05 Janeiro 2011
"A Copa do Mundo no Brasil vai custar 17 bilhões de reais. Para se ter uma ideia, o Bolsa Família gasta 13 bilhões e meio de reais por ano. Se o Bolsa Família permite que você alimente 30 milhões de pessoas, com o dinheiro da Copa do Mundo daria para alimentar 50 milhões de pessoas durante o ano. Será que vale a pena, quando sabemos que 65% desse dinheiro irá para a construção de estádios, que vão aprofundar o processo de elitização do futebol, além de dar dinheiro para empreiteiras, políticos e dirigentes corruptos?", questiona o historiador e antropólogo Marcos Alvito. Indignado com a elitização do futebol, ele fundou a Associação Nacional dos Torcedores para poder ter força para barrar o processo que ele chama de aristocratização do futebol.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, à IHU On-Line, Alvito desmembra o que está em jogo com a elitização do futebol e analisa o processo no Brasil e no mundo. E falta também sobre a organização da Copa do Mundo de 2014 no país. "Os cartolas, até agora, estão ganhando de goleada. Está na hora dos torcedores entrarem em campo e virarem o jogo", enfatizou.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O futebol no Brasil está elitizado?
Marcos Alvito – Este é um processo que se acelerou nos últimos cinco anos. O principal elemento é o preço abusivo dos ingressos, que aumentando muito além da capacidade do poder aquisitivo do brasileiro e dos índices inflacionários. Hoje, há ingressos que custam, às vezes, o dobro da entrada para o cinema, que também teve uma valorização muito grande nos últimos anos. Em Santa Catarina, por exemplo, onde estou agora, o Avaí subiu o ingresso de R$ 40,00 para R$ 60,00. Em Curitiba, quando subiu para a primeira divisão, o Coritiba avisou que o ingresso custará R$ 100,00 para quem não for sócio. No Rio de Janeiro, passou de R$ 15,00 para R$ 30,00 e, no ano seguinte, de R$ 30,00 para R$ 40,00. Isso sem falar nos dias de clássico ou outro jogo especial.
Outro elemento desse processo de elitização é o desaparecimento das áreas populares, como a Geral do Maracanã, em 2005, que foi a senha para essa transformação. O Palmeiras, em São Paulo, está demolindo o estádio para construir uma arena onde, obviamente, não terá uma área mais barata. O Internacional destruiu há anos uma área popular chamada “coreia”. Quando estive um ano na Inglaterra, conheci um projeto que trata da transformação do estádio em um shopping e do torcedor em um consumidor. É um plano de marketing que muda a clientela do futebol, buscando quem pode consumir, pagar esses ingressos caros, comprar todo tipo de produto, desde óculos de sol a cosméticos, na loja do clube. É um plano para expulsar os torcedores mais pobres.
Estádio do Engenhão, na cidade do Rio de Janeiro |
Além de shoppings, os estádios são estúdios de televisão, onde há uma cidade cenográfica de faroeste feita de papelão e isopor, mas que dá um bom efeito. É um fake, uma caracteristicamente pós-moderna. O Engenhão, por exemplo, é um estádio todo aberto, com bonita arquitetura. Filmado de fora, parece um navio fantasma flutuando, todo iluminado. Mas ao entrar, percebe-se que é um estádio pessimamente construído, com pouquíssimo espaço para as pernas. Lá, você não desce diretamente para o túnel de saída, é preciso passar por cadeiras para depois pegar a escada de novo. Se acontecer uma situação de pânico no Engenhão, morrerá muita gente amontoada.
Existe também uma diminuição da capacidade dos estádios, uma tendência mundial apontada pela FIFA. Ao mesmo tempo em que você expulsa o povo do estádio, você joga ele para a poltrona onde ele compra o Pay-per-view. É um crime perfeito: você coloca o jogo em um horário ideal para o telespectador ou o teletorcedor, mas o torcedor de verdade, o de carne e osso, fica como um palhaço que participa da festa, indispensável para o espetáculo da televisão. Mesmo que tenha somente três torcedores no estádio, as emissoras os mostram como se fosse um show de torcida.
