Por: Patricia Facchin | 22 Novembro 2018
Nem o “antipetismo” nem a “demanda social por um governo de direita” explicam totalmente a eleição de Bolsonaro. Para entender o resultado das eleições presidenciais é preciso olhar para um “grupo de pessoas que aderiu à campanha de Bolsonaro, mas não aderiu ideologicamente à agenda dele”, e não por acaso possivelmente esse é o mesmo grupo que votou em Lula em 2002 e 2006, diz o sociólogo Roberto Dutra à IHU On-Line. “A eleição de um governo de direita foi se tornando cada vez mais provável na medida em que a esquerda foi ficando muito tempo no poder” e “não conseguiu convencer a classe média a usar os serviços públicos oferecidos para os pobres, a não ser quando a classe média, por razões econômicas, é obrigada a usar esses serviços. Então, uma parte do descontentamento não é ideológica”, pondera.
Outro fator que explica a ascensão da direita nesta eleição foi a transformação da “gramática política” em uma “gramática da guerra cultural”, na qual valores morais ocuparam o centro da campanha eleitoral em detrimento de temas como economia e segurança pública. No entanto, nessa guerra cultural, assegura, “a esquerda sempre vai perder, porque ela entra nessa guerra com um discurso fragmentado, com um discurso de minorias, mas a política identitária da direita é a das maiorias”. A adesão da esquerda a essa agenda, ressalta, “gerou muita antipatia entre os setores pobres, entre os evangélicos, porque a ideia que fica é a de que a política identitária é uma política de privilégios. Isso acontece quando uma pessoa pobre, branca, desempregada, que apanha da polícia percebe que os problemas que ela tem são problemas em comum com os dos negros, mas esses problemas universais são tematizados pela política apenas como sendo um problema dos negros”.
Ao avaliar o cenário pós-eleitoral no Brasil, tema de sua palestra no Instituto Humanitas Unisinos – IHU durante o “4º Ciclo de Estudos A reinvenção da política no Brasil contemporâneo. Limites e perspectivas”, Dutra pontua que a eleição de Bolsonaro representa um “aprofundamento” de mudanças estruturais no sistema político e de práticas adotadas em governos anteriores, como a “despolitização da economia” à medida que a gestão econômica é tratada como um assunto estritamente técnico e não político, a “politização da religião”, com o crescimento de atores religiosos na política, e uma “aposta muito grande no direito penal”, com o crescimento do punitivismo.
Na entrevista a seguir, concedida pessoalmente, o sociólogo também reflete sobre a demanda social por mudança na política, manifestada pelos eleitores na última eleição. Na avaliação dele, o discurso da democracia participativa é “ambíguo” e contraditório, porque “a grande massa da população, a ‘maioria silenciosa’, não quer mais participação; isso é uma ilusão da esquerda. Trata-se da famosa ilusão republicana de que a participação é um valor. Isso é absolutizar o valor da democracia a ponto de achar que tudo tem que ser democrático e que as pessoas vão gastar a maior parte do seu tempo com a política, com a democracia. Isso não é nada realista”. E dispara: “A ideia de que a democracia é vista sempre como a solução dos problemas de todo o mundo é fantasiosa”.
Nessa perspectiva, Roberto Dutra propõe que se rompa com a dicotomia democracia versus autocracia, que caracteriza uma parte significativa da análise política. A ruptura é necessária, esclarece, porque a política moderna é “bipolar” e “opera entre democracia e autocracia”. Da mesma forma, argumenta, “a política moderna não pode ser reduzida à democracia. Não podemos transformar o ideal normativo da democracia em valor universal”, porque a “realidade social é multivalorativa”.
O sociólogo também comenta a hipermoralização da política pela esquerda e pela direita nos últimos anos. “Na direita encontramos isso claramente no processo de demonização da política e isso se manifesta numa negação moral da esquerda baseada na ideia de que a esquerda é corrupta e a direita é honesta”. Já à esquerda, explica, a hipermoralização se expressa a partir da politização de todas as esferas da vida humana. “Existem, na esfera privada, questões que são afetadas pela política. Não estou dizendo que temos que naturalizar a desigualdade de gênero, mas ao politizar a relação íntima das pessoas e transformá-las — como é feito nos movimentos sociais e sobretudo nas universidades —, não estamos fazendo política. Não estamos fazendo política criando códigos de relações interpessoais que vão desde a linguagem até o humor, mas destruindo a lógica própria de determinadas esferas”, afirma.
Roberto Dutra | Foto: João Vitor Santos – IHU
Roberto Dutra Torres Junior é doutor em Sociologia pela Humboldt Universität zu Berlin e mestre em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF. É professor da UENF e ex-diretor do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – Ipea.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Que relações foram estabelecidas entre a política e a sociedade nesta eleição?
Roberto Dutra — Há um aprofundamento de relações que já vinham se desenhando anteriormente. Há um processo de despolitização da economia: cada vez mais a gestão econômica está sendo considerada um assunto técnico, uma questão não política. O governo Bolsonaro demonstra que essa tendência vai se fortalecer com a escolha do ministro da Economia; isso significa uma tendência de retração da política numa das esferas mais importantes. Por outro lado, há um processo de politização da religião: a tendência, que já era crescente no Legislativo, está passando para o Executivo. Isso foi visto há dois anos com a eleição de Crivella e se repete com a eleição de Bolsonaro.
Também existe um crescimento do punitivismo e uma aposta muito grande no direito penal. A invasão do direito na política e nas relações administrativas caracteriza o uso do direito pela política. O direito penal não opera como direito, mas como instrumento político de determinados grupos na política em favor de uns e em desfavor de outros. Essa mudança se caracterizou pela ascensão da Operação Lava Jato, mas o uso do direito na política é um fenômeno estrutural do Brasil.
