“No caso específico do Ceará, as facções (que são inúmeras no Estado, com certa proeminência do PCC) estão buscando assegurar o controle do mercado de ilícitos, mas também dando uma resposta em relação à nova proposta de administração penitenciária”, diz a antropóloga Juliana Melo à IHU On-Line, ao comentar a onda de violência que se estende pelo estado há mais de dez dias. Segundo ela, o Ceará, especialmente por conta das suas áreas litorâneas, “constitui-se hoje como um lugar estratégico para o tráfico internacional de drogas devido à proximidade com a Europa e a África e às políticas de gestão alfandegárias locais”.
Além de a localização geográfica do estado favorecer as rotas do tráfico de drogas, a pesquisadora pontua que os fatores que explicam o atual quadro de violência no estado são variados e complexos. Entre eles, Juliana pontua “questões governamentais locais”, como a indicação do novo secretário de administração penitenciária, mas também “questões estruturais” envolvendo o sistema prisional e os conflitos entre “organizações criminosas que disputam” o mercado de drogas internacional, “que é altamente lucrativo”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Juliana informa que não só no Ceará, mas no Nordeste como um todo a “situação continua bastante tensa. No estado do Rio Grande do Norte, por exemplo, e a ‘guerra’ está acontecendo nas ruas e nos pavilhões prisionais no Estado do Rio Grande do Norte e em Natal, particularmente”. Os conflitos entre as facções na região, explica, têm como consequência “o aumento vertiginoso do número de assassinatos, cabendo notar um crescimento no número de mulheres apreendidas e assassinadas, bem como a inserção de pessoas cada vez mais novas nas facções locais (Sindicato do Crime e PCC – Primeiro Comando da Capital) que estão em guerra e disputando a cidade metro a metro”. Nesse contexto, informa, “o envolvimento de jovens em facções criminosas representa hoje um ‘negócio’ rentável e altamente cobiçado para alguns”.
Para os que ingressam nas facções, relata, “fazer parte de uma rede criminosa significa a possibilidade de sanar dificuldades materiais e, ao mesmo tempo, ser reconhecido. Ou seja, trata-se de uma opção valorizada por muitos jovens, e as organizações criminosas não precisam se preocupar com o recrutamento deles. (...) Muitos jovens, aliás, estão apenas esperando a vez para entrar no crime. Isto é, para cada pessoa presa ou assassinada, há um ou mais jovens esperando para ocupar a vaga deixada”.
Juliana Melo (Foto: Tribuna do Norte)
Juliana Melo é professora do Departamento de Antropologia e coordenadora do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN e atualmente está desenvolvendo uma atividade de cooperação técnica na Universidade de Brasília no Instituto de Estudos Latino-americanos - ELA. É doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília – UNB, mestra em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e graduada em Ciências Sociais - Habilitação em Antropologia pela UNB.
IHU On-Line - Quais são os fatores que ajudam a explicar a onda de violência no Ceará?
Juliana Melo - São muitos os fatores que explicam a violência no Ceará atualmente. A questão é complexa, pois envolve desde questões governamentais locais (como a indicação de um novo secretário de administração penitenciária que acumula uma série de denúncias de violações de direitos humanos no sistema prisional) como também questões estruturais que dizem respeito à situação social e prisional brasileira, vinculando-se ao tráfico internacional de drogas e às organizações criminosas que disputam esse mercado, que é altamente lucrativo. Todas essas questões são centrais para compreender o quadro de violência no Ceará e no Brasil de modo geral. Especificamente, contudo, o Ceará (e suas áreas litorâneas especificamente), constitui-se hoje como um lugar estratégico para o tráfico internacional de drogas, devido à proximidade com a Europa e a África e às políticas de gestão alfandegárias locais.
O quadro, contudo, envolve também questões que dizem respeito à desigualdade social vigente no país e a um sentimento de falta de crença no sistema de justiça e de reconhecimento para um número cada vez maior de jovens periféricos e com baixa escolaridade. Em termos gerais, pessoas com esse perfil (especialmente do gênero masculino) têm sido facilmente capturadas pelas redes do crime e o fazem com o objetivo de não somente superar problemas de ordem material como também obter uma rede de apoio e reconhecimento social — ainda que limitado aos seus próprios pares.
Por outro lado, fazer parte de um coletivo criminoso implica fazer parte de uma “família”, na qual o “padrinho” tem um papel fundamental para ajudar na construção de uma carreira de “respeito” no crime e/ou na “cobrança” por atitudes consideradas “desviantes”. Todos esses aspectos, que são correlatos, estão refletidos de uma maneira ou de outra no contexto cearense e ajudam a entender a configuração atual.
IHU On-Line - Na entrevista que nos concedeu há dois anos sobre os conflitos envolvendo o Primeiro Comando da Capital - PCC e o Sindicato do Crime do RN, a senhora relatou que a guerra já estava nas ruas. Como essa situação tem se desenvolvido ao longo dos dois últimos anos? Tem aumentado o número de homicídios por conta das disputas entre facções?
Juliana Melo - A situação continua bastante tensa e a “guerra” está acontecendo nas ruas e nos pavilhões prisionais no Estado do Rio Grande do Norte e em Natal, particularmente. As consequências são o aumento vertiginoso do número de assassinatos, cabendo notar um crescimento no número de mulheres apreendidas e assassinadas, bem como a inserção de pessoas cada vez mais novas nas facções locais (Sindicato do Crime e PCC) que estão em guerra e disputando a cidade metro a metro.
A título de esclarecimento, o massacre no hoje conhecido “Complexo Prisional de Alcaçuz”, ocorrido em janeiro de 2017, marcou o ápice da guerra entre as duas facções rivais, o PCC e o Sindicato do Crime, e suas consequências ainda são fortes. Nesse contexto, pessoas vinculadas ao PCC e lotadas no Pavilhão 5 invadiram o Pavilhão 4 e mataram, de acordo com dados oficiais — contestados por sobreviventes do massacre e seus familiares —, 26 pessoas vinculadas ao Sindicato do Crime. O episódio, ainda não solucionado — já que existem 71 desaparecidos ainda hoje —, ainda está muito vívido na memória da cidade e se reflete na guerra entre facções rivais tanto nas prisões como fora delas.
De modo geral, as duas facções, além de buscar o controle do mercado de ilícitos — concentrado na prática de crimes patrimoniais e de tráfico de drogas — hoje disputam territórios específicos e isso tem gerado a invasão de bairros por facções rivais com a consequente expulsão dos moradores locais.
Esse processo, porém, está diretamente vinculado à realidade do sistema prisional local, que ainda é bastante tensa. Para se ter uma ideia, a população carcerária de Alcaçuz, desde então, teve sua população carcerária duplicada e, ao contrário do que acontecia antes do massacre, hoje as facções rivais estão alocadas no mesmo Pavilhão, separadas apenas por alas diferentes e muito próximas. O “fantasma” do massacre, portanto, ainda está muito presente e os presos têm muito receio de que possa acontecer um novo massacre, fato que já tentaram denunciar inúmeras vezes e que deixa as famílias em um estado de alerta e sofrimento constante.
Fora isso, as condições prisionais são péssimas e já foram feitas inúmeras denúncias de violações graves de direitos humanos em fóruns locais, no Ministério Público estadual e federal, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos etc. sem que medidas sejam adotadas para reverter esse quadro. Diante das condições miseráveis em que se encontram as prisões potiguares e da certeza de que a “prisão” faz parte da carreira de um criminoso, as facções precisam contribuir para sustentar os “irmãos” no presídio e isso requer a arrecadação de recursos materiais adquiridos por meio de práticas criminosas diversas. Não obstante, para tanto, as facções precisam de um contingente cada vez maior de “soldados” para realização dessas práticas, conquista de novos territórios e controle daqueles já assegurados.
Toda essa configuração transforma o sistema prisional potiguar em um verdadeiro barril de pólvora e as consequências não se restringem ao contexto prisional. Soma-se aos fatos a lembrança dos mortos de Alcaçuz — sequer reconhecidos pelo próprio estado e um sentimento que envolve desejo por vingança e, ao mesmo tempo, um sentido de honra profundo —, pois o Massacre de Alcaçuz foi entendido como um ato de covardia e indica uma forma de proceder errado no crime. Há, nesse sentido, uma disputa entre as facções também para mostrar quem tem a carreira moral mais digna e age “fazendo o certo pelo certo”. Estamos diante, portanto, de um ciclo vicioso do qual não se sai facilmente e que envolve as redes prisionais e não prisionais, implicando ainda em uma verdadeira reconfiguração territorial da cidade.
IHU On-Line - Como essas facções agem especificamente nas periferias para recrutar jovens?
Juliana Melo - Conforme falei anteriormente, o envolvimento de jovens em facções criminosas representa hoje um “negócio” rentável e altamente cobiçado para alguns. Fazer parte de uma facção, para pessoas remetidas à condição de vulnerabilidade e de não reconhecimento, significa a possibilidade de sanar dificuldades materiais e, ao mesmo tempo, ser reconhecido — ainda que por um breve período de tempo e pelos próprios pares. Ou seja, é uma opção valorizada por muitos jovens, e as organizações criminosas não precisam se preocupar com o recrutamento deles, pois eles vão aderir a elas de acordo com sua própria vontade e agência nesse sentido.
Ora, muitos jovens estão apenas esperando a vez para entrar no crime. Isto é, para cada pessoa presa ou assassinada, há um ou mais jovens esperando para ocupar a vaga deixada. A não ser em casos extremos — como a guerra em Natal — as facções, portanto, não precisam se preocupar com o recrutamento de novos “soldados”. Esse não é um recurso escasso, ao contrário.
IHU On-Line - Notícias da imprensa informam que a onda de violência também abrange o interior dos presídios. Que informações a senhora tem sobre a atuação dos presos nessa onda de violência no estado?
Juliana Melo - Não tenho informações diretas sobre o interior dos presídios cearenses, mas compreendo que há um contexto comum e uma relação de continuidade entre o mundo prisional e não prisional. Embora pensemos, de um modo estereotipado, na prisão como um espaço hermeticamente fechado e controlado pelo Estado, as prisões são marcadas por intensos fluxos que envolvem desde a circulação de pessoas (advogados, visitantes, familiares etc.) como de materiais (produtos alimentícios, dinheiro, cartas, processos etc.).
As ondas de violência que estão acontecendo no Ceará, com ataques a carros, viadutos e prédios públicos, aliás, demonstram exatamente a conexão entre esses dois universos. No caso específico do Ceará, as facções (que são inúmeras no Estado, com certa proeminência do PCC) estão buscando assegurar o controle do mercado de ilícitos, mas também dando uma resposta em relação à nova proposta de administração penitenciária.
Os ataques promovidos no Ceará ultimamente, desse modo, parecem ser uma demonstração de força dessas redes em relação ao Estado e, ao mesmo tempo, evidenciam o repúdio a um modelo de gestão prisional que está sendo proposto pelo novo secretário de administração penitenciária, sobretudo no que diz respeito à proibição de entrada de itens alimentares nos dias de visita, proibição das visitas íntimas e imposição de um regime disciplinar de cunho exclusivamente punitivista.
IHU On-Line - Alguns especialistas em segurança dizem que a violência no Ceará é marcada pelo fortalecimento de facções como o PCC, o CV e a Família do Norte. Qual tem sido a participação dessas facções nesta onda de violência no Ceará e nos demais estados do Nordeste? O que elas estão reivindicando com essa onda de violência?
Juliana Melo - O contexto brasileiro atual é marcado pelo processo de expansão do PCC, que hoje tenta estabelecer o domínio sobre a produção e distribuição da maconha e da cocaína no Brasil e controlar rotas de tráfico nacional e internacional. Desde o rompimento com o Comando Vermelho, em 2016, o PCC vem ampliando seu raio de atuação no Brasil e buscado estabelecer alianças, através da incorporação de novos membros e de facções locais às suas redes. Esse processo, contudo, acaba tendo dinâmicas próprias em cada estado, havendo lugares em que as facções locais se aliaram ao PCC (como no caso de Santa Catarina, por exemplo) ao passo que em outros foi estabelecida uma relação de profunda rivalidade com as redes criminosas locais (como é o caso do Rio Grande do Norte). Em termos particulares, o Nordeste passou a ser um lugar disputado especialmente pelo PCC, que busca assegurar uma posição hegemônica frente às demais facções.
A questão prisional, porém, deve ser pensada como pano de fundo, cabendo notar que a maioria das facções brasileiras foi originada dentro das prisões e é resultado da organização dos presos pela defesa de direitos assegurados legalmente e não implementados em termos práticos. Ou seja, embora variáveis de grupo para grupo, geralmente todos os coletivos criminosos brasileiros têm por lema a referência à ideia de igualdade no sistema prisional e de liberdade — almejada como bem supremo.
No caso do Ceará, todas essas questões se fazem presentes e estão vinculadas à formação de novos coletivos (como a Família do Norte, por exemplo) e ao estabelecimento de alianças com o PCC, o que tem fortalecido a sua inserção localmente. Aliás, convém notar a complexidade desse processo. Afinal, se as facções estão por trás dos ataques acontecidos no Ceará, dentro das prisões (e desde que exista um grupo hegemônico), esses coletivos também contribuem para diminuir a violência local através da imposição de códigos morais que proíbem o roubo, o estupro e assassinato sem maiores motivações, por exemplo. Ou seja, estamos diante de uma faca de dois gumes.
IHU On-Line - Além dessas facções, que outras facções locais disputam o território do Ceará e entorno?
Juliana Melo - No contexto do Ceará existem várias facções em disputa e, ao mesmo tempo, estabelecendo alianças com Comando Vermelho ou PCC, que são as facções com maior visibilidade no país atualmente. Não saberia, contudo, aprofundar o debate sobre os grupos locais, por não ter realizado estudos empíricos no Ceará. No entanto, em comparação com Natal, é possível ver como a situação se diferencia quando estamos lidando não apenas com duas facções em guerra, mas como vários grupos que ora se aliam, ora rompem com as facções do Sudeste, cabendo notar que o poder do PCC, por exemplo, no Ceará é muito mais forte do que no Rio Grande do Norte, por exemplo. Não obstante, há várias correlações como o Rio Grande do Norte e relações de continuidade entre esses contextos. Desde os ataques no Ceará, várias pessoas consideradas lideranças foram transferidas para a prisão federal de Mossoró, no RN, sendo que o gestor anterior do sistema prisional do Rio Grande do Norte é o atual secretário de administração penitenciária do Ceará.
Atuação das facções nos estados do país (Imagem: Quixeramobim)
IHU On-Line - Qual é a relação das facções que atuam no território do Ceará com facções de estados vizinhos? Facções que atuam no território do Ceará recebem apoio de facções de outros estados ou disputam território com facções de outras regiões?
Juliana Melo - A situação encontrada no Ceará, ainda que exista uma série de questões locais que precisam ser melhor compreendidas e que exigem um conhecimento mais especializado, faz parte de um contexto mais amplo e que envolve o acesso e controle a redes de tráfico nacionais e internacionais, envolvendo diretamente o sistema prisional e a organização de redes criminosas como salientei anteriormente.
Diga-se de passagem, que a realidade nacional, em termos de segurança pública, está constituída por processos dinâmicos que envolvem a criação de novas facções, com o concomitante estabelecimento de novas alianças e rupturas entre esses grupos. Diante desse contexto, e da ampliação da área de atuação de grupos criminosos do Sudeste (especialmente o PCC) para o Norte e Nordeste, tem sido comum que facções melhor dotadas de recursos materiais contribuam para a resolução de questões locais e que, na maioria das vezes, envolvem o sistema prisional. Isso, por sua vez, tem garantido a adesão de pessoas locais às suas redes. Assim, se sou membro do PCC em Fortaleza, é comum supor que terei apoio de um “outro irmão” que está em São Paulo, por exemplo.
Na grande maioria das vezes esse “apoio” pode ser material (através do fornecimento de dinheiro, armas e “soldados”) e ou moral. No entanto, como observei em Natal, na maioria das vezes esse “apoio” é bastante limitado e mais retórico do que efetivo. Isto demonstra, por sua vez, como as facções criminosas brasileiras, ainda que adotem diferentes práticas e modelos morais, não podem ser pensadas como irmandades, mas, antes, como empresas capitalistas ávidas por lucros. Nesse sentido, embora uma pessoa faça parte de uma facção e tenha alguns benefícios por isso, ao final, o crime é um assunto individual. Isto é, cada um faz as suas “correrias” e assume os riscos e os custos dessas práticas. Esse pensamento, por sua vez, é relevante para compreender o modus operandi das facções e compreender como se dão as práticas de apoio estabelecidas entre as facções locais e não locais.
IHU On-Line - Como tem se dado a manutenção do crime organizado de dentro dos presídios brasileiros, especialmente no Nordeste?
Juliana Melo - O crime organizado não existe sem a participação do Estado e assume feições próprias em cada contexto. Note-se, contudo, que todas as facções brasileiras surgiram dentro das prisões e tiveram por mote central a luta por melhores condições de vida e pela garantia de direitos legalmente assegurados e não efetivados em termos práticos. O superencarceramento, o excesso de prisões provisórias no país, a falta de itens essenciais básicos para os presos e a ausência de políticas de ressocialização, além das violações constantes de direitos humanos são responsáveis diretamente pelo fortalecimento das facções, já que sacrificam as famílias dos presos e exigem recursos e um número cada maior de “pessoas” para “puxar” cadeia com os presos e garantir a continuidade do sistema. Essa dinâmica, de modo geral, está presente no Brasil como um todo e se acentua em lugares marcados por maior vulnerabilidade em termos de políticas sociais e formas de controle efetivo dos meios de gestão prisional — como é o caso do Norte e Nordeste.
IHU On-Line - Qual é a situação do sistema penitenciário no Nordeste?
Juliana Melo - Assim como a situação brasileira, a realidade prisional nordestina é marcada por uma série de mazelas. Se considerarmos o caso de Natal, podemos citar a superlotação carcerária como um problema central, além da falta de acesso a bens essenciais para uma sobrevivência minimamente digna. Casos de tortura psicológica e física também têm sido sistematicamente denunciados sem que os encaminhamentos necessários para cessar essas práticas sejam adotados, e essa situação de omissão parece ainda mais grave no contexto nordestino.
Se esse quadro é bastante comum no Brasil como um todo, contudo, é preciso pensar cada realidade como uma realidade única, cabendo reconhecer que em uma mesma cidade pode haver modelos de gestão prisionais diferentes. Afinal, na prática, é cada gestor penitenciário e sua equipe que dispõe quem estabelece as regras locais e um modus operandi próprio.
Ou seja, responder adequadamente a essa questão implicaria na realização de estudos empíricos em diferentes presídios e contextos e isso evidenciaria que evidenciariam as relações de continuidade e descontinuidade existentes entre diferentes prisões e realidades locais. Essa possibilidade, contudo, é cada vez mais restrita uma vez que o acesso de pesquisadores às prisões, no Brasil, está sendo cada vez mais restringido.
IHU On-Line - Como avalia a decisão do ministro Sergio Moro de enviar a Força Nacional de Segurança para o Ceará, para ajudar a conter a onda de violência no estado?
Juliana Melo - Trata-se de uma tática que não é nova e que sempre repete o mesmo padrão. Já tivemos (e temos) esse movimento no Rio de Janeiro e em Natal presenciamos ações semelhantes várias vezes, antes e depois do Massacre de Alcaçuz. Penso, contudo, que embora possam ser necessárias pontualmente, essa é uma medida paliativa, com visibilidade na mídia, mas de pouca eficácia em termos mais amplos. Aliás, é preciso olhar criticamente para essas ações e refletir sobre os recursos públicos que precisam ser viabilizados para tanto (e que envolvem, por exemplo, o dispêndio de vultuosos recursos para o pagamento de diárias destinadas aos funcionários públicos federais que participam dessas “missões”).
Por outro lado, para a população local, sobretudo aquela que está nas periferias, a presença da Força Nacional, quase sempre, é sinal de apreensão e implica no aumento da violência (através da invasão de casas e revistas que humilham os moradores) e da própria ampliação do número de assassinatos nessas áreas. Isto foi denunciado várias vezes no Rio de Janeiro, bem como em Natal, por exemplo.
IHU On-Line - Alguns especialistas em segurança afirmam que o Estado precisa investir mais na área de inteligência para ter capacidade de desarticular o crime organizado. Como isso tem sido feito hoje e como avalia esse tipo de proposta?
Juliana Melo - Hoje o controle do crime organizado está restrito à apreensão de “soldados” do crime e que raramente ocupam uma posição hierarquicamente superior nas organizações criminosas. A maior parte das pessoas presas no Brasil cometeu crimes patrimoniais ou está vinculada ao tráfico de drogas, ocupando o lugar dos “descartáveis”. Isto é, nossas prisões têm cor (são compostas por uma maioria de jovens negros) e têm classe (são pessoas despossuídas de bens, de escolaridade e de direitos). Prendemos muito e prendemos mal, sendo que nossas taxas de resolução de crimes de homicídio são extremamente baixas, ao passo que nossas taxas de reincidência criminal são altíssimas.
Todos esses aspectos demonstram como nossas prisões têm funcionado como um local de exclusão social para determinados grupos. Isso, por sua vez, explica a destinação de poucos recursos para a área de inteligência na polícia, que prende muito e mal. A ideia, afinal, é punir e excluir os grupos indesejáveis e não chegar às redes mais altas de poder — as quais sempre estão enraizadas no próprio estado de direito e permanecem, muitas vezes, intocáveis.
IHU On-Line - Como o Estado pode recuperar o espaço que hoje é ocupado pelas facções?
Juliana Melo - Não há possibilidade de recuperar o lugar das facções sem investirmos em políticas sociais que promovam a cidadania e a diminuição das desigualdades sociais que assolam o país. É preciso ainda que as pessoas voltem a ter confiança nos sistemas de justiça e acreditem que todos possam ter acesso à justiça de modo mais amplo e eficaz. A área da inteligência na polícia também precisa de investimento e seria importante que os pesquisadores se transformassem em parceiros dos administradores e gestores do sistema prisional ao invés de serem vistos com desconfiança e repúdio. Sem melhorias no sistema prisional essa conta também não fecha, pois as facções se alimentam da miséria prisional e isso tem implicações para fora das prisões, como tentei evidenciar inúmeras vezes ao longo dessa entrevista. A descriminalização e regulamentação das drogas é também central para que tenhamos uma mudança no quadro atual.