“É moral deixar alguém morrer de fome na sociedade da quarta revolução? É moral criar uma iniquidade de conhecimentos, em que há uma grande massa de pessoas ignorantes e conhecimento concentrado em poucos países, em poucas pessoas, em poucas empresas?”, questiona o economista Carlos Gadelha. A provocação do pesquisador, que atua na área da saúde, tensiona os efeitos da chamada Revolução 4.0. “O padrão tecnológico da quarta revolução tem o potencial de aumentar a qualidade de vida, talvez de modo jamais visto, mas, por outro lado, traz o risco imenso da perda de uma visão coletiva da saúde, da perda de uma visão de solidariedade e de que a saúde não pode ser tratada como se fosse um voo de avião estratificado em categorias de classe”, observa, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.
Ele teme que, além do risco de acesso restrito a esses avanços no campo da saúde, todos os avanços em ciência, tecnologia e inovação sejam apropriados pelas lógicas do capital que não só restrinjam, mas ainda façam desses avanços uma nova forma de expropriação. “Se não houver cuidado, levaremos uma grande massa da população pobre, excluída, a se relacionar com máquinas e com o grande risco de viés, parcialidade, já que essas máquinas e algoritmos estão sendo formatados para atender a interesses econômicos”, diz. Lógicas que, para o pesquisador, estão no sentido contrário dos conceitos de saúde pública e coletiva. “Ciência, tecnologia e inovação estão aí para servir as pessoas e não se servir das pessoas e isso é muito importante”, chama atenção.
Um dos caminhos possíveis, para Gadelha, é sempre reforçar o caráter humano. “A ciência, tecnologia e inovação têm que ser subordinadas a um modelo de sociedade que seja humanizado, pautado pela solidariedade e pela equidade. Senão, vamos criar um debate em que inteligência artificial, big data e o padrão da quarta revolução tecnológica serão entendidos por muito poucos”, indica. Para o pesquisador, é fundamental discutir esses dilemas atuais, “mas também as estratégias de futuro. Faz parte de uma vida saudável termos projetos de futuro, retomar as energias utópicas que estão tão abaladas no mundo contemporâneo”.
Carlos Gadelha (Foto: Reprodução | Canal Disparada)
Carlos Augusto Grabois Gadelha é doutor em Economia pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Coordenador e líder do Grupo de pesquisa sobre desenvolvimento, complexo econômico industrial e inovação em saúde (GIS/FIOCRUZ), é professor e pesquisador do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, coordenador do Mestrado Profissional em Política e Gestão de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde da Fiocruz e coordenador das Ações de Prospecção (Presidência/Fiocruz). Entre suas publicações, destacamos “Saúde e desenvolvimento no Brasil: avanços e desafios” (Revista de Saúde Pública, v. 46, p. 13-20, 2012) e “A Dinâmica do Sistema Produtivo da Saúde. Inovação e Complexo Econômico-Industrial” (Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012).
Gadelha estará na Unisinos campus São Leopoldo na próxima quarta-feira, 06 de novembro, participando do 5º Ciclo de Estudos – Revolução 4.0. Impactos nos modos de produzir e viver. O pesquisador ministrará a conferência Saúde Pública, saúde coletiva e a Revolução 4.0. Possibilidades e limites no Brasil, às 19h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
IHU On-Line – Como a Revolução 4.0 tem impactado os campos da saúde pública e coletiva?
Carlos Gadelha – A primeira abordagem que precisamos ter é que a visão de saúde contemporânea e da tradição da saúde coletiva no Brasil, que criou o próprio Sistema Único de Saúde - SUS, é uma visão de saúde como qualidade de vida e não apenas ausência de doença. Isso também é compatível e está na visão da Organização Mundial da Saúde, mas foi algo muito presente, tanto que, na saúde como direito, se fala na convergência de uma série de políticas econômicas e sociais e não apenas as políticas voltadas para o tratamento de saúde, voltando-se também para uma vida saudável e uma sociedade saudável. Então, é saúde como bem-estar e qualidade de vida.
Isso dá uma abrangência muito maior para o tema da Revolução 4.0. Mas é preciso ter sempre em mente que na Revolução 4.0 há uma radicalização, um aprofundamento e uma generalização da digitalização e da interconectividade da vida que permite falarmos de uma quarta revolução tecnológica e industrial. Isso também impacta barbaramente as potencialidades e as condições de bem-estar da população. Vou dar um exemplo: a ciência, a tecnologia e a inovação não são neutras. A direção da inovação é dada pela sociedade, pelas mulheres e pelos homens. Então, não tem em si um mal ou um bem intrínseco. Ela pode gerar altos benefícios, mas também pode gerar malefícios de acordo com o padrão e a direção do progresso técnico e seu uso social.
No campo da saúde, por exemplo, de um lado se tem a possibilidade única e extremamente relevante de fazer prevenção num nível jamais imaginado. Estamos vivendo o grave problema do aquecimento global e, a partir da avaliação da mudança de um grau na temperatura, é possível dizer em quais municípios ou localidades deverão emergir endemias ou doenças transmissíveis, como dengue, zika, chikungunya, malária, febre amarela, e assim se pode atuar preventivamente utilizando big data, grandes bases de dados, a territorialização dos dados e das informações. Assim, utilizando uma massa de dados e realizando seu processamento, é possível fazer ações de prevenção que associam mudanças climáticas e emergências de doenças transmissíveis para que as políticas públicas possam prevenir e evitar que surjam endemias ou epidemias e que pessoas adoeçam e morram. Também é possível, em outro exemplo, associar o impacto de uma mudança nas políticas sociais, como os efeitos que o declínio ou não atendimento do Bolsa Família pode gerar nas questões de mortalidade infantil.
Trago alguns exemplos para mostrar que a quarta revolução tecnológica permite um tratamento populacional e coletivo da saúde com ações de prevenção e uma vigilância epidemiológica inteligente, não agindo somente depois que o mosquito pica alguém. Com essa vigilância epidemiológica é possível prevenir a partir das condições da organização da sociedade e do próprio planeta e num nível jamais imaginado, e se pode utilizar big data e inteligência artificial para fazer essas ações.
Um outro exemplo: pode-se fazer monitoramento também num nível muito elevado do envelhecimento populacional, pois hoje o envelhecimento é uma das grandes questões. Mas precisamos ter em perspectiva que o envelhecimento é bom, afinal as pessoas estão vivendo mais. Acho que todo mundo quer viver mais. Temos que parar de tratar o envelhecimento da população, a mudança demográfica, como se fosse um malefício. Isso é um benefício ao qual as políticas sociais e políticas científicas e tecnológicas devem servir. As pessoas querem viver mais e melhor com uma qualidade boa.
Ao mesmo tempo, essa é uma oportunidade de trabalhar a saúde preventiva como qualidade de vida. Não se pode tratar do idoso com uma mega-hospitalização. Primeiro porque isso vai trazer infelicidade para ele; ninguém é feliz dentro do hospital. Com as novas tecnologias já se consegue fazer um monitoramento na residência do idoso, assim ele pode ter os seus principais indicadores de saúde monitorados a distância. Já se sabe que a principal causa de morte de idosos é a queda. Então, se temos uma atenção primária organizada, pelo tipo de queda do idoso se consegue saber se foi uma queda causada por uma entorse ou por outro motivo, a intensidade da queda, além de se poder fazer contato com o idoso por meio de tecnologias sofisticadíssimas de integração de dados, que permitem dar certos padrões de queda, com o procedimento de inteligência artificial, um algoritmo, que favoreça a leitura humana, a qual sempre será imprescindível na saúde.
IHU On-Line – Qual é o limite dessa tecnologia? Nem tudo se resolve com a tecnologia, vai se depender da interação humana, correto?
Carlos Gadelha – Vou trazer só um terceiro exemplo que acho muito interessante, dentro dos aspectos positivos, pois, como disse, a tecnologia não traz um bem ou um mal em si. No tratamento da zika, no caso das crianças que tiveram microcefalia, é possível também fazer monitoramento com um chip colocado na criança e pelo qual se pode prever se ela vai ter convulsões. E convulsão em quem tem microcefalia não é somente uma, são várias convulsões sucessivas, que destroem os efeitos de um tratamento de fisioterapia e de outras terapias sociais realizadas ao longo de um ano. Assim, prevendo que a criança vai ter convulsões, se consegue evitar essa situação e com isso não se perde toda uma evolução da criança que já tem o sofrimento associado à microcefalia.
Também se tem utilizado, a partir de diversos indicadores populacionais, a associação entre tabaco e câncer, além de relacionar certos estilos de vida ao câncer e até mesmo entrando na genômica para projetar a possibilidade de desenvolvimento da doença. Aliás, isso é totalmente quarta revolução tecnológica e é uma fusão, uma integração digital entre o mundo biológico e o mundo material.
Assim, com as novas tecnologias, é possível tratar campos que até pouco tempo atrás eram incuráveis e que agora estão elevando a qualidade e a expectativa de vida de modo muito importante. Não sou ufanista da quarta revolução industrial e das tecnologias, sou um ufanista da visão humana da tecnologia. Se não tivermos isso claro o tempo inteiro, o que pode ser um benefício pode se tornar monstruoso para a sociedade.
Voltando ao exemplo do tratamento do câncer, com a genômica é possível avançar e dar um tratamento muito mais específico — ele continua sendo coletivo, pois a saúde é um bem coletivo. Se faz saúde pública, por exemplo, fornecendo um medicamento biológico, que é a nova fronteira do tratamento de câncer, para aquela população em que o medicamento vai funcionar. Desse modo, não jogamos recursos fora e não trazemos malefícios — efeitos colaterais — como, por exemplo, para os tratamentos de alguns tipos de câncer de mama, em que algumas mulheres são sensíveis à medicação e em outras mulheres o medicamento só causa malefícios. Hoje, com o estudo da genômica, é possível dizer para quais grupos populacionais determinado medicamento vai trazer benefícios e realizar o tratamento de forma mais adequada, elevando a expectativa de vida ou mesmo curando e minimizando efeitos colaterais.
O campo da saúde, visto como qualidade de vida, é um campo que envolve necessariamente o cuidado e a interação humana. É muito mais do que, lá na ponta, levar uma pessoa doente a entrar num hospital e ser tratada, é uma forma de sociabilidade. Por isso, é tão importante o enfoque da dimensão humana, que não se reduz, mas aumenta com a quarta revolução tecnológica. Com o mundo hiperdigital, com as pessoas se relacionando por redes ou WhatsApp ou celular, chegamos à “celularização da vida”, pois hoje as pessoas lidam com seu aparelho celular e estão perdendo a sociabilidade. Há amigos que fazem grupos de WhatsApp e não se veem há anos. Então, começamos a colocar algumas questões de hiperindividualização e solidão em uma sociedade em que nunca houve tanta conectividade, mas também nunca houve tanta solidão. E qual é a grande epidemia do século XXI? A depressão. Assim, a quarta revolução tecnológica pode significar uma fragmentação da vida, a perda da visão coletiva da saúde e a perda da visão de saúde pública.
É por isso que na própria Fundação Oswaldo Cruz nós não utilizamos o conceito e a noção de medicina racionalizada apenas. Não é possível fazer um programa de vacinação que não envolva a população, essa é a dimensão coletiva; não é possível fazer um programa, por exemplo, para câncer que não envolva mudanças de hábitos e da cultura da população. Uma sociedade que se pauta por uma visão de comer mais hambúrguer, ter mais câncer e consumir mais produtos biotecnológicos não é uma sociedade saudável.
Portanto, a saúde envolve a sociabilidade humana. Nunca o tratamento do idoso ou da família poderá ser dado por um robozinho, isso seria um empobrecimento da vida. Tem certas questões de que os algoritmos não dão conta — eu até costumo brincar: quem fez as fontes (na minha época chamávamos assim)? Quem fez o algoritmo que diz que para determinado problema você deveria tomar determinada decisão? A interação do cuidador, na qual está o médico — mas não apenas ele, pois no programa de Saúde da Família, por exemplo, existem os agentes comunitários e outros profissionais —, é conversar com as pessoas, saber quais são suas profissões etc. Por exemplo, uma pessoa tem que ter a liberdade de dizer se ela vai querer passar por um tratamento ultra-agressivo para ter, talvez, um período muito curto de sobrevida ou se vai preferir usar o tempo de vida que ela tem para estar com a família e ter tratamentos paliativos que não sejam tão agressivos. Ou, ainda, se vão jogar a pessoa dentro do hospital para começar a sofrer para viver um pouco mais.
Isso tudo não envolve decisões tecnológicas, é uma decisão humana. Então, o padrão tecnológico da quarta revolução tem o potencial de aumentar a qualidade de vida, talvez de modo jamais visto, mas, por outro lado, traz o risco imenso da perda de uma visão coletiva da saúde, da perda de uma visão de solidariedade e de que a saúde não pode ser tratada como se fosse um voo de avião estratificado em categorias de classe.