IHU On-Line – Quem tem interesse na elitização do futebol?
Marcos Alvito – Os interesses são muito variados. As empreiteiras, que no Brasil elegem 54% dos deputados, sempre têm um grande negócio derrubando um estádio e construindo um novo. Assim como os diretores de clube, de federações e autoridades em geral, que aprovarão esses planos e que, obviamente, farão o famoso “caixa dois”.
O segundo interesse é o das televisões, que querem um espetáculo muito bem coordenado, sem problemas, onde não haja brigas ou outros fatores que manchem o espetáculo. Vemos a televisão apoiando claramente determinados tipos de torcida. Nos últimos cinco anos, por exemplo, junto com esse processo de elitização, surgiu no Rio de Janeiro e em outros lugares do Brasil uma torcida que só apoia o time, que não o critica, não fala palavrão, não xinga a torcida adversária, só existe para exaltar os ídolos e a história do time, politicamente corretos. São os Loucos pelo Botafogo, Legião Tricolor, Os guerreiros do Almirante, a Urubuzada do Flamengo, embora haja algumas diferenças entre elas. O interessante é que a televisão coloca inclusive as letras das músicas dessas torcidas na tela enquanto está passando o jogo. São torcidas que têm papel consciente de figurante do espetáculo televisivo, produzindo coreografias, músicas, bandeiras, cores, sons, mas sem papel político de torcida, de protesto, de transgressão, de conscientização e de revolta.
Nelson Rodrigues já dizia que futebol sem palavrão não é futebol, porque o palavrão tem uma capacidade de liberação fantástica. Não estou elogiando os cantos homofóbicos e racistas; estou falando do palavrão geral, de liberação, de mandar o jogador para aquele lugar, xingar o juiz sem ser racista ou homofóbico. Isso faz parte da cultura do futebol. Obviamente, que quem tem grande interesse nessa transformação são as grandes empresas, porque o futebol é uma língua franca, universal, que serve para vender qualquer tipo de produto. O futebol é o principal carro chefe na indústria do entretenimento no mundo, é um negócio que movimenta bilhões. O esporte é tão importante nos Estados Unidos que ele movimenta sete vezes mais que Hollywood, duas vezes mais que a indústria automobilística. No Brasil, já se despertou para isso há algum tempo; é a festa dos consultores de marketing, do pessoal que tem MBA, que infesta os clubes tentando imprimir essa ideia de que precisamos mercantilizar tudo.
O futebol é central na cultura brasileira, um meio de expressão. O brasileiro debate as grandes questões políticas, filosóficas, existenciais através do futebol, jogando ou conversando sobre o jogo. Mas esse cara vai virar telespectador, assistir a propaganda e comprar o produto se ele puder. E para aquele espetáculo especial, tipo uma ópera, vão os eleitos, de carro, em um esquema antiecológico. O Maracanã vai aumentar enormemente o espaço para estacionamento, o que é um absurdo quando pensamos no aquecimento global. Tinha que se melhorar o espaço público e não dar mais espaço para estacionamento estimulando as pessoas a terem carro e destruírem o planeta. É uma insanidade total como demonstra, por exemplo, a escolha da Rússia e do Catar como sedes da Copa do Mundo. Só há um interesse: o dinheiro. São países onde não há tradição democrática e o “caixa dois” pode imperar livremente sem o controle da sociedade.
IHU On-Line – Foi a televisão que elitizou o futebol, então?
Marcos Alvito – A lógica da televisão é filmar e mostrar um show que tenha interesse comercial, que tenha grande audiência. Isso significa que ela quer filmar, sobretudo, equipes que são populares e os jogos que tenham maior rivalidade. Flamengo e Corinthians, por exemplo, é uma festa para a televisão porque o que importa para ela é o número de espectadores. No caso inglês, antes da entrada pesada da televisão, sobretudo da televisão a cabo, havia quatro divisões do futebol inglês, compostas por 92 clubes. Aquele timezinho da quarta divisão era importante para o sistema futebolístico inglês. A primeira divisão levava 50%, a segunda 25%, a terceira 12,5% e a quarta 12,5%, era um sistema relativamente saudável.
Quando entrou a televisão a cabo, ela comprou os direitos por um absurdo de dinheiro, mas fez com que fosse criada a Premier League, que foi um golpe baixo. Aquilo que foi vendido como um grande sucesso foi baseado no fim de uma tradição de solidariedade entre os 92 clubes das quatro divisões da Inglaterra. O multimilionário da mídia Robert Murdock disse: “Eu pago, mas só quero jogos da primeira divisão, não me interessa pagar e dar dinheiro para a quarta divisão. Eu quero pagar para ver jogos do Arsenal, Manchester, Liverpool”. Esses clubes cresceram e saíram da Football League inegavelmente, porque eles tinham contrato e formam uma divisão a parte, que foi a Premier League. O dinheiro da televisão, que era uma montanha comparada ao que a rede pública pagava antes, passou a ser dividido entre aqueles vinte clubes. Não satisfeita, a televisão passou a transmitir determinados jogos, do Liverpool, do Arsenal, do Manchester, e os dirigentes desses clubes disseram: “Se transmitem mais os nossos jogos, queremos mais dinheiro”.
A lógica da televisão é privilegiar os grandes clubes, os que dão audiência, porque permite comprar cota dos anunciantes. Isso gera um sistema de concentração de recursos nas mãos dos grandes clubes que, com os recursos da televisão, compram melhores jogadores, ganham mais campeonatos e são mais televisionados. Nos últimos anos, a Inglaterra teve, praticamente, dois campeões: Chelsea e Manchester United. A concentração de riqueza nas mãos de grandes clubes é exaltada pelos consultores de marketing que não entendem absolutamente nada de futebol. Eles aplicam ao futebol a ideia de uma grande empresa. É uma lógica pautada na audiência e não na questão esportiva. Isso leva ao enfraquecimento do sistema futebolístico como um todo, fazendo com que os clubes pequenos desapareçam.
No Rio de Janeiro, por exemplo, tínhamos clubes interessantes e poderosos, como América, Bangu, São Cristóvão, Bom Sucesso e Olaria. Eles tinham campos grandes, bons jogadores, nunca tiveram grandes torcidas, mas tinham certa tradição no futebol. O São Cristóvão, por exemplo, além do Ronaldo, deu outros sete jogadores para a Seleção Brasileira e foi campeão do RJ em 1926. Hoje está jogado às traças e, como outros, servindo apenas como vitrines para empresários. No futebol, como na vida em geral, o econômico não é sinal de que tudo vai bem. Pode a economia do futebol dos grandes clubes brasileiros ir muito bem e o futebol brasileiro ir muito mal.
IHU On-Line – Em sua opinião, até que ponto manifestações de dirigentes e cartolas influenciam no comportamento dos torcedores?
Marcos Alvito – A gozação faz parte do futebol, ele é movido pela rivalidade clubística. Mas, como diz o Jose Miguel Wisnik no maravilhoso livro “Veneno Remédio: o futebol e o Brasil”, essa brincadeira é semelhante a brincar com fogo, está sempre em um limite muito tênue entre a gozação e o confronto. A maior parte da violência que ocorre no futebol já existe na sociedade. Duas pessoas educadas, acostumadas a resolver suas questões de forma civilizada, podem brincar sempre entre si. Mas nas grandes cidades do Brasil, onde a violência faz parte do cotidiano, essa rivalidade é uma fagulha perigosa que pode acender o ódio.
Muitos dirigentes de clubes são políticos, vieram da política ou vão para a política durante a sua gestão ou depois, aproveitando a popularidade que angariam no futebol. Eles sabem que esse tipo de declaração vai aparecer na mídia e fazer com que os torcedores digam: “Ta vendo? Ele é torcedor igual a gente”. Só não é na hora de colocar o preço no ingresso, de reformar o estádio, de pensar em políticas de transporte para os torcedores. Caberia mais aos presidentes do clube tentar não acirrar esse tipo de rivalidade. Essa gozação vinda de um presidente soa como um populismo e uma demagogia perigosa.
IHU On-Line – Como surgiu a Associação Nacional de Torcedores?
Marcos Alvito – Eu sou torcedor do Flamengo há 50 anos. Comecei a estudar o futebol e fui para a Inglaterra fazer um trabalho que se chamava Paixão Vigiada. Já tinha feito uma etnografia dos policiamentos de torcidas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Aliás, comecei esse trabalho em 2005, no último dia da geral do Maracanã, que foi um jogo entre Fluminense e São Paulo. Quando fui para a Inglaterra, percebi que a ideia de que o futebol inglês tinha dado certo era um blefe de marketing. O futebol está endividado, os clubes devem milhões. O torcedor tem, em média, 43 anos, ou seja, é um público velho. Não tem juventude e alegria dentro dos estádios. O futebol inglês tinha dado certo antes, quando era extremamente popular, com clubes pequenos, estádios antigos, mas muito frequentados.
Quando voltei para o Brasil, percebi que esse plano de aristocratização do futebol estava em pleno andamento. Como típico professor universitário, eu fiquei reclamando e não fiz absolutamente nada. Até que o Flamengo, que estava quase na segunda divisão, colocou ingresso para um jogo contra o Palmeiras no valor de R$ 50,00. Foi o estopim. Escrevi um manifesto, fiz um blog, reuni os alunos e formamos a Associação de Torcedores. Éramos 30 pessoas em um bar tradicional em frente ao Maracanã, montando uma associação nacional para lutar contra a elitização do futebol. E a associação estourou, hoje nós somos 2.600 associados no Brasil inteiro.
É uma coisa incrível, porque todo mundo está percebendo que o jogo deles está sendo roubado, colonizado pelo capital. Aquele futebol que conhecemos vai desaparecer se não fizermos algo, se não barrarmos esse processo. Mas agora percebemos que há uma possibilidade de vitória, de conquista. Não podemos tratar esse processo como inevitável. Os cartolas, até agora, estão ganhando de goleada. Está na hora dos torcedores entrarem em campo e virarem o jogo. A Associação dos Torcedores é a amarelinha que podemos vestir com orgulho.
IHU On-Line – O Brasil está preparado para receber a Copa do Mundo de Futebol?
Marcos Alvito – Houve um bombardeio da mídia, em uma estratégia da distração, insistindo que Copa do Mundo, as Olimpíadas e outros megaeventos são a grande possibilidade de desenvolvimento. Está mais que provado que é uma mentira. A única coisa que um grande evento traz é aquele sentimento de “poxa, fizemos a Copa”. Na maior parte das vezes, traz prejuízo. A Copa do Mundo no Brasil vai custar 17 bilhões de Reais. Para se ter uma ideia, o Bolsa Família gasta 13 bilhões e meio de Reais por ano. Se o Bolsa Família permite que você alimente 30 milhões de pessoas, com o dinheiro da Copa do Mundo daria para alimentar 50 milhões de pessoas durante o ano. Será que vale a pena, quando sabemos que 65% desse dinheiro irá para a construção de estádios, que vão aprofundar o processo de elitização do futebol, além de dar dinheiro para empreiteiras, políticos e dirigentes corruptos? É um enorme desperdício de dinheiro.
Será uma Copa que o brasileiro não vai assistir. Cerca de 30% dos ingressos são reservados para patrocinadores da FIFA. Sobram 70% dos ingressos, que ficarão com os turistas e com o pessoal que tem dinheiro para pagar R$ 500,00 por um ingresso. O povo brasileiro não terá a menor chance e continuará assistindo a Copa do Mundo pela televisão com aquela frustração de que está a poucos quilômetros do estádio e não pode ir assistir. Não estamos preparados, não porque falta infraestrutura, mas porque é um conto do vigário, o que chamo de Copa 171. Trata-se de uma grande jogada de marketing das grandes empresas e que terá consequências depois que o circo da Copa do Mundo for embora. Não tem a ver apenas com recursos do povo, mas é uma agressão a essa arte e cultura popular que é o futebol brasileiro.
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Brasil: o país do futebol... para os ricos. Entrevista especial com Marcos Alvito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU