidade, e isso não é qualquer coisa.
Hoje temos esta marca pentecostal muito grande, mas não sabemos que movimentos vão acontecer e que poderão mudar isso. Por exemplo, em São Paulo o número de muçulmanos mais que dobrou, está havendo um movimento interessante de formação de espaços de oração islâmica nas favelas, de pessoas que se converteram ao Islã e que trazem toda aquela marca estética com o vestuário, mas que não sabemos como será adiante, se isso virá para o Rio de Janeiro, por exemplo.
IHU On-Line – De que forma as religiões acabaram ocupando as linhas de fuga deixadas pelo Estado?
Christina Vital Cunha – O crescimento do pentecostalismo não se explica somente pelo vazio deixado pelo Estado a estas populações, há outras razões que têm a ver com a dinâmica do universo religioso. É fato que no Brasil, e em outros países do mundo de economia liberal, há grupos religiosos que são fundamentais no apoio de diferentes populações. Se pensarmos nos Estados Unidos, como a igreja católica e a protestante fazem em relação a população que não tem plano de saúde. Lá, como o serviço de saúde não é universal como no Brasil, quando as pessoas têm uma doença crônica e o trabalho não permite a aquisição de um plano de saúde, são as igrejas que garantem este atendimento.
Aqui no Brasil havia uma marca católica muito presente nos presídios, mas que hoje cedeu espaço a maior presença dos neopentecostais. Eles levam objetos e produtos que seriam de responsabilidade do Estado para dar aos presos. O mesmo ocorre nas favelas, inclusive com uma rede de contato para trabalho, que oferece até cestas básicas. Quem veio ampliando esta ação social foram também os terreiros a partir da criação da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – Seppir, que dá conta de questões étnico-raciais, por meio da distribuição de cestas básicas, apesar desta ação social já estar sendo realizada anteriormente e que foi incrementada. As religiões têm nessas localidades esse lugar de apoio.
IHU On-Line – Em um sentido mais amplo, que relações podemos estabelecer entre o fenômeno da religiosidade e o tráfico com a eleição de Marcelo Crivella?
Christina Vital Cunha – A primeira coisa é que se superdimensionou a vitória do Crivella, atrelando-a de um modo simples demais como a vitória da Igreja Universal do Reino de Deus. Temos que pensar que 47% da população votou branco, nulo ou não foi votar. Dos outros 53%, ele teve maioria, ou seja, teve um quantitativo expressivo em relação àqueles que votaram no Marcelo Freixo. É um percentual pequeno do universo de votantes da cidade. As articulações que o Crivella fez estão para muito além do universo religioso, aliando-se, ao mesmo tempo, a empresários e a setores periféricos, como, por exemplo, o Sindicato dos Mototaxistas, um segmento menos privilegiado financeiramente e em termos de status social. Havia uma linha política de fazer alianças amplas na sociedade.
Não acho que a vitória do Crivella seja uma derrota da bandeira de esquerda de modo muito geral, como se fala por aí. De fato, há um projeto neoliberal, empreendedor, que está na igreja também, mas não somente. Esse projeto comove corações e mentes porque promete que, pelo esforço individual, se alcança uma vitória. Sobretudo em uma cidade como o Rio e em um país como o Brasil, onde há precariedade nos serviços públicos, e contar consigo mesmo e com as redes locais de vizinhança, amizade e parentesco é mais ou menos o que a população sempre fez para a vida acontecer. Então havia este projeto empreendedor, neoliberal, que estava posto, e um outro que estava anunciado pelo concorrente nas eleições, que era o Freixo. São projetos inconciliáveis.
Tem que ver para a frente como vai se mobilizar esta camada social, que era alvo da esquerda até então e que vem se envolvendo nesse sonho neoliberal
Tem que ver para a frente como vai se mobilizar esta camada social, que era alvo da esquerda até então e que vem se envolvendo nesse sonho neoliberal. Não é julgar esses que estão capturados pelo sonho neoliberal como alienados, individualistas e selvagens, mas é entender em que medida a pauta da esquerda pode oferecer um horizonte para essas pessoas. Como chegar a essas pessoas? Tem algo aí para se observar, mas não acho que foi uma supervitória da Universal, imaginando que Crivella estava na sexta candidatura e, no universo da política, isso é uma coisa importante, à medida que galgou visibilidade ao longo do tempo.
Tem outro contexto, que era a situação da esquerda de modo geral. Tudo aquilo que era ligado à esquerda parecia no Brasil como ligado ao PT, ligado à corrupção ou a um desmando, então tinha uma atmosfera muito negativa. Nesse sentido, teve uma vitória enorme da campanha do Freixo, se formos pensar comparativamente.
IHU On-Line – Como se deu o processo de pesquisa da senhora que resultou no livro Oração de traficante (Rio de Janeiro: Garamond, 2015)?
Christina Vital Cunha – Eu fui graduanda do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense - UFF na década de 1990 e participei de uma bolsa de pesquisa, na época em que as bolsas eram mais abundantes. A gente observa que na gestão do Lula, principalmente, teve uma ampliação do número de bolsas e fortalecimento das universidades públicas. Estamos vendo um esmaecimento de recursos para as universidades neste momento, mas eu fui fruto de iniciação científica.
Na bolsa que ganhei, fui a campo com o professor Marcos Alvito, que estava fazendo a tese dele naquele momento na USP e precisava fazer uma mudança radical na equipe dele. Ele tinha pesquisadores que eram homens e nunca teve uma pesquisadora mulher que tivesse engajamento e interesse nesse universo religioso, que parecia para ele tão interessante, mas que não tinha uma reflexão sobre isso naquele momento. Então fizemos uma mudança na equipe, e logo começamos a ir à favela juntos. Ele começou a acessar um outro universo do feminino, das casas, porque até então – lembrando aquele clássico do [Roberto] DaMatta, A Casa e a Rua: espaço, cidadania, mulher e a morte no Brasil (Rio de Janeiro: Rocco, 2003), a casa como um domínio do feminino, e a rua como um domínio do masculino – era um pouco isso que ele vivia. Estava sempre no futebol, nos bares, mas nunca conseguia ir às casas porque, em um certo sentido, era moralmente delicado a mulher receber dois homens, ou só ele, em casa durante o dia, enquanto o companheiro estava trabalhando.
Quando eu chego à pesquisa, a gente acessa o universo feminino. Fiz um trabalho de campo intensivo naquele período. Como eu era muito jovem na época, as pessoas tinham uma receptividade bem interessante, porque eu era estudante, e isso promovia empatia, porque ali tinham várias mães que me viam como se pudesse ser filha delas também. Depois fui morar com outras estudantes. Era uma pesquisa que foi emocional e afetivamente bem importante.
Depois desse período de iniciação científica, fiz mestrado com a orientação da professora Regina Novaes, na UFRJ, e nesse período já estava atenta à questão da política e da religião. Era a época em que o [Anthony] Garotinho era governador do Rio de Janeiro, um governador que era evangélico, mas, ao mesmo tempo em que mobiliza o universo evangélico, não era um candidato exatamente confessional, como foi o pastor Everaldo em 2014, que se apresenta como pastor Everaldo, presidente. Garotinho nunca foi isso. Ele era um radialista, uma pessoa da comunicação, que era ligado à esquerda e que também era evangélico.
Naquele momento político, me interessava pensar as conversões e as favelas, como era esse elemento político. Então fizemos um trabalho bem legal na época, inclusive premiado na UFRJ, e depois veio o momento do doutorado, com a professora Márcia Leite. Fiz uma parte do doutorado em Paris, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, que era para fazer um comparativo entendendo o pentecostalismo também na Europa, na França, onde é que estava localizado, porque também era uma coisa periférica.
No curso da tese, eu tinha interesse nas redes de proteção, pensando na sociabilidade, nas rotinas dos moradores, e de repente começo a observar essa proximidade dos traficantes com os religiosos. Vi que eles faziam uma oração todos os dias às cinco e meia da manhã, para 500 radinhos [walkie talkies], se chama Oração dos Traficantes, porque entoava ao mesmo tempo como uma oração na qual ele se comunicava com o divino, mas também com as pessoas. Orientava condutas, porque ele dizia para matar menos, falava para os líderes comunitários cuidarem das pessoas. Aquela oração era uma comunicação com o alto e o baixo, digamos assim.
A pesquisa foi muito intensa, afetiva, e por conta dessas redes eu consegui acessar os traficantes para falar, porque era difícil, eles desconfiavam, tinham receio em relação a isso. Mas quando fui solicitar, já havia mais de dez anos que alguns deles me viam, então tiveram alguma confiança para me falar dessas questões que envolviam a própria economia do tráfico local.
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Oração de traficante. O mundo da guerra do tráfico e da guerra das almas. Entrevista especial com Christina Vital Cunha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU