06 Julho 2016
“É urgente superar a dependência brasileira em relação às commodities”. O alerta é do geógrafo Christovam Barcellos, pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz) e integrante da Rede Clima. Nesta entrevista para o site Saúde Amanhã, ele discute a resposta global às mudanças climáticas e aponta a necessidade de um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil, com foco na sustentabilidade. “Se apostarmos novamente no caminho do gado, da soja e das grandes obras, teremos problemas sérios em médio e longo prazo, como o aumento do desmatamento e da emissão de gases de efeito estufa, a transformação de áreas protegidas em vulneráveis e a intensificação de algumas doenças, sobretudo as transmitidas por mosquitos”, sentencia.
A entrevista é de Bel Levy, publicada por Saúde Amanhã e reproduzida por EcoDebate, 05-07-2016.
Eis a entrevista.
A resposta à mudança global do clima é um dos 17 Objetivos para Transformar o Mundo, que compõem a Agenda 2030 das Nações Unidas. Como o senhor avalia a atuação do Brasil neste sentido e quais as perspectivas para as próximas décadas?
Em comparação a outros países, o Brasil não é um grande emissor de gases de efeito estufa. Temos uma matriz energética diversificada e relativamente limpa, com hidrelétricas, poucas usinas nucleares e reduzida queima de combustível. Essa característica tem deixado o Brasil confortável no cenário geopolítico e o país tem sido agressivo nas reuniões globais sobre mudanças climáticas. Hoje, discute-se não só os atuais índices de emissão de gases de efeito e estufa e seus impactos no meio ambiente, mas também o histórico de poluição dos países, basicamente desde a Revolução Industrial. As mudanças climáticas que estamos vivendo hoje são resultado de séculos de acúmulo de poluição gerada pelos países considerados desenvolvidos, que se industrializaram primeiro: Inglaterra, França, Alemanha, Estados Unidos, Japão. Mais recentemente, outras nações somaram-se à lista das mais poluentes, dentre elas, China, Índia e Rússia. Nesses países, a combinação de tecnologias sujas e consumismo crescente, com a multiplicação da classe média, leva a uma situação insustentável.
Sem estar em nenhum desses dois grupos, o Brasil tem ocupado uma posição de conciliador no cenário global. Os grandes problemas do país, entretanto, são o desmatamento e a criação de gado de forma predatória, que levam a bruscas transformações de uso do solo. Com essa dinâmica, florestas se tornaram pastos, incapazes de realizar o sequestro de carbono. Outra questão importante é o reconhecimento das nações mais vulneráveis às mudanças climáticas. Os países que se industrializaram primeiro têm, hoje, boa infraestrutura urbana, com sistemas de saúde, educação, transporte e segurança que funcionam. Portanto, não sofrerão as mesmas consequências que países da África, Ásia e América do Sul, inclusive o Brasil, que têm menos recursos para lidar com os efeitos globais das mudanças climáticas. A última Conferência do Clima, realizada no final de 2015 em Paris, aprovou um fundo para países mais vulneráveis, alimentado pelas nações mais ricas. Fóruns globais também debatem políticas e programas que garantam a transferência de tecnologias que promovam o desenvolvimento sustentável. A relação da sociedade com o meio ambiente é mediada pela tecnologia: tudo muda se temos um arado ou um trator à disposição. Portanto, o desenvolvimento e a aplicação de tecnologias limpas e de soluções para a proteção e preservação do meio ambiente é uma questão central neste debate.
A PEC 65/2012, em tramitação no Senado, determina a extinção do licenciamento ambiental para obras públicas. Caso a medida seja implementada, quais serão as consequências de longo prazo para o país?
O Brasil vem reduzindo o desmatamento desde início deste século. A tecnologia é essencial nesse processo. O avanço da soja sobre a floresta, por exemplo, foi reduzido a partir do uso de insumos agrícolas. O gado, por sua vez, exigia áreas de pasto mais amplas, sem o limite de avanço sobre a floresta amazônica que existe hoje. No entanto, tudo isso pode mudar, sobretudo diante de um cenário político tão instável e a sucessiva escolha de representantes do agronegócio para o Ministério da Agricultura. Um governo que considera todas as convenções e regulamentações ambientais empecilhos ao desenvolvimento do país dificilmente adotará o caminho mais adequado do ponto de vista ambiental. O novo Código Florestal Brasileiro, que reduz os limites ao desmatamento em propriedades privadas, é um exemplo disso. A PEC 65/2012, outro. Com a prerrogativa de acelerar trâmites burocráticos do licenciamento ambiental, a medida ampliará as possibilidades de desmatamento e de grandes obras que podem produzir fortes impactos sobre o ambiente e a saúde das pessoas.
Então, tudo depende de como o país voltará a crescer. Certamente em algum momento a recessão passará e a economia se reacelerará. É essencial discutir qual será o novo modelo de desenvolvimento e crescimento econômico do Brasil. Se apostarmos novamente no caminho do gado, da soja e das grandes obras, teremos problemas sérios em médio e longo prazo, como o aumento do desmatamento e da emissão de gases de efeito estufa, a transformação de áreas protegidas em vulneráveis e a intensificação de algumas doenças.
Que modelo de desenvolvimento sustentável seria adequado e possível para o Brasil no horizonte dos próximos 20 anos?
É urgente superar a dependência brasileira em relação às commodities. A atual dinâmica é nociva para o meio ambiente e fragiliza o país do ponto de vista econômico, pois a queda do preço de uma commodity é capaz de derrubar a economia inteira. Isso é muito perigoso. O país precisa atentar para o fato de que, hoje, a economia mundial não é mais baseada em produtos como alimentos ou minério, mas em patrimônio imaterial, como o da informação. Como o valor de corporações como Google, Yahoo e Facebook é precificado? Não é a partir da mesma lógica que se utiliza para precificar produtos que envolvem matéria-prima, mão de obra, meios de produção. Hoje, a produção é completamente descentralizada; os consumidores são também produtores e agregam valor aos produtos que escolhem; tudo é muito diferente. O Brasil não pode perder essa onda de tecnologia e inovação e precisa se adequar aos novos modos de produção e consumo, que prezam pela sustentabilidade. Para isso, é fundamental ter um Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação forte.
No horizonte dos próximos 20 anos, que outros cenários epidemiológicos podem surgir a partir da persistência ou agravamento das mudanças climáticas?
As doenças transmitidas por vetores – como dengue, febre amarela, malária, doença de Chagas – são naturalmente influenciadas pelo meio ambiente, condicionadas pelo tipo de clima, vegetação, intensidade de chuva, temperatura. Cada uma dessas enfermidades tem uma dinâmica própria e reage de forma diferente a alterações nesses fatores. Mas algumas questões precisam ser observadas. Altas temperaturas aceleram o ciclo de vida e intensificam a proliferação dos mosquitos que transmitem a malária. No entanto, outras variáveis ambientais em curso na Amazônia, onde a malária está concentrada no país, também impactam o quadro da doença. A transformação do solo pela expansão da soja e do gado, o desmatamento e as mudanças no regime de chuvas, por sua vez, levam à redução da área de transmissão da doença. Regiões da Amazônia que sofreram desmatamento brutal, como norte de Mato Grosso, sul de Rondônia e oeste do Pará, diminuíram fortemente a incidência de malária.
Então não podemos afirmar que o aquecimento do planeta, linear e inexoravelmente, levará ao aumento de doenças transmitidas por mosquitos. Muitos fatores devem ser analisados. No caso da malária, as perspectivas são positivas e muitos estudos apontam que a doença abrangerá um território cada vez menor. Já as doenças transmitidas pelo Aedes aegypti e Aedes albopictus – dengue, zika e chikungunya, dentre tantas outras com maior ou menor gravidade e prevalência no Brasil – são mais preocupantes. A população brasileira está exposta a uma grande variedade de vírus, que podem provocar doenças graves, levar a óbito e ainda irão circular pelo país por muitos anos.
Que políticas ambientais e de Saúde devem ser tomadas no presente a fim de evitar a proliferação de mosquitos e a ocorrência de emergências sanitárias?
Infelizmente, nenhuma ação de eliminação desses mosquitos deu certo até hoje. O máximo que conseguimos, em diferentes momentos, foi reduzir significativamente a infestação – por alguns meses ou anos. O fato é que nossas grandes cidades tropicais se tornaram paraísos para esses mosquitos: urbanização precária, falta de saneamento básico, habitações improvisadas, acúmulo de lixo, alta densidade populacional, temperaturas elevadas, chuvas intensas. O problema é grave, pois mesmo que consigamos reduzir a infestação pelos mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus muito dificilmente iremos eliminá-los. É preciso agir diretamente sobre os determinantes sociais da saúde e melhorar a infraestrutura das grandes cidades.
Há até pouco tempo acreditava-se que essas doenças não eram graves e causavam apenas mal estar e febre. Mais recentemente, muitas pessoas começaram a morrer de dengue, revelando quadros mais preocupantes. E então surgiram chikungunya, que além de dores articulares pode provocar complicações neurológicas em médio prazo, e zika, que pode levar à gestação de bebês com microcefalia, dentre outras malformações congênitas. A Saúde precisa se repensar e se reinventar para atender o contingente populacional que demandará cuidados especiais e atenção especializada em longo prazo, em decorrência dessas doenças. Além de medidas para controlar os vetores, é fundamental que o sistema de saúde cuide das mulheres, especialmente as grávidas, dos homens, dos adultos, das crianças e dos idosos, considerando cada grupo com suas condições de risco e vulnerabilidades próprias. Há que se discutir, ainda, o aborto. O Sistema Único de Saúde (SUS) precisa estar preparado para acolher, informar e aconselhar mulheres grávidas sobre os riscos de desenvolvimento de microcefalia em fetos. Em síntese, um novo padrão de atenção à saúde se faz necessário justamente no atual contexto de esvaziamento do SUS.
Como a realização de estudos prospectivos de futuro, como os desenvolvidos pela rede Brasil Saúde Amanhã, contribuem para o enfrentamento dos desafios impostos pelas mudanças climáticas?
Eu admiro a rede Brasil Saúde Amanhã pela iniciativa de trazer cenários futuros sobre o sistema de saúde brasileiro. Historicamente o setor Saúde está sempre respondendo aos desafios presentes, que não são poucos, buscando neutralizar os minimizar os seus impactos negativos. Portanto, criar uma cultura de prospecção de cenários e de planejamento estratégico é essencial. O projeto contribui ainda mais ao criar não apenas um, mas três cenários para o país e o sistema de saúde, considerando variáveis importantes, como o avanço ou não do neoliberalismo e a retomada do crescimento econômico ou o agravamento da recessão. Diante de tantos desafios – como mudanças climáticas, mortalidade infantil, emergência de doenças infecciosas, problemas crônicos de saneamento, poluição atmosférica, contaminação por agrotóxicos – quais são as prioridades do país e as estratégias de ação? O que nos levou a esta situação? Qual a influência de um modelo de desenvolvimento baseado no agronegócio, na concentração de renda, na desigualdade social? Que possibilidades queremos para o futuro? Sobre essas questões precisamos refletir.
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Pesquisador da Fiocruz fala sobre os desafios das mudanças climáticas para a Saúde - Instituto Humanitas Unisinos - IHU