29 Novembro 2010
“Apesar de a desigualdade social ser uma realidade absolutamente concreta e absurda no Brasil, a consciência disso ainda é muitíssimo baixa e é baixa não somente entre os que são privilegiados por ela, mas também pelos que são massacrados por ela. Estes não têm consciência do seu direito de viver melhor, não sabem que a sociedade pode ser diferente e que nós podemos agir para mudar”, explica Francisco Whitaker durante a entrevista que concedeu à IHU On-Line por telefone.
Chico, como também é conhecido, analisa avanços, problemáticas e retrocessos do processo político atual e indica os reacertos que o Brasil precisa fazer. “São poucos os mecanismos que podem ser introduzidos para que a riqueza, que vai se acumulando, não se concentre nas mãos de poucos, como vem acontecendo atualmente no país. É preciso haver uma grande redistribuição da renda, este é um grande reacerto”, opina.
Francisco Whitaker é arquiteto por formação e foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Atualmente, é socio-fundador da organização não governamental Transparência Brasil e cofundador do Fórum Social Mundial.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – No governo Lula, foram realizadas inúmeras conferências, inclusive a inédita sobre a Comunicação. A ideia de democracia direta está mesmo no eixo central desses movimentos?
Francisco Whitaker – As conferências não estão dentro no esquema de democracia direta. Elas fazem parte de um esquema que pode ser compreendido como democracia participativa. O governo Lula optou por realmente abrir espaço para as conferências, o que é muito bom. Foram feitas mais de 50 conferências no Brasil sobre os mais diversos temas cuja discussão nasceu nos municípios, depois foram levadas para um debate a nível estadual e, por fim, tornaram-se conferências nacionais. No entanto, são simplesmente conferências que levantam hipóteses, perspectivas e propostas de mudanças.
Ainda assim, é um interessante um avanço da sociedade que encontrou uma maneira de discutir problemas que considera fundamentais. Ainda não pode ser considerada uma democracia direta, pois o instrumento principal desta é fundamentalmente o plebiscito e o referendo. Estes dois estão previstos na Constituição e com o tempo foram cerceados por limites e hoje só são válidos se aprovados pelo Legislativo que obedece ao Executivo. Automaticamente, a população não pode dizer que quer isso ou aquilo no referendo. E, se um referendo for aprovado pelo Legislativo e pelo Executivo, o mesmo ainda precisa tramitar pelo Congresso... É um processo muito burocratizado e difícil. Então, na verdade, o plebiscito e o referendo são instrumentos que existem apenas na teoria. A democracia direta no Brasil está, por enquanto, no zero, não tem nada que nos diga que ela exista, e que ainda tem muito para caminhar.
IHU On-Line – No texto Se me permitem sonhar, publicado em seu blog, o senhor diz que nessa continuidade de governo serão necessários vários reacertos. Que tipo de reacertos devem ser feitos?
Francisco Whitaker – Este governo acha que tudo pode ser resolvido através do crescimento econômico e que, portanto, basta crescer que o resto se “desenrola” automaticamente, o que não é absolutamente verdade. Nós temos que pensar o seguinte: o que é que nós queremos? Obviamente, queremos desenvolvimento. Mas desenvolvimento também não basta, tem que ser um desenvolvimento com distribuição de renda. Então, é preciso fazer os reacertos. São poucos os mecanismos que podem que ser introduzidos para que a riqueza, que vai se acumulando, não se concentre nas mãos de poucos como acontece atualmente no país. É preciso haver uma grande redistribuição da renda, este é um grande reacerto.
O capitalismo só dá importância para a sobrevivência e não dá a devida atenção para a questão ambiental. Quando ele dá importância é porque a situação está tão complicada que é preciso “ceder um pouquinho os anéis para não perder os dedos”. Mas, na verdade, o capitalismo segue estritamente na perspectiva de crescimento econômico, principalmente no que diz respeito ao aumento da riqueza material das pessoas. Esse é um desafio mundial no qual o Brasil entra muito de leve, tomando uma posição de não contribuição na área ambiental. Nesse sentido, precisamos mudar o modelo econômico, o que é uma coisa extremamente difícil, porque a maneira como este modelo entra na cabeça das pessoas as torna consumistas, mostrando que quanto mais se tem melhor, e quanto mais gastar melhor. Estes são reacertos que precisam ser feitos com urgência.
IHU On-Line – Que problemas existem na relação entre o Executivo e o Legislativo no Brasil?
Francisco Whitaker – Na minha análise, aí está situada a problemática da corrupção no Brasil. Primeiro: nós sabemos que a corrupção é uma coisa que depende muito também do exemplo. Se quem está no mais alto escalão da sociedade pode administrar o governo com corrupção, a sociedade no geral acha que também pode. Então, a corrupção vindo de cima é um mau difícil de extirpar.
Agora, no caso concreto brasileiro, essa corrupção que vem de cima está situada na relação entre Executivo e Legislativo. Não é uma coisa isolada, é todo um conjunto. O conjunto político brasileiro, baseado na eleição e reeleição permanente de uma classe política que funciona na base do “dando que se recebe”. Dentro disso, os que estão lá em cima têm uma perspectiva extremamente patrimonialista. Ou nós mudamos isso ou nunca acabaremos com esse ninho de corrupção.
As emendas parlamentares são feitas com dinheiro público. Elas são feitas legalmente através do orçamento da República, e, depois, são elaboradas pelo Executivo e emendadas pelos parlamentares. As emendas são verbas cujo destino é definido pelos parlamentares e, por isso, estão extremamente vinculadas à manutenção dos seus currais eleitorais e aos negócios nas áreas das bases dos políticos envolvidos. Este é um dos mecanismos mais trágicos porque permite a destinação de dinheiro público de uma forma extremamente ilegal. Então, esse é um mau muito profundo porque ele está no hábito, está no chamado costume, está na cultura política brasileira.
IHU On-Line – O senhor sugere uma nova geografia política de governo no Brasil?
Francisco Whitaker – Temos um Congresso que, em princípio, deve representar todos os interesses da sociedade. Mas, no caso brasileiro, isso não está acontecendo. Existe uma total sub-representação dos setores trabalhadores, ou seja, há lá no Congresso muito mais representantes de grandes empresas, de banqueiros, de empreiteiras, de proprietários rurais, do que do povo trabalhador. Isso é evidente. Mas de outra maneira, teoricamente, deveriam estar ali representados. O que nós precisamos fazer, por exemplo, é mudar o sistema eleitoral para que haja uma melhor representação. Nem falamos da representação setorial, tipo homens e mulheres, ou de indígenas, ou de negros, nem falamos disso, falamos simplesmente de pobre e rico.
É fundamental que o Legislativo exista como um sistema de representação. E é fundamental que o Executivo esteja submetido ao poder desse Congresso. No entanto, as mudanças a serem feitas são muito grandes. O próprio processo, por exemplo, de votação e decisão do Congresso é retrogrado. Nós ainda estamos vivendo num Parlamento atrasado, de grandes oradores para plenários vazios e não temos um Parlamento que analisa projetos e processos através de comissões e grupos de trabalho. Ele faz isso com audiências públicas. Melhorou muito depois da Constituição, mas ainda não estamos num nível interessante. As comissões são formadas através de verdadeiras lutas pelo pode político. O Judiciário, por sua vez, precisa ter outro poder que tenha a possibilidade de diminuir os conflitos entre a sociedade e os poderes.
No entanto, o julgamento que o Supremo nos deu ao projeto Ficha Limpa nos forneceu demonstrações do seu funcionamento inequívoco. Quem escolhe o presidente do Supremo hoje? É o presidente da República. E como ele decide quem vai para lá? Defendendo seu futuro, pois o Supremo pode persegui-lo ou não no futuro. Ele tem que garantir seu poder dentro do STF, portanto. Desta forma, uma nova geografia é uma verdadeira batalha campal que temos que fazer para mudar nosso quadro.
IHU On-Line – Para o senhor, o que significou o Ficha Limpa?
Francisco Whitaker – Para mim, tanto essa iniciativa do Ficha Limpa quanto a iniciativa popular anterior sobre a compra de votos, são projetos especificamente voltados para um salto de ética do Legislativo. Ou seja, para impedir que pessoas que não têm qualquer condição de representar o povo sejam eleitos. Do jeito que está, o povo inteiro está sabendo que tem muito bandido lá dentro. E é gente que estritamente vai se aproveitar do poder que tem o Legislativo. No fundo, é uma limpeza da classe política brasileira.
IHU On-Line – No governo Lula houve uma inversão de prioridades, mas o capitalismo não foi superado. O que isso nos instiga?
Francisco Whitaker – A inversão das prioridades é uma tese do PT, está dentro do programa dele, do slogan do partido. Inclusive quem usava muito essa expressão inicialmente era o Cristóvão Buarque. Inversão de prioridades poderia ser entendida da seguinte forma: “vamos fazer políticas favoráveis ao povo, em vez de somente favorecer os banqueiros e ricos”. Isso é inverter prioridades. O que vai ser feito em primeiro lugar? Vai ser obras espetaculares de comodidade, ou vai ser necessidades básicas de saneamento, etc.? Inversão de prioridades é dar prioridades para esse tipo de questão.
O governo Lula fez uma porção de inversões, mas seguiu o capitalismo que, por si só, tem outra lógica, outra dinâmica. Lula é um bom líder sindical e, como tal, não quer que sua empresa vá à falência. Muito pelo contrário, ele quer que sua empresa cresça sempre, tenha cada vez mais lucros, pois assim pode exigir mais contribuição para o seu trabalho. Então o Lula não coloca em questão o capitalismo como uma grande maioria absoluta dos nossos políticos. O capitalismo é isso mesmo, ele tem que ser melhorado, só que é intrinsecamente perverso, porque concentra, porque sua base é a competição. É, portanto, a total negação de uma sociedade realmente humana. Se superarmos o capitalismo, automaticamente inverteremos as prioridades. No entanto, apenas inverter as prioridades não faz com que o capitalismo acabe.
IHU On-Line – Durante essas últimas eleições, o senhor assinou um manifesto que resgata propostas da esquerda. A esquerda ainda têm voz no Brasil?
Francisco Whitaker – Esse negócio de esquerda e direita infelizmente está tão difícil de situar. A esquerda é a que não está contente com o sistema e quer mudar. A direita é a que conserva o sistema e quer manter como está. Sempre terá lugar para a esquerda, só que ela se autodenominar esquerda é uma coisa, estar de fato no campo de esquerda é outra. O problema são os nossos partidos serem capazes pertencer à esquerda de forma efetiva, pois eles estão cheios de divisões. De um lado, acenam para os manifestos populares e de outro lado mantém o sistema conservador.
IHU On-Line – O Fórum Social Mundial está preparado para discutir essas novas perspectivas políticas?
Francisco Whitaker – O Fórum Social Mundial é um espaço para que as ideias possam ser debatidas livremente e para que as pessoas possam sonhar com outras possibilidades. O Fórum é um processo que pode acontecer não somente em nível mundial, mas também nos níveis local, nível regional e nacional. O Fórum simplesmente abre a possibilidade de pessoas que, até então, trabalhavam isoladamente possam descobrir que elas têm convergências, que várias pessoas diferentes pensam muitas coisas da mesma maneira e que elas podem ser unir.
O Fórum Social Mundial é um instrumento para a união das esquerdas, a união daqueles que querem mudar o mundo, essa é a sua vocação. Então, ele nunca estará preparado, porque quem tem que estar preparado é a sociedade. Uma das coisas que se sente no processo do Fórum é que foram levantadas muitas hipóteses, muitos caminhos novos. Os movimentos sociais, as organizações políticas, as organizações da sociedade civil, que são os que têm que agir, ainda não conseguiram identificar estratégias concretas de ação política para mudar certas coisas. Estes ainda estão no nível da denúncia, da reclamação, da proposta de objetivo, mas não proposta de caminho. Está faltando para as organizações políticas que frequentam o espaço do Fórum identificar os caminhos para mudar.
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As mudanças da geografia política atual. Entrevista especial com Francisco Whitaker - Instituto Humanitas Unisinos - IHU