Um último elemento é o fortalecimento dos grupos sociais que agora constituem o suporte social desse novo governo: a classe média, que parecia se sentir não representada, sobretudo pelos governos do PT, agora parece se sentir representada. Com isso, a própria sociedade, no sentido dos segmentos sociais, tem uma característica nova, considerando que novos atores sociais começam a se mobilizar e a acompanhar esse governo.
IHU On-Line — Que mudanças no sistema político é possível esperar com a eleição de Bolsonaro?
Roberto Dutra — Estão acontecendo mudanças estruturais no sistema político e elas estão diretamente influenciadas pelas novas relações entre política, religião e direito. Por exemplo, a força dos atores religiosos na política, a configuração de um partido com uma característica religiosa como é o PSL, é uma mudança importante dentro do sistema político. Os atores sociais que se organizaram e agora têm representação no Executivo e no Legislativo são outros, ou seja, a direita brasileira está organizada num partido político e tem características que não existem em outros partidos. Essa é uma primeira mudança relacionada ao uso da religião na política.
Há outras mudanças específicas na política, como o uso das redes sociais. Isso representa uma mudança social importante e afeta outras esferas. Essa mudança provocou uma reconfiguração politicamente relevante na comunicação de massas. O uso das redes sociais já existia na política, mas não como comunicação de massa politicamente decisiva para as eleições. Essa é uma mudança estrutural. Agora nos cabe esperar e observar como atores que não utilizaram esse mecanismo com tanta vantagem vão reagir. Com a mudança provocada pela ascensão das redes sociais como principal instrumento de comunicação política, os políticos não saem mais de cena depois das eleições. Por exemplo, Ciro Gomes perdeu as eleições, mas continua atuando nas redes sociais para manter um capital político que é especificamente construído nesse meio.
Bolsonaro está atuando como candidato há quatro anos nas redes sociais. Umas das possíveis mudanças no comportamento dos atores políticos é justamente essa presença quase que ostensiva nas redes o tempo todo. Diante desse cenário, como será feito o financiamento de campanha daqui para frente? Então, a relação entre dinheiro e política também ganha um novo contorno.
Outra mudança importante de enfatizar é que os setores médios agora passaram a se sentir representados, pelo menos por enquanto.
IHU On-Line — Por que o campo religioso representa uma mudança estrutural no sistema político, uma vez que os evangélicos já atuam na política há bastante tempo?
Roberto Dutra — Por causa do protagonismo desse setor no Executivo federal. Agora esse setor não atua mais só no Legislativo e isso representa algo em termos de chance de poder. Por exemplo, quantos ministros Bolsonaro poderá indicar para o Supremo em quatro anos? Pelo menos dois ministros estão na lista para se aposentar.
Os evangélicos se tornaram um grupo majoritário na sociedade e não apenas um grupo que atua no Legislativo defendendo seus interesses. A chegada de um evangélico no Executivo federal não representa uma ruptura com uma tendência de mudança estrutural que havia antes, mas sim um aprofundamento num outro patamar. A grande dificuldade dos evangélicos no Brasil foi sair do gueto na política: eles sofriam uma resistência muito grande dos católicos, e sempre houve um medo muito grande de que os evangélicos chegassem ao poder e criassem uma política desfavorável. Esse medo ainda existe, mas a Igreja Católica não ofereceu uma resistência a isso nessas eleições.
IHU On-Line — A ascensão dos evangélicos na política é positiva ou negativa?
Roberto Dutra — Não vejo problema nisso. Na democracia, antes mesmo de se ter preferências, há uma preocupação com a qualidade da própria democracia. Isto é, antes de se dar preferência a um ou outro grupo, é preciso considerar se os grupos da sociedade que estão descontentes com a representação política podem diminuir esse descontentamento chegando ao poder. É positivo que os evangélicos se sintam representados no governo Bolsonaro, porque agora eles não podem mais colocar o seu descontentamento na conta da falta de representação.
O que pode ser negativo na relação entre política e religião é o risco que o processo de politização traz para a religião, porque o campo religioso é muito dinâmico e existem atores centrais, como Edir Macedo, Silas Malafaia, Marcos Feliciano e o pastor Valdemiro, que controlam grandes igrejas. Apesar disso, o campo religioso do pentecostalismo brasileiro é muito mais complexo: existe, por exemplo, o fenômeno das igrejas locais. Recentemente publiquei um artigo sobre a Teologia da Prosperidade no norte fluminense, que explica como uma igreja local — a Igreja Semear — se tornou uma igreja nacional, inclusive com presença em Miami, nos Estados Unidos.
Há um mal-estar entre os evangélicos quando se usa a religião como recurso para a política. Os conservadores evangélicos assumem um risco muito grande quando se colocam de modo tão explícito na política, apoiando um candidato à presidência. Isso nunca foi feito antes; foi uma aposta e toda aposta alta tem riscos altos. Por isso, acredito num potencial de novas lideranças religiosas surgindo no mercado, novas organizações que possam angariar fiéis ou novas lideranças dentro das organizações já existentes. Por exemplo, a Assembleia de Deus é muito rachada: Silas Malafaia lidera um segmento da Assembleia. Então, é possível que surjam lideranças progressistas ou com perfil de certo modo progressista dentro desse segmento.
IHU On-Line — O que explica a eleição de Bolsonaro e a ascensão da direita na última eleição?
Roberto Dutra — Inegavelmente a campanha de Bolsonaro representa a ascensão da direita no Brasil. É importante segmentarmos o eleitorado no Brasil, pois existem, pelo menos, dois grupos no eleitorado de Bolsonaro: um eleitor militante que é de direita e fechado a qualquer argumento contrário, e outro grupo de pessoas que aderiu à campanha de Bolsonaro, mas não aderiu ideologicamente à agenda dele. Do mesmo modo, muitos que votaram em Lula no passado não aderiram ideologicamente à agenda da esquerda; não por acaso, esse é o mesmo grupo que votou em Bolsonaro.
A demanda social por um governo de direita não explica totalmente a eleição de Bolsonaro, assim como o antipetismo por si só também não explica. Existe uma parte do antipetismo que é reacionarismo puro, construído pelos meios de comunicação de massa, mas existe uma parte do antipetismo que vem da classe média, dos “batalhadores” — usando a terminologia do Jessé de Souza.
A classe média depende muito dos serviços públicos. Todos os governos social-democratas, em qualquer lugar do mundo, conseguiram o apoio da classe média quando ofereceram serviços públicos de qualidade, e isso o PT não fez. O partido não conseguiu convencer a classe média a usar os serviços públicos oferecidos para os pobres, a não ser quando a classe média, por razões econômicas, é obrigada a usar esses serviços. Então, uma parte do descontentamento não é ideológica.
Além disso, sempre que um grupo fica no poder por um longo tempo, a tendência é que haja um desgaste. A eleição de um governo de direita foi se tornando cada vez mais provável na medida em que a esquerda foi ficando muito tempo no poder.
Outro fator tem a ver com valores, com a dimensão moral: na medida em que a gramática política foi se transformando na gramática da guerra cultural, que a economia foi sendo deslocada do centro do debate político e a segurança pública foi sendo reduzida a um problema de guerra cultural, a esquerda foi perdendo espaço. Na guerra cultural a esquerda sempre vai perder, porque ela entra nessa guerra com um discurso fragmentado, com um discurso de minorias, mas a política identitária da direita é a das maiorias. A esquerda começou a se afastar das maiorias na medida em que se deixou perfilar como identitária.
Até o PT, que sempre foi um partido das lutas sindicais, acabou sendo enquadrado em um rótulo de luta identitária. Isso não gerou nenhum tipo de empatia, pelo contrário, gerou muita antipatia entre os setores pobres, entre os evangélicos, porque a ideia que fica é a de que a política identitária é uma política de privilégios. Isso acontece quando uma pessoa pobre, branca, desempregada, que apanha da polícia percebe que os problemas que ela tem são problemas em comum com os dos negros, mas esses problemas universais são tematizados pela política apenas como sendo um problema dos negros.
IHU On-Line — O que a guerra cultural a que assistimos na última eleição expressa sobre a política e sobre o modo de vida das pessoas?
Roberto Dutra — Inicialmente, a guerra cultural é uma guerra de elites políticas, e o sucesso dessa guerra depende de conseguir a adesão da massa. A política constrói as coletividades que são politicamente relevantes a partir do que a sociedade fornece de material. Entre esses materiais está a religião, que tem uma gramática moral complexa: os evangélicos são diversos, predominantemente conservadores, mas há entre eles uma adesão muito grande às políticas sociais. Os evangélicos nunca foram neoliberais e nunca foram contra políticas sociais, assim como os católicos não são. Eles não se tornaram contra a política social nesta eleição, a questão é que a política social não foi tema de debate.
Por exemplo, os evangélicos votaram no Lula, e foram maioria nas eleições de 2002 e 2006. Votaram também na Dilma em 2010, mas naquela ocasião havia a campanha do Serra contra o aborto. A visão de mundo dos evangélicos, assim como a de qualquer setor da sociedade, é relativamente aberta, politicamente manipulável e não está dado que os evangélicos ficarão a maior parte do tempo preocupados com a opção sexual das pessoas, com o uso de drogas ou com questões morais.
Na guerra cultural desta eleição, Bolsonaro conseguiu vencer; a esquerda, não. Mas essa guerra cultural é insustentável. Se a estratégia de Bolsonaro for a de se legitimar em um discurso cotidiano de guerra cultural, isso terá um prazo de validade e irá saturar. Em algum momento as pessoas vão perceber que a economia e a segurança não estão melhorando. Agora, se Bolsonaro resolver os problemas econômicos e de segurança, ele poderá abdicar do discurso da guerra cultural. Não acredito que ela seja suficiente para, durante quatro anos, esconder e mascarar problemas econômicos, de segurança e de inclusão no sistema de ensino etc., que constituem a maior preocupação das pessoas pobres.
Em todas as pesquisas a respeito de quais são as prioridades do país, em nenhuma delas aparece como prioridade combater o “kit gay” na escola. Na vida cotidiana isso não se coloca como agenda prioritária. Por isso, não acredito que a guerra cultural tenha futuro no Brasil. Ela pode levar a um impasse se o governo não for capaz de deslocar o discurso, e isso depende sobretudo de a oposição ter capacidade de deslocar o debate, de falar de segurança, de tirar essa pauta de costumes do centro. Isso não significa que essas questões não devam ser tematizadas, mas o que deve estar no centro do debate é o que visa a articulação das maiorias. Será um desastre se ficarmos quatro anos debatendo questões identitárias enquanto as políticas econômica e de segurança forem decididas sem nenhum debate público em torno delas. O maior desafio dos progressistas hoje é encerrar essa guerra cultural que todos nós estamos perdendo.
IHU On-Line — Que relações o senhor estabelece entre democracia e autoritarismo, entendido como regime autocrático, nas sociedades atuais? Por que o autoritarismo faz parte da democracia, na sua avaliação?
Roberto Dutra — O discurso público e acadêmico sobre autoritarismo e democracia precisa ser revisto. O autoritarismo não tem que ser visto mais como um fato que não cabe no presente, como se fosse algo do passado.
A disputa entre estes dois regimes, democracia e autoritarismo — utilizo autocracia como sinônimo de autoritarismo —, se coloca como a disputa mais importante da política moderna contemporânea. Até o fim da União Soviética, todos os atores olhavam para o mundo político e perguntavam se ele era socialista ou capitalista. Com o fim do socialismo o sistema político criou uma nova semântica, uma nova cultura, uma nova forma de observar a si mesmo: os atores observam a política distinguindo-a entre democracia e autoritarismo. O problema é que o autoritarismo é visto como a ausência de democracia apenas, e não como um regime que tem características próprias e modernas.
Na minha análise proponho uma abordagem mutinível. No nível acima é preciso considerar a política como um sistema global, diferenciado internamente em Estados-Nações. A pergunta que se coloca do ponto de vista global é a seguinte: no seu nível global, a política é democrática ou autocrática? Ela não é democrática; é muito mais autocrática. Não existe a ideia de inclusão universal num Estado global simplesmente porque não existe um Estado global. Tudo o que a modernidade produziu em termos de democracia até hoje nunca alcançou o nível global em termos institucionais. O alcance foi apenas na semântica com a ideia de direitos humanos. Portanto, a política moderna nunca foi plenamente democrática no nível global. No nível abaixo, o nível subnacional — esse nível depende da configuração histórica de cada país —, a exemplo da China, as pesquisas demonstram que há competição eleitoral real e disputa de elites nas eleições locais, nas vilas.
Isso demonstra que existe, por um lado, em países democráticos, enclaves autoritários, decisões coletivas que não são tomadas por procedimentos democráticos. Exemplos disso são os militares, os bancos centrais tecnocráticos, a despolitização da política econômica — esses são enclaves autoritários que tiram da política a prerrogativa de decidir sobre questões econômicas. Por outro lado, em países autoritários como a China existem elementos de democracia, como parlamentos e eleições locais.
Essa análise que proponho a partir da teoria sociológica sistêmica nos permite um olhar mais nuançado sobre os processos de democratização ou de autocracia. Entre a possibilidade de retirar o rótulo de democrático e colocar o rótulo de autocrático há um leque de gradações e de avanço dos enclaves autocráticos. Não precisamos, por exemplo, que haja um golpe de Estado no governo Bolsonaro para que exista um enclave autocrático. Esse enclave autocrático é representado pela própria figura de Sérgio Moro no Ministério da Justiça. Ele terá poderes discricionários sobre os próprios agentes de Estado através do controle da Controladoria Geral da União - CGU e terá o controle das operações financeiras. Ou seja, o Estado tem dentro de si um elemento autocrático que pode ser um fator de intimidação dos procedimentos democráticos, como, por exemplo, do parlamento.
A proposta da teoria sistêmica é não tratar democracia e autocracia como dois polos que não convivem. Trata-se de uma releitura do que é a modernidade política: a democracia nunca pode ser a única forma de tomada de decisões políticas — existe uma série de decisões, inclusive com o apoio da coletividade, que são tomadas levando em conta o critério da eficiência.
Vejo a autocracia como um elemento analítico e prático positivo: analítico porque vemos a realidade na sua complexidade, nua e crua; e prático porque isso nos coloca diante de uma situação em que a luta contra a autocracia não é a luta contra algo que pode acontecer de uma hora para outra, mas a luta contra algo com o qual já convivemos. Isto é, a autocracia não é um monstro da modernidade política totalmente estranho à democracia. Ao contrário, é um elemento com o qual nós convivemos nos regimes democráticos.
Não sugiro naturalizar a autocracia, mas ter uma visão realista sobre ela. Se ela existe na política, é porque tem legitimidade. Ela faz parte da política moderna que é bipolar, que opera entre democracia e autocracia. A política moderna não pode ser reduzida à democracia. Não podemos transformar o ideal normativo da democracia em valor universal. A nossa realidade social é multivalorativa: existe um pluralismo de valores, e o valor da democracia nem sempre é o valor que as maiorias preferem. Às vezes a maioria prefere um regime autoritário, mas que seja eficiente para tomar decisões. Isso faz parte da realidade política.
IHU On-Line — É por essa razão que afirma a necessidade de relativizar a democracia? O que entende por relativizar a democracia?
Roberto Dutra — A política de relativizar a democracia significa entender que a democracia é uma das soluções para o problema político da função da política, que é a construção de decisões coletivas. Política é construir decisões coletivas, seja em nível local ou nacional. A democracia é a forma mais propagada e mais legitimada para construir decisões vinculantes coletivamente. A política existe na sociedade e nós precisamos de política, mas não necessariamente de política democrática, porque a sociedade precisa constantemente, na medida em que tem conflitos, produzir decisões que sejam capazes de apaziguar os conflitos e vincular a coletividade para além dos conflitos. Isso não significa produzir consenso absoluto, mas consensos parciais.
Por algumas razões, o autoritarismo, ou seja, os regimes autocráticos se mostram mais eficientes do que a democracia por duas razões: uma é material e outra é temporal. Países podem preferir alocar sua preferência em valores como eficiência econômica e por isso apoiar por algum tempo regimes autocráticos que garantam o crescimento econômico, a inclusão econômica e a distribuição. O Chile de Pinochet representa isso, a Arábia Saudita e a China representam isso de algum modo, e o regime militar brasileiro se legitimou assim também em algum tempo. Outro aspecto que legitima e torna os regimes autoritários mais eficientes do ponto de vista dos atores é a questão temporal, porque a democracia tem uma temporalidade mais alargada do ponto de vista das suas decisões. Veja, por exemplo, que o parlamento atrasa decisões de quem tem pressa.