É inaceitável, eticamente, o uso da revolução tecnológica para que algumas pessoas tenham acesso a tratamento e prevenção e que tenham, por conta desse acesso, expectativa de vida e qualidade diferentes. Eticamente é inaceitável que um pobre tenha sua expectativa de vida baseada em seu nível de renda e que, por não ter acesso à tecnologia, tenha 10 ou 15 anos a menos de vida se comparado ao rico. Quem nasce na [favela] de Paraisópolis ou no Morumbi [bairro nobre, ao lado da favela], em São Paulo, tem mais de 10 anos de diferença de expectativa de vida. Acredito que no Sul seja assim também, pois o mesmo vale para o Rio de Janeiro, para a Rocinha e São Conrado, que são separadas por uma rua. Dependendo do lado do muro em que você nasce, você vai ter carro personalizado, cidade inteligente, internet etc. E, do outro lado, terá uma qualidade de vida péssima e viverá muito menos.
Então, a revolução tecnológica traz um risco. Talvez, mais do que nunca, seja necessária uma visão humana, senão teremos o risco de fragmentar o tecido social que define uma sociedade saudável, que no fundo é a definição de saúde.
IHU On-Line — Na prática, como as novas tecnologias em saúde têm chegado ao sistema público, o SUS? Quais os desafios do SUS no que diz respeito ao desenvolvimento educacional, científico e tecnológico a serviço da saúde pública?
Carlos Gadelha — Do ponto de vista do sistema educacional em saúde, está completamente despreparado e insuficiente para tratar dessas questões que mencionei. Por exemplo, na estrutura curricular dos cursos de medicina não há disciplinas mais aprofundadas sobre organizações de sistemas de saúde. O conhecimento especializado está perdendo a visão até de indivíduo e de coletividade; temos especialistas em órgãos e em partes de pessoas, mas não temos pessoas que são formadas para tratar de pessoas. Há uma hiperespecialização, que é outro risco da revolução tecnológica.
É uma perda completa da dimensão educacional, por exemplo, que passa por Paulo Freire - podemos pegar alguns livros dele, como Direitos Humanos e Educação Libertadora e Pedagogia da Tolerância. Como não segmentar, tendo o grupo dos “sabidos”, cientistas, e a massa da sociedade sem acesso ao conhecimento e a possibilidade de interagir? Nesse sentido, há uma pobreza muito grande nos cursos de saúde sobre a dimensão humana, a dimensão coletiva e a organização dos sistemas sociais de bem-estar.
Essa hipertecnificação do ensino quase se esquece de que do outro lado há um ser humano, e isso é possível com o enfoque de saúde completamente desumanizado. Isso coloca um desafio que é importante. Por exemplo, a telemedicina. Ela pode ser fantástica, pois possibilita um aconselhamento a distância ou uma maior agilidade no tratamento em lugares remotos, mas não pode substituir o atendimento presencial. Na China há uma empresa líder em telemedicina que criou quiosques onde a pessoa entra, uma série de sensores são instalados por todo o corpo dela e em quatro minutos ela sai com uma receita médica. Quem é que disse que aquela receita é a correta? Quem é que fez o algoritmo? É um atendimento sem diálogo, é uma ruptura com Paulo Freire, com uma visão humanista da educação.
Se não houver cuidado, levaremos uma grande massa da população pobre, excluída, a se relacionar com máquinas e com o grande risco de viés, parcialidade, já que essas máquinas e algoritmos estão sendo formatados para atender a interesses econômicos. A pessoa pode sair da máquina para comprar o medicamento da moda ou o medicamento que é a novidade do momento e que não necessariamente vai atender as suas necessidades.
Há uma hipertecnificação do ensino e da educação em saúde que talvez esteja na raiz de um certo empobrecimento da visão humanista do cuidado, ou seja, a saúde se torna técnica e não uma relação social — e a saúde é uma relação social. Não tem nada mais bonito do que um programa de saúde da família em que há equipes que conhecem as pessoas pelo nome e que estão no nível local. Muitas vezes, a pessoa que está precisando de atendimento já se sente muito melhor a partir de um simples diálogo. A maioria dos problemas de saúde são resolvidos na ponta, com os Programas de Saúde da Família. Muitas vezes o sofrimento de uma pessoa que está em solidão, que é idosa, que está sozinha, doente, se dá também porque está triste. Não podemos culpabilizar uma pessoa que está triste, pois ela está com um problema de saúde.
Além disso, muitas vezes, o contato humano e uma intervenção pequena, como recomendar que a pessoa se hidrate, faça um exercício, vai aumentar a qualidade de vida dela. E, ao mesmo tempo, tem o arsenal da quarta revolução tecnológica, que poderá auxiliar o médico de família ou agente de saúde, lá na ponta, se necessário. Com o apoio da telemedicina, por exemplo, poderá ter acesso à inteligência artificial para saber quais as alternativas de tratamento que pode oferecer para as pessoas. Agora, não se pode é retirar o coração da saúde, e esse coração é o cuidado.
IHU On-Line – É usar essa tecnologia toda como uma espécie de acessório para qualificar a interação humana?
Carlos Gadelha – A ciência, a tecnologia e a inovação estão aí para servir as pessoas, e não se servir das pessoas e isso é muito importante. Elas têm que ser subordinadas a um modelo de sociedade que seja humanizado, pautado pela solidariedade e pela equidade. Senão, vamos criar um debate em que inteligência artificial, big data e o padrão da quarta revolução tecnológica serão entendidos por muito poucos. Isso será para uma elite, para uma casta da população mundial, enquanto para os mais pobres damos uma renda mínima.
Eu sou a favor da renda mínima, não podemos deixar ninguém passar fome. Agora, não se pode criar desigualdade de conhecimento na quarta revolução tecnológica, não se pode ter uma massa de pessoas totalmente desinformadas, sujeitas à manipulação de informação e que não têm nenhum tipo de informação do sistema de saúde, como organizam sua vida, bombardeadas por lixo informacional e sem capacidade de formulação, de compreensão para fazer perguntas. É inaceitável termos de novo um apartheid, que é o apartheid do conhecimento e da informação.
Isso é uma coisa muito grave, porque a saúde, intrinsecamente, já tem uma diferenciação muito grande entre as pessoas. Quando entramos no consultório, sentimos a falta de paciência do médico para explicar o problema, trocar ideia. Mas também há muitos médicos que têm uma visão humanística que é fantástica, que faz uma primeira consulta de uma hora, que conversa, que troca ideia. Se a sociedade não tomar cuidado com essa hipertecnificação, vamos ter linhas de montagem de tratamentos em que a capacidade do diálogo, base da pedagogia da tolerância, desaparecerá.
A base dessa pedagogia é justamente esse diálogo, essa interação. Eu não posso fazer um tratamento sem ouvir a pessoa. Por exemplo, posso chegar com uma análise hipersofisticada de que uma pessoa vai ter problema ósseo e terá que colocar uma prótese que vai lhe permitir caminhar adequadamente. Só que aquilo envolve riscos, envolve uma cirurgia. Mas qual a idade dessa pessoa? Isso precisa ser considerado, pois essa não é uma decisão técnica, é uma decisão na interação com o paciente. Eu mesmo já tive um problema no joelho e, na interação com o médico, depois de ter feito ressonância magnética, de ter usado toda a tecnologia, ele me perguntou: “você é um atleta? Você quer correr? Você só caminha? Vamos aguardar um pouco, porque talvez você não precise de cirurgia”. E até hoje meu joelho está ótimo. Isto nenhuma máquina vai dizer.
Na quarta revolução tecnológica, é muito grande o risco de se criar uma enorme distância de conhecimentos entre aquela pequena elite que sabe e os que não sabem. Os próprios médicos vão ser fantoches de quem faz os algoritmos. Se não tomarmos cuidado, caímos no fetiche de que a tecnologia vai substituir o ser humano. A questão das humanidades, da organização da vida em coletividade, de entender a sociedade, como a Sociologia, Antropologia e outras disciplinas fazem, é fundamental.
A própria Economia, que é tratada de modo tão cruel, precisa ser vista como uma ciência moral. O primeiro livro de economia política foi de Adam Smith, um liberal, chamado Teoria dos Sentimentos Morais. Ou seja, é moral deixar alguém morrer de fome na sociedade da quarta revolução? É moral criar uma iniquidade de conhecimentos, em que há uma grande massa de pessoas ignorantes e conhecimento concentrado em poucos países, em poucas pessoas, em poucas empresas? Isso é imoral.
IHU On-Line – Quais são os riscos de que esse desenvolvimento tecnológico se converta numa potência exclusivamente a serviço do capitalismo? Afinal, o senhor mesmo tem estudos que revelam que a própria indústria farmacêutica se usa de uma grande tecnologia, mas que pode aumentar as desigualdades e permitir o acesso a novos produtos somente para uma parcela da população.
Carlos Gadelha – Nós lutamos contra dois moinhos no campo da ciência, da tecnologia e da inovação, e existe uma dialética no tratamento destes dois grandes desafios. O primeiro desafio é que hoje há um movimento no Brasil, e até mesmo global, de negação do valor da ciência. Temos que radicalizar a perspectiva de que somente a ciência pode transformar dados em informação e conhecimento. Há o risco de termos uma imensa massa de países que fornecem dados, mas poucos países, poucas instituições que conseguem transformar esses dados em informação. A matéria-prima do futuro não é apenas o minério e a soja, também é o dado. A informação e o conhecimento são a fonte da riqueza e o poder do futuro, por isso temos que radicalizar o apoio à ciência. É a ciência se contrapondo às fake news, a ciência se contrapondo ao lixo informacional.
A ciência básica tem um valor imenso. Não tenho uma visão utilitarista de que a ciência tem que gerar valor com seus processos, mas, ao mesmo tempo, o cientista, como ser humano, tem que sair da torre de marfim e ajudar a qualificar o conhecimento da sociedade. Ele pode fazer a ciência mais básica, entender o mecanismo fisiológico de determinada espécie, mas tem que dialogar, popularizar e ter a capacidade de tornar as pessoas mais esclarecidas no diálogo, e não apenas na lógica de que ele ensina e o outro aprende.
Hoje mais do que nunca, porque há um ataque à ciência, precisamos defender a ciência para evitar que haja uma redução de 70 ou 80% dos recursos de financiamento. É inaceitável corrermos o risco de quebrar os sistemas científico e tecnológico montados a tanto custo no Brasil. É inaceitável uma visão antivacina. É inaceitável uma visão em que se coloque a própria perspectiva evolucionista, biológica em xeque não com argumentos científicos, mas com ideologias. Nessa sociedade da quarta revolução tecnológica, aumenta a importância social do cientista de todas as áreas: biomédica, exatas, humanas; o cientista tem a missão social de aumentar o esclarecimento da sociedade. Isso tem a ver com democracia. E democracia não é colocar o voto na urna, e sim o fato de as pessoas terem conhecimento suficiente para saberem em que projeto estão votando. Se uma sociedade está excluída do conhecimento, há um empobrecimento da democracia.
Assim, compreendo que o primeiro grande desafio é valorizarmos a ciência e o conhecimento científico. Esse é um fator decisivo para uma sociedade ter informação e conhecimento qualificado de forma acessível, para que as pessoas possam tomar decisões conscientes, e não decisões por efeito manada por conta do lixo informacional que chega pelas redes sociais.
Existe uma tendência global da própria ciência e tecnologia de se tornarem força produtiva do capital. Ou seja, é a tendência da mercantilização da vida. Essa lógica de tudo ser mercadoria invadiu a ciência. E vamos a um exemplo: quem é que define as revistas científicas mais importantes? Hoje, há um mercado de revistas científicas muito concentrado também. Quem define o que é e o que não é ciência a partir de revistas científicas? Existe um mercado competitivo, capitalista, inclusive nas publicações científicas, na organização dessas publicações. É pensar também em quem define o financiamento da pesquisa.
Sou entusiasta da inovação, porque a inovação está na raiz do desenvolvimento como transformação. É a visão de Celso Furtado, o desenvolvimento é determinado pela transformação associada à inovação tecnológica. Só que Celso Furtado enfatiza: desenvolvendo transformação social para atender necessidade humana. Muita gente esquece dessa parte. A inovação pela inovação não leva ao desenvolvimento; ela leva ao desenvolvimento se está associada, por exemplo, a um programa de Saúde da Família. Esse programa hoje atende mais de 90% dos municípios brasileiros, cerca de 60% da população, e é a maior inovação institucional e técnica da área da saúde no período recente.
A lógica mercantil invade todas as esferas da vida, e na saúde hoje, até a atenção primária e a área de vacinas são contaminadas. Só a área de vacinas, por exemplo, é dominada por quatro empresas. Há um perfil de pesquisa na área de vacinas em que estão sendo priorizadas as pesquisas de doenças com prevalência em países ricos. Se perguntarmos qual bem da saúde é mais público, com certeza vai se responder que é a vacina. Vacina e saúde da família, um é uma organização e outro um produto. Então, produtos que na sua origem eram essencialmente públicos, feitos por Pasteur , pelas instituições públicas, hoje estão dominados por quatro empresas farmacêuticas. É preciso colocar como situação estratégica da maior relevância o fortalecimento da produção de vacinas, que hoje é liderada pela Fiocruz e pelo Butantan. Senão, o nosso próprio portfólio de vacinas vai ficar na dependência estratégica e competitiva de quatro empresas.
Se analisarmos toda biotecnologia em saúde, 15 empresas detêm 60% das patentes. E a biotecnologia é fronteira para o tratamento de doenças crônicas como câncer, artrites, entre outras. Então se a estratégia competitiva dessas empresas é atender outros mercados e ter preços inacessíveis, não se tem opção. Precisamos desconcentrar o poder de monopólio. Isso é uma visão liberal de economia desenvolvimentista. Afinal, competição faz bem à saúde. Ter mais países fazendo produtos, ter mais empresas fazendo produtos e ter menos monopólio é a saída. O monopólio faz mal à saúde.
Você tem toda razão quando diz que hoje o padrão científico e tecnológico é um padrão pautado pelo valor de troca, ou seja, pela lógica mercantil. Isso parece ser somente uma frase de efeito, mas não é. Posso, por exemplo, ter um padrão tecnológico que tenha produtos muito caros e que estão quebrando os sistemas de saúde de todo mundo. Veja que hoje mesmo a Suécia está com problemas em saúde, a Inglaterra está com problemas também, os Estados Unidos não dão assistência a sua população. Isso não é um problema brasileiro, é um problema global que gera um padrão tecnológico em que se perde a dimensão humana e a dimensão de que eticamente é preciso garantir o acesso universal. É inaceitável que se uma pessoa que tem uma doença rara for rica, ela vive e, se for pobre, ela morre. Então, temos que ter um padrão tecnológico que busque produtos com preços acessíveis, que busque formas de tratamento que priorizem a prevenção e atenção primária. Senão, a besta fica solta e a saúde vira um mercado, como aquele avião que está estratificado em categorias de classe; se estratifica a população em categorias em que um vai viver 100 anos, outro vai viver 80 e o que estiver mais embaixo vai viver 40 anos.
E aí eu confio no cientista. Normalmente, o cientista é um visionário, a sua opção de vida é a investigação dos fatos, é o conhecimento, não está pautado pelo interesse econômico. Isso está na origem do cientista. O problema é que na sua formação está uma visão acrítica da sociedade, em que se acabam deturpando os valores. Muitas vezes, um jovem cientista, quando entra na academia, já não é mais o mesmo quando termina seu doutorado, a sua cabeça já virou, porque a norma de valores, as revistas que aceitam publicações, tudo isso empurra aquele jovem visionário a se tornar um mercador.
É preciso que as universidades pensem em como colocar contrapesos nesses valores. Por exemplo, fazer uma crítica pesada na avaliação da ciência. Mas precisa ser avaliada pelo mérito e pela relevância social, avaliar as revistas que nos avaliam. Eu, como cientista, falo isso: as revistas que nos avaliam precisam ser avaliadas. Quantos artigos que são publicados e têm financiamento e interesses? Quantos artigos e dados, que são negativos para os negócios, são omitidos? Parece que há uma contradição nisso, mas é isso mesmo. A vida é dialética, e não linear. De um lado temos a defesa pela radicalidade do conhecimento para enfrentarmos o lixo informacional – e isso na saúde é decisivo, a decisão bem formada, a decisão qualificada das pessoas, de quem cuida e de quem é cuidado – e de outro lado discutir criticamente e estabelecer mecanismos de incentivo e de estímulo para que a ciência não perca sua natureza de bem público, que não seja apenas um bem privado.
Assim, chegamos ao segundo desafio que proponho. O campo da saúde é todo um campo humano e essa humanidade da saúde está em risco de ser perdida se não tivermos uma visão crítica e uma ação social frente à revolução tecnológica.
IHU On-Line – Quanto da realidade de saúde pública e coletiva do Brasil está para a Revolução 4.0? Todos esses avanços tecnológicos estão mais próximos ou distantes da prática cotidiana no país?
Carlos Gadelha – A saúde lidera a quarta revolução tecnológica, junto com poucas áreas, como a defesa, mas não com a mesma centralidade. Se falar em cidade inteligente, por exemplo, vai envolver a qualidade de vida e saúde. Se falar em inteligência artificial, a área líder é a saúde. Se pensar em uso de big data, uma das áreas mais impactadas é a da saúde. Se falar em internet das coisas e em nanotecnologia, a saúde está presente. Se falar em genômica, é uma área também liderada pela saúde. De outro lado, precisamos entender que o SUS é o maior sistema universal do mundo, não há nenhum sistema universal com 200 milhões de pessoas, embora tenhamos problemas graves de financiamento e questões que precisam ser aperfeiçoadas em termos de gestão.
Como a saúde lidera a quarta revolução tecnológica e o Brasil tem um sistema universal mais abrangente do mundo, a saúde, por termos o SUS, pode representar a porta de entrada do Brasil na quarta revolução tecnológica. Como estou dizendo, essa revolução tem um risco imenso de segmentar a sociedade e os países numa nova geopolítica do poder, em que os países são excluídos do conhecimento. E a saúde pode ser uma porta de entrada para que o Brasil não seja excluído da quarta revolução. Ele ficou para trás na terceira revolução e está se abrindo uma janela de oportunidade e é aí que precisamos ver como oportunidade o que costumamos ver como problema.
A saúde mobiliza 9% do PIB, mobiliza o trabalho direto e indireto de 20 milhões de pessoas. O Brasil está hoje com 32 milhões de desempregados e desalentados, e só na área da saúde da família há três milhões de empregos. Então, quando se cria o Programa de Saúde da Família – até para tirar essa visão míope –, está se mobilizando pessoas, dando cuidados ao idoso, gerando emprego e renda, e se pode estar usando big data, inteligência artificial, telemedicina para fazer uma saúde qualificada. Esse programa foi criado no Ministério da Saúde em 2008 e adotou um conceito, desenvolvido no início dos anos 2000, do complexo econômico da saúde, o qual coloca que se tem um sistema produtivo potente e que é preciso usar o poder de compra do Estado para nortear o padrão tecnológico e desenvolver a produção nacional.
O Brasil entrou no mundo da moderna biotecnologia por causa dessas parcerias, em que se tem uma instituição pública de ciência e tecnologia, como Fiocruz, Butantan - mas poderia ser a Unisinos -, uma instituição empresarial e o Ministério da Saúde comprando os produtos. Olha que interessante, com esse tipo de modelo se está gerando renda, emprego, dando estímulo para o setor produtivo, mas também pautando o tema da tecnologia pela demanda do SUS. Então, estou aproximando a ciência e tecnologia da demanda social. Isso não é só sonho, não estamos falando em utopia no sentido pré-iluminista, mas no sentido iluminista, de transformação da realidade, e não como algo inatingível. Estamos falando de algo concreto, temos o SUS, temos compras públicas, temos o sistema de ciência e tecnologia, temos a base produtiva de serviço industrial e precisamos colocar esse sistema para funcionar.
Estou dando uma visão otimista, tão rara nesses temas. Mas temos que ter, pois a saúde pode representar a entrada do Brasil na quarta revolução tecnológica, pode representar a superação do novo colonialismo do conhecimento e pode ajudar, inclusive, na democracia, jogando fora o lixo informacional e começando a ter pessoas, cidadãs e cidadãos, que são mais bem informados, qualificados e sabem qual é o papel da ciência. Hoje 35% da ciência brasileira está na saúde. Olhe o impacto disso, estamos falando de 10% do PIB, 1/3 da pesquisa nacional, da liderança de todas as tecnologias da quarta revolução.
Espero discutir os dilemas da sociedade contemporânea, mas também as estratégias de futuro. Se não temos estratégia de futuro, não temos presente, não fazemos nada do presente, ficamos paralisados. Faz parte de uma vida saudável termos projetos de futuro, retomarmos as energias utópicas que estão tão abaladas no mundo contemporâneo.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o seu XIX Simpósio Internacional. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida, a ser realizado nos dias 19 a 21 de outubro de 2020, na Unisinos Campus Porto Alegre. (Nota de IHU On-Line).
XIX Simpósio Internacional. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida.