Por: Patricia Fachin | 05 Junho 2017
A novidade em relação à reconfiguração da violência nos últimos anos no Brasil “é a ostensividade do tráfico de drogas, principalmente nas periferias urbanas”, diz o sociólogo Luís Flávio Sapori à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida pessoalmente quando esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU na semana passada, participando do “5º Ciclo de Estudos Metrópoles. Políticas Públicas e Tecnologias de Governo - A centralidade das Periferias”, ministrando a palestra “A escalada da violência diante dos avanços econômico-sociais".
Ele explica que o tráfico de drogas se sustenta e se impõe nas periferias brasileiras de Norte a Sul por pelo menos duas razões. De um lado, “porque muitos traficantes são oriundos dessas comunidades e veem no comércio da droga uma oportunidade ímpar de enriquecer. Esta é a motivação básica do tráfico: ganhar dinheiro e realizar os desejos que qualquer um de nós tem de consumo, de aquisição de bens materiais”. De outro, “porque historicamente a periferia sempre foi um território da cidade deixado em segundo plano pelas elites brasileiras; esse é o lado perverso da desigualdade. (...) A ilicitude, em boa medida, é a marca histórica desses territórios, e o tráfico apenas vem nesse bojo e se aproveita dessa história de um território relegado a segundo plano”, constata.
Sapori frisa que a “racionalidade” que está por trás do tráfico de drogas é estritamente “econômica” e é justamente por isso que os traficantes disputam territórios nas cidades. Além disso, diz, nas periferias de modo geral o tráfico “se consolidou com uma estrutura muito conflituosa” e “se apresentou através de uma rede de comercialização baseada em gangues juvenis com uma estrutura incipiente: ele não é tão organizado no varejo como foi em países como a Colômbia, em que existiam várias quadrilhas dividindo a venda da droga em várias favelas. Essa pulverização significou, na prática, uma disputa por territórios, por clientela, por acertos de contas, por corrupção policial, com uso de muita arma de fogo”.
Apesar das disputas por territórios, o sociólogo pontua que os donos das bocas de fumo têm consciência de que o aumento do conflito e da violência envolve “prejuízos” econômicos, mas muitas vezes “os garotos do tráfico não são controlados e começam a se matar por motivos fúteis que fogem dos parâmetros de quem está administrando o tráfico”.
Na entrevista a seguir, o sociólogo explica de que forma a violência se reconfigurou no Brasil nos últimos trinta anos, comenta a forma de ação do tráfico de drogas nas periferias e bairros de classe média brasileiros, e a situação do sistema prisional que tem favorecido o surgimento de facções. “Estamos tendo surpresas em relação ao surgimento de novas facções, e os serviços de inteligência do Brasil são frágeis. Esses serviços deveriam antecipar essas situações, mas não as antecipam e ficamos sabendo do surgimento de novas facções pelos jornais. De qualquer maneira, esses eventos estão revelando um cenário de consolidação de facções criminosas, o que significa que o PCC já não reina sozinho, apesar de ele ter pretensões abrangentes”, diz.
Professor Sapori no IHU | Foto: Ricardo Machado - IHU
Luís Flávio Sapori é doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ e foi secretário adjunto de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais no período de janeiro de 2003 a junho de 2007. Atualmente é professor do curso de Ciências Sociais e coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Segurança Pública - CEPESP da PUC Minas.
Confira a entrevista
IHU On-Line - Como o senhor entende o fenômeno da violência e consequentemente o fenômeno da violência urbana?
A partir da segunda metade dos anos 2000 o fenômeno da violência no meio rural também está se apresentando de uma forma intensa, e não há mais como separar a violência da cidade da violência do campo
Luís Flávio Sapori – A violência na realidade brasileira se aproxima muito do espaço urbano. E aí estamos falando de crimes violentos, porque o conceito de violência pode abranger comportamentos sociais para além de crimes, e nem todos os crimes são violentos. Mas se entendermos a violência urbana como uma série de comportamentos criminosos com maior ou menor grau, utilizando-se da força física contra a vítima, ela está muito mais relacionada à sociabilidade das cidades do que da sociabilidade do espaço rural.
O diagnóstico que temos apresentado do Brasil nos últimos 30 anos evidencia o crescimento da violência nos maiores aglomerados urbanos. Nas décadas de 80 e 90 a violência cresceu muito nas metrópoles brasileiras, nas regiões metropolitanas, principalmente no Sudeste e no Sul. A partir dos anos 2000 há uma crescente disseminação do fenômeno para as cidades de médio e pequeno porte, portanto há evidências de que cidades com 40 mil habitantes apresentaram crescimento sustentável dos homicídios desde os anos 2000, e esse fenômeno atingiu o Brasil como um todo.
Eu diria que, a partir da segunda metade dos anos 2000, o fenômeno da violência no meio rural também se apresenta de uma forma intensa, e não há mais como separar a violência da cidade da violência do campo. A violência que ocorre no campo não é a violência entre proprietários de terras e posseiros ou mineiros; ao contrário, o roubo, o homicídio e o tráfico de drogas estão atingindo os pequenos distritos. Apesar dessa vinculação quase umbilical da violência com o urbano, eu diria que ela não é mais exclusiva do espaço urbano, porque a violência hoje na sociedade brasileira espraiou-se de uma maneira muito intensa.
IHU On-Line – A que atribui essa mudança do fenômeno da violência na última década e sua expansão para cidades menores?
Luís Flávio Sapori – Há fatores sociais claros que estão impulsionando essa realidade, embora essa compreensão não seja unânime entre os pesquisadores sobre o tema. De todo modo, tenho defendido no debate nacional que a realidade que enfrentamos hoje é bem diferente da realidade que tínhamos há trinta anos, portanto o crescimento da violência não está simplesmente relacionado com o crescimento da população, e a violência de hoje não é a mesma que existia nos anos 40 e 60. Há uma história de violência ao longo da história da nossa sociedade, inegavelmente, mas tenho argumentado que há algo novo no cenário e nas décadas recentes. Outros fatores estão impulsionando comportamentos violentos dos indivíduos, e dois crimes são os que mais conformam hoje o cenário de violência: os homicídios e os roubos, principalmente o roubo à mão armada, e subsidiariamente podemos inserir nesses casos os estupros.
Consigo identificar o começo desse processo com um início mais acentuado nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, nas décadas de 80 e 90. Esses foram os estados onde o fenômeno se tornou mais nítido e ali ficou clara a presença do tráfico de drogas no cenário da violência urbana como nunca antes na história do Brasil. A partir dos anos 2000, esse fenômeno atingiu os estados do Norte e Nordeste, enquanto os estados do Centro-Oeste e do Sul já apresentavam essa deterioração desde os anos 90.
O que explica essa dinâmica e o que tem de novo na história brasileira, principalmente no espaço urbano, é a ostensividade do tráfico de drogas, sobretudo nas periferias urbanas. É fato que o tráfico já existia, especialmente o tráfico da maconha, que já estava presente nas periferias nas décadas de 60, mas há algo novo nesse processo que veio a reboque de uma metropolização intensiva da sociedade brasileira a partir da década de 60. Então houve uma mudança estrutural na década de 60 para 80, com a formação de grandes aglomerados urbanos. Esse foi um período em que a sociedade brasileira se rejuvenesceu muito, e a população jovem adquiriu uma proeminência demográfica como nunca antes na história do país. Soma-se a isso um elemento denotador, que é o tráfico de drogas, especialmente com a entrada da cocaína em pó, que ficou barata a partir dos anos 80. A cocaína ficou barata em função da ação dos cartéis colombianos e chegou ao Brasil via o Rio de Janeiro e São Paulo. Ela foi se disseminando pelo país afora e logo em seguida, na década de 90, surgiu o crack e, mais recentemente, as drogas sintéticas. Então, há uma história de consolidação do tráfico de drogas porque a lucratividade e a demanda do tráfico aumentaram.
A demanda do tráfico veio no bojo da melhoria da economia e da renda da população, inclusive dos mais pobres. Nesse sentido, o tráfico na periferia se consolidou com uma estrutura muito conflituosa, ou seja, se apresentou através de uma rede de comercialização baseada em gangues juvenis com uma estrutura incipiente: ele não é tão organizado no varejo como foi em países como a Colômbia, em que existiam várias quadrilhas dividindo a venda da droga em várias favelas. Essa pulverização significou, na prática, uma disputa por territórios, por clientela, por acertos de contas, por corrupção policial, com uso de muita arma de fogo. Ou seja, o tráfico de drogas trouxe no seu bojo uma série de outras criminalidades, principalmente o uso da arma de fogo e o recrutamento dos jovens das periferias. Trata-se de um processo social que foi se construindo ao longo do tempo. Além disso, à medida que o jovem passou a ver o tráfico como uma alternativa sedutora de ganhos econômicos, o uso da arma de fogo também se tornou intensivo, e os domínios territoriais nas periferias das cidades acontecem quase de forma automática, porque os traficantes passam a se tornar as referências morais e de ordem nas periferias. Imagine isso acontecendo ao longo de dez, 20 e 30 anos.
O aparato estatal está completamente despreparado para lidar com o tráfico e foi pego, como dizemos na linguagem popular, “de calças na mão”, porque nunca diagnosticou claramente o problema; sempre se adotou uma estratégia equivocada de enfrentamento, que até hoje persiste. Rio de Janeiro e São Paulo são exemplos sintomáticos dessa ineficiência: a polícia enfrenta o tráfico trocando tiro com os meninos do tráfico nas periferias, com mortes de ambos os lados.
IHU On-Line – Como se dá a organização do tráfico nas periferias? Ele se organiza a partir da formação de várias gangues e grupos que disputam o mesmo território? Nesse sentido, como ele se diferencia ou se aproxima da organização das facções criminosas?
Luís Flávio Sapori – Nós chamamos essas gangues e grupos que existem nas periferias de crime organizado, porque eles atuam a partir do tráfico de drogas ilícitas, que envolve lavagem de dinheiro e agentes do Estado. Mas o tráfico de drogas na periferia não é tão organizado como imaginamos. Quando se trata de falar de tráfico, muitas vezes as imagens que temos são as de Pablo Escobar ou das máfias italianas, mas o que mais se aproxima disso no Brasil é o Primeiro Comando da Capital - PCC. Se existe crime organizado no Brasil, ele se chama PCC, embora ele divida espaço com o Comando Vermelho - CV e com alguns outros grupos que parecem emergir no Nordeste.
Mas na periferia de maneira geral o tráfico de drogas é desorganizado e fragmentado, porque os grupos estão dividindo, em uma mesma favela, pontos de venda de drogas. Uma única favela com quatro ou cinco mil moradores pode ter seis ou sete pontos de venda, os quais, no Sudeste são chamados de “biqueiras”, ou “boca de fumo”, no Sul. Ou seja, são pontos fixos de venda de drogas, onde tem um grupo de jovens disponíveis para oferecer o produto à clientela. Assim o cliente vai até lá comprar o produto, e geralmente os traficantes e vendedores estão armados de forma mais ou menos ostensiva, dependendo da região. De outro lado, eles são estruturados, porque existe uma hierarquia mínima: geralmente existe o patrão da boca, ou seja, o dono, aquele que investe o dinheiro, que compra a droga no atacado para repassar para o varejo; depois tem um gerente, que faz a contabilidade, que é responsável pela articulação da droga, pela montagem dos produtos, ou seja, da maconha, da cocaína, do crack. Geralmente esse gerente ainda é responsável pela administração dos jovens que participam do grupo, daqueles que são os vendedores, daqueles que são os matadores e da garotada que faz a vigilância da área. Ou seja, eles têm uma organização, mas não se trata de um crime organizado sofisticado como o PCC se tornou em São Paulo.
Numa mesma favela podem existir dois patrões e, se isso acontece, a possibilidade de conflito é muito grande. Mas numa favela em que há um único patrão dominando todas as bocas de fumo, aí a região tende a ser mais tranquila, uma vez que o domínio monopolizado do varejo evita conflitos.
Mas o problema do domínio monopolizado é que o patrão, o dono do varejo, se torna a referência de lei e ordem da comunidade, porque esse passa a ser um território da cidade em que a polícia entra, mas não fica, onde a polícia entra em confronto, prende drogas, troca tiros e depois sai. No dia a dia, o trabalhador que mora nessas regiões está vivendo sob as regras impostas por esses traficantes, e todos os estudos brasileiros têm mostrado que isso é assim em todas as cidades em que o tráfico se instalou na periferia; esse é um fenômeno que ocorre de Norte a Sul do Brasil.
IHU On-Line – Por que o tráfico consegue se impor nas periferias?
Luís Flávio Sapori – Isso é fácil de explicar: porque ele tem o poder armado, porque ele é um poder paralelo e as armas impõem ao traficante e ao grupo dele uma autoridade grande sobre os demais moradores, ou seja, eles podem impor as suas vontades no sentido de favorecer o negócio. A racionalidade é sempre em torno do que dificulta ou facilita o lucro da venda de drogas. Então, o toque de recolher ou a proibição ou permissão de um agente público fazer uma visita a famílias beneficiadas por algum programa social acontecem porque os traficantes controlam quem entra e quem sai da região para evitar espiões, concorrentes, e a presença da polícia. Esse controle territorial tem por trás uma racionalidade econômica que é perversa para os moradores. Esses traficantes não chegam a ser um Estado paralelo, porque o Estado é provedor de vários serviços, enquanto o tráfico não é provedor de serviços de saúde e educação, apesar de alguns traficantes serem benfeitores locais — mas esse não é o padrão.
O tráfico nessas regiões periféricas é um poder paralelo que usa da força, do medo, da coerção e causa danos para a região. Isso porque os serviços públicos, como saúde e educação, ficam comprometidos e a qualidade desses serviços cai muito uma vez que os funcionários públicos, os professores, passam a não querer trabalhar mais nessas regiões, porque eles têm medo. A aula que um professor dá numa região dessas não é a mesma que ele daria num bairro de classe média. Portanto, é um equívoco achar que o poder paralelo do tráfico se instala nessas regiões porque elas não têm serviços públicos. Isso é um erro: tudo está lá.
IHU On-Line – Mas por que o tráfico se instala nessas regiões?
Luís Flávio Sapori – Porque muitos traficantes são oriundos dessas comunidades e veem no comércio da droga uma oportunidade ímpar de enriquecer. Esta é a motivação básica do tráfico: ganhar dinheiro e realizar os desejos que qualquer um de nós tem de consumo, de aquisição de bens materiais. Então, a venda da droga resulta de uma motivação econômica.
Contudo, a forma de instalar o tráfico na periferia é diferente da forma com que o tráfico se organiza nos bairros de classe média, porque também existem traficantes nos bairros de classe média. A diferença é que o tráfico nos bairros de classe média não envolve o uso ostensivo da arma de fogo, não envolve gangues da mesma maneira que acontece na periferia. Além disso, há uma dificuldade de identificar o traficante porque ele tem uma racionalidade diferente, ele quer ser discreto, enquanto o traficante da periferia não quer ser discreto, ele precisa ser visível, porque o cliente é quem o procura na biqueira.
O problema é que, para essa biqueira existir, ela tem que contar com a tolerância do poder público, porque a biqueira é conhecida por todo mundo: moradores, vizinhos, vereadores, polícia. Mas se todo mundo sabe, por que isso existe? Porque historicamente a periferia sempre foi um território da cidade deixado em segundo plano pelas elites brasileiras; esse é o lado perverso da desigualdade. A favela e os bairros operários sempre foram regiões de atividades ilícitas, do “gato de luz”, do uso indevido da água, de uma série de ocupações e moradias irregulares. A ilicitude, em boa medida, é a marca histórica desses territórios, e o tráfico apenas vem nesse bojo e se aproveita dessa história de um território relegado a segundo plano.
Apesar de ao longo do tempo as periferias terem recebido políticas públicas, terem se organizado, terem adquirido aspecto de bairros e não de favelas, o problema é que, depois que o tráfico se instalou, não adianta mais urbanizar essas regiões, regularizar as moradias, levar luz elétrica, esgoto para todo mundo, porque os benefícios sociais não mudarão a realidade.
IHU On-Line – Isso significa que não há como acabar com o tráfico de drogas e com o modo de organização dele, seja na periferia ou nos bairros de classe média?
Luís Flávio Sapori – Isso é muito difícil porque não vamos resolver o problema do tráfico apenas levando serviços públicos às comunidades, como uma visão ingênua preconiza. Alguns dizem que é preciso levar trabalho, escola, saúde, mas isso foi levado para essas comunidades nos últimos 20 anos e todas as comunidades da periferia melhoraram muito nas últimas décadas. Os indicadores sociais estão longe de serem iguais aos de primeiro mundo, mas o acesso aos serviços públicos da comunidade mais pobre é muito melhor do que era há 20 anos, inegavelmente. O jovem da periferia tem mais chance hoje de construir uma vida de dignidade e de trabalho através de uma profissão próxima da classe média do que tinha há 20 anos. Mesmo assim o tráfico cresceu, revelando que políticas sociais convencionais não vão resolver o problema. Outros dizem que é preciso distribuir renda, mas veja, o Brasil redistribuiu renda nos últimos anos em alguma medida e a situação não melhorou. Então, o desafio passa a ser, em primeiro lugar, reconhecer que não se acaba com o tráfico de drogas; essa meta é irreal. Enquanto existir demanda pela droga e o comércio for ilegal, vai haver traficante. Só se acaba com o tráfico se regularizar tudo, mas aí o jogo muda, e também não é tão fácil assim regularizar todas as drogas.
IHU On-Line – O que seria uma alternativa à legalização?
A prevenção social no Brasil é capenga e não se transformou em política pública consistente
Luís Flávio Sapori – Me parece que o desafio imediato fora da legalização é atuar em duas frentes. A primeira consiste em reduzir a violência associada ao tráfico na favela, e essa é uma ação que deve ser feita pela polícia e pela Justiça, impondo limites à violência, ou seja, prendendo quem está portando arma, quem está matando na periferia, prendendo o patrão do tráfico, que impõe restrições aos moradores locais, ou seja, passando a mensagem ao traficante de que a polícia e a Justiça não vão aceitar algumas ações. A mensagem tem que ser muito clara: quanto mais violentos eles forem, mais prejuízo terão, e isso significa que tem de haver a presença da polícia na comunidade, inspirada no modelo da Unidade de Polícia Pacificadora - UPP, que deu certo no Rio de Janeiro enquanto ela funcionou.
De outro lado, temos que reduzir as chances de os jovens serem recrutados pelo tráfico, porque esse processo é diário, semanal e invisível e alimenta boa parte dessa estrutura de criminalidade. Nesse caso não é a polícia quem deve atuar, mas deve haver um sistema de prevenção social. É preciso oferecer aos jovens de 12 a 16 anos, que geralmente abandonam a escola e que têm um perfil de consumo de drogas ilícitas, iniciativas de interação social para evitar que eles sejam cooptados pelo tráfico. Isso envolve a participação comunitária, a música, o esporte, a geração de renda para esses adolescentes e outro tipo de formação educacional. Ainda fazemos pouco nesses âmbitos, e a prevenção social no Brasil é capenga e não se transformou em política pública consistente. Temos que reconhecer que nós ainda não sabemos muito bem como fazer isso, principalmente as autoridades públicas não sabem.
No curto prazo essa é a melhor maneira de enfrentar o problema, e é preciso ser realista: não vamos acabar com o tráfico da favela. O que podemos fazer é criar alternativas para que o tráfico da favela não seja tão violento como é o tráfico nos bairros de classe média. E para que isso aconteça, a forma de a droga ser vendida e comercializada na periferia tem que mudar.
IHU On-Line – Mas em última instância não lhe parece que, embora seja possível diminuir os índices de violência, não se resolve o problema do tráfico, porque hoje existe uma relação direta entre os presos e os traficantes que estão na rua?
Luís Flávio Sapori – Mas aí as prisões precisam ser mais bem administradas, tem que se cortar a comunicação entre a liderança da prisão e os traficantes que estão na rua. Isso significa que é preciso colocar bloqueadores de celulares nas prisões e ter mecanismos de inteligência e de informação para identificar os advogados que estão sendo transmissores de ordens e mensagens da prisão para a rua. É fundamental hoje cortar esse nexo da comunicação da prisão com a rua, que de fato existe. O seu diagnóstico está correto e o modo como as prisões funcionam hoje estão retroalimentando o crime da rua, que é gerido de dentro da prisão.
É possível enfraquecer o tráfico, mas não há como acabarmos com ele. O mundo não acabou com o tráfico, nenhum país conseguiu acabar com o tráfico e ele existe de modo muito forte na Holanda, na França, na Inglaterra, mas a questão é que nesses países o tráfico mata menos. Esses países conseguem manter uma ordem pública razoável mesmo não acabando com o tráfico. Portanto, ter essa postura realista é fundamental para lidarmos com o tráfico.
IHU On-Line – Então o que torna o Brasil violento é o modo de enfrentamento que se faz aqui ao tentar combater o tráfico?
Luís Flávio Sapori – Isso também, mas a primeira questão é que o tráfico no Brasil se consolidou na periferia e se apropriou de uma história de uma periferia urbana abandonada, o que é diferente de outros países. Então, estamos pagando o preço pelo nosso passado, pela nossa história de desigualdades, de ocupação urbana desordenada. Quando acordamos para o problema e começamos a tentar atuar sobre ele, o tráfico já estava lá e já atuava como poder paralelo.
No Brasil a situação de violência é pior em relação aos outros países por conta do modo de enfrentamento, que é via confronto. O jovem da periferia, muitas vezes, é vítima do traficante e da polícia, ou seja, são duas forças paralelas disputando e tutelando a vida da comunidade, sendo que a polícia deveria adquirir a confiança do morador e do jovem da comunidade. Isso envolve uma mudança de orientação governamental, de comando de polícia, de atuação do policial no dia a dia, de metodologia de trabalho. E volto a dizer, a UPP, durante o tempo em que funcionou, mostrou que isso é possível e é um caminho viável para o Brasil como um todo. Então, essas duas questões explicam por que o tráfico mata mais no Brasil do que nos outros países.
Nos guetos americanos, nas periferias de Paris, nos bairros de imigrantes, o tráfico ainda é muito forte. É um comércio internacional, é a atividade mais lucrativa do mundo e não somos nós que vamos resolver esse problema. Temos que ter clareza de que se trata de um tráfico internacional e de que o que acontece na ponta, nos bairros e nas periferias, faz parte de uma rede muito maior. Apesar de o tráfico ser desorganizado na ponta, no varejo, no âmbito do atacado ele é muito sofisticado, ou seja, é uma atividade econômica global, que começa nas regiões onde a matéria-prima é produzida. Então, estamos lidando com máfias internacionais sofisticadas, e muitos dos traficantes não moram nas periferias, ao contrário, ocupam cargos públicos e são pessoas acima de qualquer suspeita.
IHU On-Line - O senhor tem relatos de quais são os principais problemas relacionados à violência entre os membros do tráfico nas periferias? Fala-se que eles têm tribunais públicos de julgamento, caso algum membro faça uma ação que não é permitida pelo grupo.
Luís Flávio Sapori – Há muitos estudos nesse sentido em São Paulo, principalmente em relação ao PCC. O que sei, a partir de meus estudos sobre o tráfico de drogas em Minas Gerais, é que existe uma ordem no tráfico; ou seja, eles não se matam o tempo inteiro, e o tráfico não é regido por pessoas cruéis, psicopatas, matadores a sangue frio. Dificilmente se identificam indivíduos com esse perfil psicótico, justamente porque o tráfico como negócio precisa de previsibilidade, precisa de “paz”. O traficante, mais do ninguém, sabe que muita briga, muita morte, muito conflito, muita violência, implica prejuízo, e o dono, o patrão do negócio sabe disso. O problema é que os garotos do tráfico muitas vezes não são controlados e começam a se matar por motivos fúteis que fogem dos parâmetros de quem está administrando o tráfico.
Na regra básica do tráfico, o que não se perdoa é a dívida do usuário por muito tempo. Dívida é tolerada só até certo ponto, e alguns administradores fazem com que os seus clientes devedores se tornem revendedores do produto. Mas o problema surge porque esse revendedor pega algumas buchas de maconha e pedras de crack e, ao invés de vendê-las, as consome. Isso é imperdoável e nesse caso a morte passa a ser inevitável. É assim que se começa a explicar por que grande parte de mortes que rondam o tráfico é de usuários, muitos deles dependentes químicos. O crack foi decisivo nisso, como pude constatar na minha pesquisa, pois o seu consumo gera um grau de dependência química muito grande. Muitos usuários de crack morrem mais assassinados do que por problemas de doenças. A outra traição no mundo do tráfico é em relação ao X-9. Ser X-9 é um dos maiores crimes no mundo do tráfico, pois o delator se torna um informante da polícia, e esse indivíduo, se identificado, não dura muito.
Agora, em São Paulo, na medida em que o PCC se consolidou, ele impôs uma moralidade para além dessas questões, ou seja, o PCC, enquanto crime organizado, trouxe regras para além do negócio. Isso que é interessante, porque ele se tornou uma referência de lei e ordem em todo o território para resolver todo e qualquer tipo de conflito, como conflitos entre marido e mulher, eventuais problemas na escola, eventuais problemas no que diz respeito a serviços públicos. Assim, o traficante se torna então provedor e, ao mesmo tempo, um moralizador. Por isso o PCC institui os tribunais informais para julgamento de infrações diversas ocorridas na comunidade, para além dos conflitos dentro do comércio da droga. Mas eu não diria que isso acontece de maneira generalizada nas cidades. Isso varia de acordo com o perfil do traficante que está na comunidade ou numa certa cidade, o qual pode assumir essa pretensão de referência suprema, mas não é o mais comum nas periferias em geral.
Embora os tribunais do tráfico não estejam generalizados Brasil afora, na medida em que esse fenômeno se consolidar, em que o tráfico for se oligopolizando e se monopolizando — o que pode ser uma tendência ao longo do tempo —, os conflitos podem diminuir e isso pode resultar numa moralidade instituída. À medida que as facções criminosas vão surgindo e se consolidando, é muito grande a probabilidade de essa moralidade ser levada de dentro para fora da prisão. Isso sim é uma hipótese que, no momento, eu diria que não é tão decisiva, mas que tende e pode acontecer.
IHU On-Line – Qual a atuação do PCC no Brasil? No início do ano, devido aos conflitos que assistimos nos presídios, muitos especialistas disseram que o surgimento de novas facções é uma reação ao poder do PCC, que está se articulando nas regiões de fronteira do país. Como o senhor compreende o surgimento dessas novas facções e suas relações com o PCC?
Luís Flávio Sapori – É inegável que o PCC se expandiu para o Brasil como um todo e que tem pretensões de desenvolver um negócio no atacado da droga, tanto na fronteira do Norte quanto na fronteira do Paraná com o Paraguai. Isso tudo são evidências da própria investigação do Ministério Público de São Paulo, que é a instituição que mais conhece a realidade do PCC. Aliás, o Ministério da Justiça não conhece praticamente nada sobre o PCC, o que inclusive é um problema. O serviço de inteligência no âmbito nacional em relação ao conhecimento do PCC está restrito a alguns policiais federais, mas mesmo assim não existe um corpo de policiais que conheça de fato o PCC, e isso é um problema. Mas, fora isso, é fato que o PCC se expandiu para além do varejo em São Paulo e tem ramificações no atacado da droga, principalmente da maconha e da pasta de cocaína, e não há dúvida que ele passou a ter uma política de recrutamento de novos membros no Norte e Nordeste do Brasil, tanto que gerou essa reação nos presídios de lá. Boa parte dos estados está enfrentando esse problema. Mas o PCC tem também uma forte presença nos estados do Centro-Oeste e uma presença muito grande nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná — coincidência ou não, existe em Foz do Iguaçu uma fronteira que é central.
Portanto, já não falamos mais só de PCC e Comando Vermelho. Estamos falando de facções que já existem e são identificadas dentro dos presídios, que atingem Ceará, Rio Grande do Norte, Bahia, Amazonas, Pará.
IHU On-Line - E todas elas nascem de disputas com o PCC?
Luís Flávio Sapori – Não. Elas nascem dentro das prisões por conta da má administração dos presídios: quanto mais os presos são relegados a segundo plano, quanto menos assistência eles recebem, quanto mais superlotados são os presídios, quanto mais violência há e quanto mais corrupção existe, maior a probabilidade de emergência de facções criminosas. Foi assim que o PCC surgiu, foi assim que o Comando Vermelho surgiu.
IHU On-Line – O surgimento de novas facções, como a Família do Norte e o Sindicato do Crime do RN, é uma surpresa?
Luís Flávio Sapori – Sim, estamos tendo surpresas em relação ao surgimento de novas facções, e os serviços de inteligência do Brasil são frágeis. Esses serviços deveriam antecipar essas situações, mas não as antecipam e ficamos sabendo do surgimento de novas facções pelos jornais. De qualquer maneira, esses eventos estão revelando um cenário de consolidação de facções criminosas, o que significa que o PCC já não reina sozinho, apesar de ele ter pretensões abrangentes. Está nítido que o CV também parece não se contentar mais com o Rio de Janeiro.
IHU On-Line - Inclusive, no Rio de Janeiro, o CV fechou a Av. Brasil há algumas semanas.
Luís Flávio Sapori – É, infelizmente, com a crise das UPPs o tráfico voltou a ter um domínio fortíssimo no Rio de Janeiro, e a situação está se degradando num ritmo aceleradíssimo, destruindo as boas conquistas que tinham sido feitas nos anos anteriores, muito em função da crise fiscal do Rio de Janeiro. Mas o cenário nacional é de facções criminosas surgindo dentro das prisões, e o pior, passando a administrar o crime fora das prisões. Geralmente essas facções surgem dentro das prisões para criar proteções aos presos. Elas surgem como irmandades para que o preso não seja violentado, estuprado, para que não morra facilmente. E isso envolve que o preso ou a família dele pague algum valor para a facção. O problema é que com o tempo essas facções que atuam dentro do presídio começaram a dominar o crime do lado de fora, ou seja, começaram a criar estruturas de poder fora das prisões.
IHU On-Line - E isso implica também a dívida das famílias com as facções?
Luís Flávio Sapori – Sim, implica, sem dúvida, mas essas famílias também são beneficiadas, porque elas recorrem às facções quando um membro da família é morto ou preso, pois é a entidade quem protege a família. Ou seja, essas facções são estruturas poderosas de recrutamento. Elas não podem ser comparadas ainda às máfias, como as máfias italianas, russas ou mesmo as norte-americanas, que têm uma estrutura de organização muito mais sofisticada. Mas essas facções podem se tornar máfias, e nada impede que ao longo do tempo elas se sofistiquem na forma de comando, nas regras de convivência, nos mecanismos de lavagem de dinheiro. O que falta é definir com mais clareza a estrutura de comando e qualificação, porque elas são ainda relativamente fragmentadas, pulverizadas em rede, com elos de lealdade estabelecidos de uma forma muito aleatória no espaço.
IHU On-Line - Já há relatos de facções que financiam políticos, vereadores. Quais são as implicações disso?
O que não sabemos ainda é em que medida a vinculação dessas facções com o poder público envolve decisões mais centralizadas
Luís Flávio Sapori – Sim, isso acontece. O que não sabemos ainda é em que medida a vinculação dessas facções com o poder público envolve decisões mais centralizadas. Isso pode envolver decisões de criminosos, de traficantes da ponta do varejo, que atuam numa certa cidade, podem envolver uma decisão muito local. Mas, de qualquer maneira, o PCC dá sinais de que já tem uma estrutura de comando relativamente verticalizada, com uma linha de transmissão de informação do comando para a linha de ponta de uma forma relativamente ágil. Quando isso acontece, estamos falando em uma estrutura mais profissionalizada, quase organizacional, e aí está se aproximando da máfia.
IHU On-Line – Dada essa realidade, o que se pode esperar para os próximos anos caso nada seja feito?
Luís Flávio Sapori – Se não fizermos nada a situação vai piorar, as facções vão crescer. O exemplo do PCC tende a acontecer com as outras facções. Por outro lado, conforme as facções crescem isso pode acarretar a estabilização ou até a queda dos homicídios, porque na medida em que há uma oligopolização, ou seja, quando os traficantes do varejo passam a se filiar a facções, as decisões que eles tomam de matar ou não matar passam a depender de autorizações superiores. Então, eles não seriam mais “donos deles próprios” para administrarem somente os seus negócios, porque eles devem prestar esclarecimentos a autoridades superiores.
IHU On-Line – Isso já acontece parcialmente nos presídios, ou seja, há um acordo entre o Estado e os traficantes para reduzir o número de mortes. Mas, de outro lado, quais as implicações dessa aposta?
Luís Flávio Sapori – Sim, isso foi o que aconteceu em São Paulo em alguma medida. Mas isso não é bom, porque significa que o crime organizado vai se expandir, que a corrupção de policiais, juízes e promotores vai aumentar. Significa ainda cada vez mais sofisticação nos roubos, que passam a ser fundamentais para gerar dinheiro e capital de giro para o tráfico de drogas. Os roubos cinematográficos a que assistimos hoje, como aquele realizado pelo PCC no Paraguai, tendem a acontecer com mais frequência. Além disso, significaria o enfraquecimento do poder público.
O desafio é o fortalecimento do Estado de Direito: o desafio para a próxima década é efetivamente priorizar a segurança pública. O governo federal e os governadores precisam tomar uma decisão, precisam de um grande pacto nacional pela segurança pública; nenhum governador sozinho vai conseguir mudar essa situação.
IHU On-Line - E isso implicaria que tipo de mudança nos presídios especificamente?
Luís Flávio Sapori – Significaria, primeiro, investir nos presídios para melhorar a qualidade dos serviços prestados: tem que dar dignidade ao prédio, ao espaço físico; tem que investir na capacitação dos agentes penitenciários, dar armamento adequado a eles, equipamentos de segurança, capacitá-los; tem que definir protocolos de segurança, porque os agentes precisam saber como trabalhar em situações adversas; também tem que investir em equipamento como bloqueadores de celulares — é inadmissível que boa parte dos presídios brasileiros não tenha esses bloqueadores de celulares. Ou seja, é preciso administrar o sistema prisional da maneira mais básica possível, tirando o controle que os presos têm hoje do sistema prisional. Por isso é fundamental investir na construção de novas unidades. Um presídio como o de Porto Alegre [Presídio Central] é inadministrável. Não tem como recuperar aquela unidade, tem que desativá-la e transformá-la em pequenas novas unidades. Esse caso de Porto Alegre é sintomático, e em outras cidades brasileiras essa situação também é comum. Tem que ser elaborado um Plano Nacional de Profissionalização do Sistema Prisional, com investimentos diversos em várias frentes ao mesmo tempo. É preciso vagas, qualificação, equipamentos de segurança, melhora dos serviços que se oferece ao preso.
IHU On-Line – No início do ano, por conta da rebelião no presídio do Rio Grande do Norte, muitos especialistas mencionaram as penitenciárias do Espírito Santo como exemplos de boas penitenciárias. Aquele é um modelo adequado ou se fez muita propaganda à época?
Luís Flávio Sapori – Dois estados que fizeram mais ou menos o dever de casa e que estão enfrentando menos crises são Minas Gerais e o Espírito Santo. São Paulo padece do problema do PCC, mas seu sistema prisional não é ruim. Mas Minas Gerais e o Espírito Santo, nos últimos dez anos, fizeram investimentos justamente nessas perspectivas que eu mencionei, de forma técnica, tirando presos que estavam em delegacias — muitos estados brasileiros ainda têm carceragem em delegacias e ainda existe muito policial cuidador de preso. Isso tem que acabar. É preciso qualificar equipes de agentes, assessores jurídicos, equipes médicas e de educação dos presídios, tem que oferecer mais oportunidade de trabalho ao preso, tem que fazer parceria com empresas. Minas Gerais e o Espírito Santo fizeram isso. Não é nada maravilhoso, mas são os melhores sistemas penitenciários que existem no país.
O sistema penitenciário do Rio Grande do Sul era modelo até dez anos atrás, era referência brasileira, mas depois se deteriorou. Os governadores pararam de investir nos presídios em função das questões fiscais do estado, e aí deu no que deu. O que era bem gerenciado, tecnicamente gerenciado, referência de gestão para o Brasil afora, agora é palco de desmandos e de superlotações de facções.
IHU On-Line - Muitos defendem a privatização dos presídios. Isso seria uma saída ou que outros modelos seriam eficientes?
Luís Flávio Sapori – Eu não gosto da privatização pura e simples, como os americanos fazem ao entregarem o presídio para uma empresa e deixá-la administrar. Prefiro o modelo inglês, que é baseado na perspectiva da parceria público-privada, que é diferente: não se trata de entregar o presídio para o empresário ou para a empresa para que ela possa lucrar da maneira que bem entender. A parceria público-privada prisional é um modelo de privatização lastreado num contrato muito sofisticado de parceria do poder público com a empresa que prestará o serviço. Primeiro, é a empresa que tem de construir a prisão, e é ela que administra a prisão em alguma medida. O poder público pode até colocar os agentes armados nas guaritas, mas os agentes internos de saúde, educação e assistência são pagos pela empresa gestora. Ela ganha dinheiro pelas vagas que oferece, e não pelo número de presos. Assim, a empresa não vai ganhar mais ou menos se o presídio estiver superlotado ou não. O contrato é definido pelo número de vagas e ela é remunerada mensalmente com um valor máximo a partir do número de vagas oferecido. Para tanto, ela tem que cumprir uma série de indicadores de qualidade e é isso que me parece interessante: se ela não atingir os parâmetros de excelência dos indicadores, a remuneração vai baixando e a lucratividade dela diminui.
Esse modelo inglês foi implantado no Brasil apenas no Complexo de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais, onde existem dois mil presos, com três unidades, duas de regime fechado e uma de regime semiaberto. Eu tenho acompanhado esse modelo mais de perto e faço a avaliação de que ele funciona bem, porque a qualidade do serviço prestado é inigualavelmente melhor do que qualquer outra unidade pública.
IHU On-Line – E nesse modelo há maior probabilidade de reduzir o surgimento de facções?
Luís Flávio Sapori – Sim. Não tem como surgir facção nesse modelo, porque a facção só surge quando o preso está abandonado. O Estado não dá sabonete, as celas dos presos são imundas, os agentes muitas vezes são corruptos e violentos, os presos se matam o tempo todo, o estupro é disseminado e, portanto, as facções nascem para garantir a proteção do preso. Na medida em que melhor se administra o presídio e se cumpre a lei de execução penal e quanto mais dignidade se dá ao preso, não há como surgir facções criminosas, porque o controle é rígido. Isso é melhor do que o sistema convencional.
IHU On-Line – Ao longo da entrevista o senhor mencionou que as UPPs tiveram sucesso enquanto funcionaram. O que aconteceu para que elas deixassem de ser efetivas? A ineficiência está relacionada à crise fiscal do Rio de Janeiro?
Luís Flávio Sapori – Entendo que a UPP é um projeto que apresentou sucesso e várias pesquisas mostram que houve resultados expressivos não somente em relação à diminuição de roubos e homicídios nas comunidades, mas melhorou a qualidade de vida dos moradores, a percepção deles em relação à segurança, houve maior dinamismo econômico, ou seja, houve ganhos sociais, econômicos e de segurança. Diria que cientificamente não há como negar o sucesso da UPP.
Entendo que a decadência decorre da crise fiscal porque o Rio de Janeiro faliu nos últimos quatro anos e essa falência tem deteriorado todos os serviços sociais do estado, porque o que acontece com a UPP está acontecendo nos hospitais públicos, nas escolas públicas e nos serviços providos pelo governo estadual. Na prática isso significa que os policiais estão desmotivados, porque os salários estão muito atrasados, e, quando se perde motivação, a qualidade do serviço diminui. Por fim, a ausência de uma referência no governo do estado e a saída do secretário José Beltrame significaram uma perda de referência da UPP.
A gestão da UPP se deteriorou e a polícia militar do Rio de Janeiro perdeu o controle da situação. Tanto que o nível de confrontos e de mortes entre policiais e traficantes nas favelas voltou a crescer nos últimos anos, o que estava em declínio: nos últimos três anos os níveis de homicídios no Rio de Janeiro estavam caindo de forma impressionante se comparados aos últimos vinte anos. Portanto, não diria que há um fracasso do modelo, mas o modelo está fracassando por conta da crise fiscal. Nesse sentido, a perspectiva do confronto voltou a ser adotada. Eu lamentaria completamente se decretassem o fim das UPPs. É preciso retomá-la fazendo as correções dos erros, porque a lógica básica da UPP é a da polícia comunitária no bairro, tendo uma relação com o morador, o que é central.
IHU On-Line – Nas últimas semanas, a ação do prefeito João Doria na Cracolândia foi muito comentada na internet. Qual sua avaliação do modo como ele fez a intervenção no local?
Luís Flávio Sapori – O prefeito Doria paga o preço pela excessiva exposição dele nas redes sociais. Além do mais, ele errou ao achar que com essa ação a Cracolândia tinha acabado, ou seja, ele está se precipitando ao tomar essas medidas, porque ele quer resultados rápidos. Isso é um problema, porque os resultados não são o que ele está dizendo que são. Entretanto, eu diria que ele está certo na metodologia, na virtude e na coragem que teve de enfrentar o problema: ele combinou ação policial num primeiro momento e atuação da área social, médica e da saúde pública num segundo momento.
Num primeiro momento — e essa ação é meritória — era preciso desmontar a Cracolândia do modo como ela existe em São Paulo, porque aquilo é um espaço urbano completamente deteriorado, desumano; aquilo é para mim a expressão máxima de agressão dos direitos humanos. Manter a Cracolândia é negar a humanidade das pessoas que viviam ali. Portanto, eu não vejo a ação do prefeito como higienização. Aliás, esse discurso da higienização é perverso, perigoso, é um discurso de agressão aos direitos humanos, ou seja, é um discurso que está negando a humanidade do dependente químico. A operação de desmontagem da Cracolândia foi um sucesso: prenderam traficantes, apreenderam drogas e armas de fogo e os usuários não foram presos, nem houve massacre de usuários como alguns estão dizendo. A lógica foi desmontar o tráfico e espalhar os usuários, e era inevitável que grupos de usuários fossem se espalhar pelos quarteirões vizinhos.
Em segundo lugar, o prefeito está certo em querer reurbanizar aquela região; tem que fechar aqueles hotéis que estavam servindo para serviços diversos, como a prostituição e venda de drogas, porque o tráfico dominou aquela região.
O desafio agora não é mais policial, e a abordagem deve se dar do modo como eles começaram a fazer, ou seja, oferecendo assistência aos dependentes químicos. Doria está se conscientizando que esse processo não será rápido, e é um erro ele achar que poderá fazer internação de usuários à força. Ele errou ao solicitar uma autorização judicial para a prefeitura determinar quem seria compulsoriamente ou não internado. Tem que fazer as equipes multidisciplinares abordarem os usuários e oferecerem tratamento àqueles que querem recebê-lo, e esse tem que ser um processo diário, ininterruptamente. É fundamental essa articulação da prefeitura com o governo estadual a partir do Projeto Recomeço, que é coordenado pelo professor Ronaldo Laranjeira. Esse parece ser um programa muito melhor do que o programa anterior, do governo Haddad, porque o Projeto de Braços Abertos visava exclusivamente à redução de danos e era incapaz de resolver o problema da Cracolândia.
Agora, o Doria tem que se conter na pressa, na ansiedade, deixar que as áreas da saúde trabalhem, e parar de fazer discurso demagógico, porque a Cracolândia está espalhada e não vai acabar tão facilmente. Mas ao mesmo tempo ele tem o grande mérito de ter acabado com o maior foco de agressão aos direitos da cidade de São Paulo. Aquilo ali era um acinte a qualquer cidadão que defende os direitos humanos.
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A racionalidade econômica sustenta o tráfico de drogas de Norte a Sul do Brasil. Entrevista especial com Luís Flávio Sapori - Instituto Humanitas Unisinos - IHU