Então, a autocracia tem um elemento de urgência, requer a tomada de decisões rápidas. A ideia de que a criminalidade e a corrupção precisam ser combatidas com urgência coloca a democracia em xeque. A democracia passa a ser vista como um sistema lento. As pessoas podem muito bem se apegar às suas vidas cotidianas e a outras esferas da vida que são muito mais relevantes cotidianamente para elas do que a própria democracia, como emprego e segurança pública. Não é à toa que o aumento da criminalidade é o principal fator apontado pelos grupos sociais que têm retirado seu apoio à democracia. As pesquisas perguntam em que situações as pessoas apoiariam um golpe de Estado, e evidenciam que o aumento da criminalidade é o principal fator que as levaria a apoiarem um golpe.
A ideia de que a democracia é vista sempre como a solução dos problemas de todo o mundo é fantasiosa. Relativizar a democracia é ser mais etnógrafo no sentido da política. Basta ver qual é o sentido que as pessoas atribuem à democracia e qual é o sentido que atribuem à autocracia, que nunca é vendida como tal, mas sim como um governo forte, um governo positivo.
IHU On-Line — Como a autocracia se expressa na democracia brasileira? Pode dar alguns exemplos?
Roberto Dutra — Um grande exemplo de enclave autocrático na democracia durante a gestão petista foi a Copa do Mundo. Esse é o exemplo mais claro porque envolveu o Estado de Exceção na rua. A legislação que a Fifa exigiu para realizar a Copa do Mundo foi implantada violando todos os procedimentos democráticos. Outro exemplo são as leis que permitem e legitimam os enclaves militares do Estado.
O governo petista teve, principalmente no governo Dilma, elementos autocráticos. No governo Lula há exemplos de autocracia, por exemplo, na indicação do procurador-geral da República à época. Ali foi um episódio em que se confundiu a ideia de democracia com corporativismo, mas se promoveu a autocracia, pois o procurador-geral da República não foi indicado pelo presidente da República durante o governo Lula. O governo Temer foi quem rompeu com isso, colocando o argumento correto: ele disse que cabe ao presidente da República indicar o procurador-geral da República, porque o procurador é um ministro e, como cabe ao presidente indicar os ministros, também cabe ao presidente indicar o procurador. Ele tem autorização para isso, a qual é legitimada pelo voto popular. Mas, para Lula, a reunião do Sindicato dos Procuradores autorizava o fortalecimento do aparato punitivo do Estado. Tudo isso aconteceu em anos petistas. Portanto, os enclaves autocráticos não são uma novidade do governo Bolsonaro.
IHU On-Line — A construção de Belo Monte também é um exemplo de autocracia?
Roberto Dutra — Sim. Tanto Belo Monte quanto Porto do Açu, no Rio de Janeiro. O Porto do Açu foi uma iniciativa estadual, mas que se articulou muito bem: ninguém vai esquecer a trinca Lula, Sérgio Cabral e Eike Batista, que criou uma zona de negócios especial, o que era uma autocracia pura e simples. Trabalhadores rurais foram expulsos sumariamente de suas terras e a Polícia Militar atuou como braço do empresariado.
Se chegássemos ao Porto do Açu anos atrás, no início do processo de ocupação territorial, a impressão que se tinha era a de que Marx tinha toda a razão em dizer que o Estado era um comitê executivo da burguesia; a autocracia econômica não deixa de ser isso. Nessas grandes obras a democracia encontra seus paradoxos.
A própria autonomia do Banco Central e a sacralização dessa ideia, o compromisso com os juros e não com a geração de emprego, são exemplos de autocracia. Quem não lembra do Lula reclamando do Ministério Público e do licenciamento ambiental, isto é, da lentidão dos procedimentos democráticos? O que ele estava dizendo era que precisávamos de um pouco mais de autocracia nesses processos.
IHU On-Line — A autocracia é positiva ou negativa numa democracia?
Roberto Dutra — Na minha opinião é positiva, pois não podemos absolutizar o valor da democracia nem na política. Existem decisões políticas que, legitimamente, com o apoio da sociedade, são tomadas de maneira rápida e com eficiência técnica.
IHU On-Line — Nem mesmo quando as consequências podem ser negativas, como nos casos citados acima?
Roberto Dutra — Aí está o problema. No caso do Porto do Açu, as consequências são negativas porque camponeses foram afetados e detestavam esse empreendimento, mas a população local — e isso é um paradoxo — apoia o empreendimento. Se fizermos uma pesquisa no município de São João da Barra, perguntando se as pessoas são contra ou a favor do Porto, a maioria vai responder que apoia o empreendimento, assim como a maioria da população apoiou as medidas dos governos militares.
Se quisermos viver em um país democrático não podemos aceitar que os enclaves autoritários deixem de ser enclaves. Eles têm que ser diminuídos na medida do possível. Quero viver em um país democrático; a minha preferência entre a democracia e a autocracia é pela democracia. Agora, se quisermos viver em um país democrático, não podemos nos desconectar dos valores e das necessidades da ação cotidiana, da vida cotidiana: as pessoas não vivem respirando valores, elas não querem saber se a decisão foi tomada por um procedimento democrático ou não, mas estão preocupadas com o resultado da decisão. Ou seja, a política deixa de ser um fim em si mesmo e, portanto, a democracia deixa de ser um fim em si mesmo; a preocupação se desloca para o resultado.
Ver a política como meio é necessário e legítimo, porque existem problemas que a política precisa resolver, a sociedade demanda que eles sejam resolvidos e para isso precisamos desses enclaves de decisão rápida. Na minha visão não faz nenhum sentido a ideia de democratizar todos os espaços da sociedade; isso é totalitarismo.
IHU On-Line — Qual é o critério que determina se uma decisão autocrática é excessiva ou negativa?
Roberto Dutra — A autocracia é negativa quando alcança as proporções que alcançou no Brasil hoje, onde o poder central e a economia estão nas mãos de um tecnocrata que acha que não é político, que acredita que vai administrar a economia brasileira como os Chicago Boys administraram a economia chilena durante a ditadura Pinochet. Ela é extremamente negativa, sem a menor sombra de dúvidas, quando Sérgio Moro assume o Ministério da Justiça com a intenção indisfarçável de ser uma espécie de tutor da vida política, de fazer, como ele mesmo disse, no Ministério da Justiça o que fazia na Operação Lava Jato. Isso demonstra que ele não faz diferença entre política e direito.
Quando a autocracia assume o poder central — não com golpe militar, mas com presidente eleito democraticamente — e muda dois ministérios importantes, um que vai cuidar da criminalização da política, sobretudo, da oposição, e outro que vai cuidar da despolitização da economia, aí existem enclaves autocráticos extremamente prejudiciais a médio e longo prazo para a sociedade, os quais vão aprofundar a crise do sistema político. É o tipo de autocracia que já deixou de ser um enclave necessário na sociedade.
Existem decisões na política, como a política de juros, que não podem ser discutidas com o parlamento. O Estado precisa de enclaves técnicos e de uma dimensão burocrática e não democrática na própria condução dos assuntos públicos, que são democraticamente colocados na agenda. É preciso que o Estado, em algum momento da sua cadeia decisória, programe o que vai fazer na administração e deixe o corpo técnico da administração decidir uma série de questões. Portanto, não há nenhuma política pública cujas decisões sejam todas democráticas: elas sempre passam por um canal. A grande questão é quando o regime político deixa de ser capaz e flexível o bastante para captar as demandas sociais e respondê-las.
IHU On-Line — O novo governo será mais autocrático do que o anterior?
Roberto Dutra — Sim.
IHU On-Line — Quais são os sinais disso?
Roberto Dutra — Na medida em que decisões de grande impacto para a coletividade são retiradas de procedimentos democráticos, ou seja, da discussão do parlamento, e colocadas nas mãos de pessoas que se apresentam como não políticas, como representantes de uma vontade que não é aquela que o povo colocou nas urnas. Um exemplo disso é quando Sérgio Moro diz não ser político, assim como a ideia de Paulo Guedes de que ele não faz política, de que a economia é uma ciência quase exata.
O critério da autocracia é de graus: o poder da autocracia cresce na medida em que mais decisões políticas vão sendo retiradas dos procedimentos parlamentares e da própria campanha eleitoral. Bolsonaro fez uma campanha na qual deu o seguinte recado para a população: não vou discutir economia com vocês, porque economia não se discute; quem decide a economia não é o povo e não sou eu, é o Paulo Guedes.
IHU On-Line — Atitudes como essa podem ser compreendidas como o fenômeno que o senhor descreveu antes, isto é, que a sociedade não quer participar da democracia, mas quer resultados?
Roberto Dutra — Pois é. Se Paulo Guedes entregar o resultado, teremos um contexto de legitimação não de um regime autocrático, mas de um exercício autocrático do poder na área econômica com legitimação social. Espero que ele não entregue resultados positivos, porque se entregar, teremos os ingredientes ideais para a legitimação de uma tecnocracia tal como Bolsonaro deseja.
IHU On-Line — Há na sociedade um discurso muito forte por mudança. O que isso significa? Como o senhor interpreta essa demanda? Ela indica que se quer mais democracia participativa ou mais autocracia?
Roberto Dutra — O discurso “nós queremos participar mais” é ambíguo e tem muita contradição em si mesmo. Esse é um discurso da elite política progressista e da elite política de direita. Por exemplo, o MBL também fala em participação. Apesar desse discurso, a grande massa da população, a “maioria silenciosa”, não quer mais participação; isso é uma ilusão da esquerda. Trata-se da famosa ilusão republicana de que a participação é um valor. Isso é absolutizar o valor da democracia a ponto de achar que tudo tem que ser democrático e que as pessoas vão gastar a maior parte do seu tempo com a política, com a democracia. Isso não é nada realista, pois vivemos em uma sociedade complexa em que as pessoas têm que cuidar de outras coisas.
IHU On-Line — O que é o fenômeno que o senhor tem chamado de hipermoralização da política? Como ele se manifesta na esquerda e na direita?
Roberto Dutra — A hipermoralização da política é quando a gramática do jogo político, ou seja, o modo de se observar a si mesmo e o outro enquanto ator político, se dá numa perspectiva de totalidade moral; o outro é aceito ou rejeitado como um todo. O outro pode ser um indivíduo, Bolsonaro ou Lula, ou um partido, PT, MDB ou PSL. Quando as nuances se perdem, elas cedem espaço a uma performance de negação do outro ou de afirmação do outro.
Na direita encontramos isso claramente no processo de demonização da política e isso se manifesta numa negação moral da esquerda baseada na ideia de que a esquerda é corrupta e a direita é honesta. A ideia é que se a política for moralizada, como deseja Sérgio Moro, ela vai funcionar melhor. Esse processo de moralização da política, não só na direita, mas também na esquerda, ignora a lógica própria da política, que não é uma lógica estranha à moral, mas que tem sua moralidade interna, uma moralidade que os atores constroem e que, se formos olhar da perspectiva que vê Sérgio Moro, seria uma moralidade corrupta. Mas essa moralidade não deve ser vista como corrupta, porque a política só funciona assim.
Política é negociação de interesses, é conflito, mas é a possibilidade de atuar para além de uma moralidade universal, de uma transparência absoluta. Nenhum acordo político em nenhum lugar do mundo se sustenta se for gravado e depois divulgado publicamente. A política guarda com a máfia semelhanças estruturais. A diferença fundamental é que a política conquistou um espaço para fazer os ajustes de interesse dentro da lei e pode abdicar, por isso, do uso das armas. Mas quando a política é acuada e é obrigada a fazer seus ajustes de interesse às margens da lei, a tendência é que se volte a usar a força física.
IHU On-Line – Como diferencia o que é barganha política, que faz parte da natureza da política, do que é crime, como, por exemplo, o pagamento de propina para enriquecimento ilícito?
Roberto Dutra – O problema é a confusão entre essas duas coisas. Obviamente o Brasil tem um nível de corrupção na política e a sociedade não aceita isso, mas é preciso ter calma com essa questão, porque o Brasil é o país menos corrupto, em termos políticos, entre os BRICS. A corrupção brasileira é muito localizada. Na Rússia, por exemplo, ninguém faz uma cirurgia num hospital sem “molhar a mão” do médico. Então, temos que relativizar o problema da corrupção, embora não se deva ignorá-lo, porque essa é uma preocupação social legítima e é um dos anseios da classe média há muito tempo.
Mas houve, desde o mensalão, um processo de absolutização da moralidade na política, como se fosse possível eliminar a corrupção. Eu fico pensando que será possível eliminar a corrupção do mesmo modo como será possível eliminar o pecado, ou seja, nunca.
IHU On-Line – Não é possível eliminar, mas é possível punir.
Roberto Dutra – Punir, sim. Mas o que chamo de moralização da política é quando a própria atividade política é vista como crime, e a negociação de interesses é vista como crime. Um caso exemplar sobre isso é um depoimento de Lula ao juiz [Marcelo] Bretas no Rio de Janeiro na investigação da suposta compra de apoio político do Rio para a Olimpíada de 2016. Houve um momento em que uma procuradora perguntou ao Lula como ele negociou com os países africanos o apoio à elaboração da Olimpíada no Rio de Janeiro. Ele respondeu que a negociação foi feita assim: se os países africanos apoiassem os Jogos Olímpicos num dos países da América Latina, isso facilitaria um futuro apoio da América Latina em jogos políticos em algumas cidades da África. A procuradora imediatamente perguntou se ele estava confessando que havia comprado apoio político. Claramente não houve nenhum crime ali; o que aconteceu foi uma negociação política: eu te apoio hoje e você me apoia amanhã.
O que se vê é a criminalização da barganha, do toma lá dá cá, a criminalização de que os políticos ocupem cargos indicados. Quando o partido democrata ou republicano vence as eleições nos EUA, cerca de quatro mil cargos são trocados em uma semana. O Brasil tem um número de cargos comissionados muito menor, porque a profissionalização na alta administração pública é muito grande e não temos cargos comissionados a serem cortados. Políticos são importantes nos ministérios.
IHU On-Line – Por que a ida do juiz Sérgio Moro para o Ministério da Justiça e a incorporação do Coaf no Ministério lhe parece uma tentativa de criminalizar e moralizar a política e não uma tentativa de punir crimes fiscais?
Roberto Dutra – Pelo histórico de Sérgio Moro. O que ele fez até agora foi moralizar a política e descumprir a lei. Então, vou esperar para ver se ele vai combater o crime organizado no país, porque o crime organizado vai muito além da política. Mas a deduzir pelo que é a visão de mundo dele, socializada num artigo que ele escreveu em 2014 elogiando a Operação Mãos Limpas, não espero que o uso do Coaf seja para coibir crimes financeiros em primeiro lugar, mas um instrumento a mais para criminalizar a classe política da qual ele não se vê como parte, mas é parte constitutiva.
O ponto principal que não foi debate das eleições é a relação entre dinheiro e política. Sérgio Moro fala em combater o crime, mas para tirar a política do crime, tem que mexer na relação promíscua entre dinheiro e voto, dinheiro e política, que é cada vez mais forte, mas a Lava Jato não contribuiu para isso. Como diz o cientista político Wanderley Reis, a Lava Jato é o Plano Cruzado do combate à corrupção, e não o Plano Real, porque o resultado da Lava Jato não tem sido a eleição de políticos menos corruptos e muito menos a diminuição da corrupção. É claro que ela retirou um pouco do dinheiro da política e esse foi um resultado positivo. Essas eleições também diminuíram a força dos atores tradicionais, mas ainda vimos o escândalo do Bolsonaro: quem financiou e qual foi o volume de financiamento dessas mensagens enviadas em massa pelo WhatsApp?
É necessário entender que os políticos são corruptos não porque eles são moralmente corruptos, mas porque o jogo político assim o impõe. Nenhum político poderia ficar sem fazer caixa 2 naquele contexto. Então o caixa 2 é um elemento fundamental. Ele é crime? Até que ponto é crime? Por que a classe política não considera o caixa 2 um crime? Porque há um consenso entre eles que sem o caixa 2 a política seria impossível.
IHU On-Line – Por que a Lava Jato, que tem a finalidade de investigar os crimes, deveria ela própria implicar no fim da corrupção no país se não é essa a sua natureza?
Roberto Dutra – Punir é importante, mas a pergunta fundamental é: a punição leva à diminuição das práticas corruptas?
IHU On-Line – Se não leva, isso significa que não é preciso punir ou que é preciso rediscutir a punição?
Roberto Dutra – Deve-se punir, mas punir de um modo que a punição sirva como incentivo para a correção das práticas. Além disso, é preciso se perguntar se a punição é o único remédio. O direito penal não pode ser tratado como a solução para todos os nossos problemas. O processo de diminuição do poder do dinheiro na política envolve um processo interno da política. Por exemplo, se discutia financiamento público em 2003 e havia um consenso entre vários partidos, inclusive entre o DEM e o PT para se fazer uma reforma política e diminuir o poder do dinheiro na política. Esse processo de autocorreção do sistema político é o que se mostra eficaz para a diminuição da corrupção, porque os atores políticos têm maior noção do que podem fazer do ponto de vista do que é possível e do que não é. É claro que não estou dizendo que a lei tem que deixar a política correr solta. A lei tem que enquadrar a política mesmo, mas não invadir o espaço da política.
IHU On-Line – Para a sociedade, alguns valores não lhe parecem inegociáveis apesar da multiplicidade de valores, como a desonestidade que tem como consequência o uso do dinheiro público para enriquecimento ilícito?
Roberto Dutra – Depende do que você chama de sociedade. Se for entrevistar a classe empresarial, eles não vão colocar esse valor como absoluto, porque eles negociam com políticos. A classe média estimulada pela comunicação de massa costuma caminhar para a absolutização de valores e tem a honestidade como um valor absoluto. A pergunta que de algum modo responde a isso é: numa situação de desgraça econômica, de decadência social, será que as pessoas não poderiam preferir um governo corrupto, mas que resolvesse os problemas? Será que a absolutização do valor da honestidade não tem a ver com a ineficácia da política em dar conta de outros valores como a inclusão econômica e a eficiência? Com essas questões quero dizer que a sociedade dificilmente, de modo consensual, absolutiza valores. O que se tem é o avanço de valores como predominantes, como o valor da honestidade e da disciplina que de fora do sistema estão estruturando o sistema político. Nós, na nossa vida cotidiana, somos obrigados a viver com essa pluralidade de valores. Nós não cobramos honestidade das pessoas com quem convivemos como cobramos dos políticos. O valor da honestidade não é um valor absoluto.
IHU On-Line – Mesmo quando essas pessoas são responsáveis por administrar o dinheiro público e foram eleitas pela sociedade para empregar o dinheiro público de modo republicano e não o fazem?
Roberto Dutra – Esse é o valor central da política: todo político precisa provar que está preocupado com o bem comum. Isso é uma construção da política.
IHU On-Line – Não existem políticos preocupados com o bem comum?
Roberto Dutra – Existem, sim. Não sou um cético.
IHU On-Line – Mas é ingênuo, por parte do cidadão, esperar ou cobrar que os políticos façam um uso adequado do dinheiro público de modo a pensar no bem comum?
Roberto Dutra – É ingênuo querer uma virtude republicana, pois ninguém está interessado no bem comum porque é altruísta. O político só se interessa pelo bem comum porque isso dá voto. Ele pode ser convencido a aderir ao bem comum na medida em que tem uma maioria que não só lhe dá voto, mas também apoio. Mas vai variar o que o político entende como bem comum, ou o interesse de quem entra no bem comum.
O que é ingênuo é não entender que a política tem uma lógica própria e que isso significa que os atores têm motivações próprias para a política, que é querer o poder. Lembro de uma frase de Max Weber em “A política como vocação”: “Todo mundo que faz política tem como primeira motivação a busca pelo poder”. Então, nenhum político quer antes o bem comum. Ele quer o poder e para conseguir o poder ele precisa atentar ao bem comum. Isso nem é privilégio das democracias, pois os governos autocráticos também têm concepções de bem comum.
Aplica-se à política, em alguma medida, a busca do interesse individual para se ganhar poder de acordo com o arranjo institucional e democrático. É claro que na política existe a autorrepresentação: os políticos precisam se apresentar como pessoas motivadas e interessadas no bem comum. Se absolutizo outro valor que não deve ser absolutizado quando se trata de sociedades complexas, como o valor da verdade, devo dizer que os políticos mentem quando vão para a televisão e dizem que estão interessados exclusivamente no bem comum. Mas também não acho que devemos absolutizar na política o valor da verdade. Essa já é uma lição desde Maquiavel. Interessado no bem comum, o político deve e precisa muitas vezes mentir.
Precisamos recuperar o pragmatismo político como antídoto para o moralismo. O eleitor reconhece esse pragmatismo dos políticos, não o demoniza e não o moraliza porque sabe que a virtude republicana é uma idealização social e da natureza humana que só traz prejuízos. Não acho que seja negativo reconhecer que as pessoas têm interesse em ganhar dinheiro, no poder e em prazeres na vida.
IHU On-Line – Se partimos das premissas de que o político faz política por conta do seu desejo de poder e de que a vida republicana é uma ilusão, faz sentido punir ou exigir dos políticos que eles sejam republicanos ou ainda exigir que tenham práticas não republicanas?
Roberto Dutra – Faz sentido porque esse é um jogo onde a régua moral é a ideia da preocupação com o bem comum, e todo mundo presta reverência a isso, mesmo sabendo que as pessoas não agem motivadas exclusivamente por isso. Mas, como diria Pierre Bourdieu, a hipocrisia é um tributo à moral. O hipócrita não é um descompromissado com a moral. Então, faz todo sentido, sim, cobrar dos políticos esse compromisso, porque é isso que os faz ter um compromisso com o bem comum. Mas não nos cabe perscrutar a alma dos políticos para ver se eles estão interessados no bem comum. Isso se mostra através de decisões políticas e de resultados.
IHU On-Line – Uma das suas críticas à hipermoralização da política à esquerda é que ela politizou todas as esferas da vida humana, fazendo com que todos os temas da vida sejam objeto da política. Quais são as consequências disso para a própria política?
Roberto Dutra – A consequência é uma inflação do poder. Assim como o dinheiro, o poder é um meio de comunicação social que se inflaciona quando é usado de forma indiscriminada: na medida em que se politiza tudo, se enfraquece o próprio poder. A política, para ser forte, precisa de uma forma de autocontenção e não se pode politizar tudo ao mesmo tempo. Esse é um problema que a política traz para si mesma quando resolve politizar tudo.
Numa eleição, quando se resolve politizar a vida privada dos candidatos, isso significa que vamos concentrar as eleições numa guerra cultural e vamos perder todos os recursos políticos que temos para politizar a economia.
Outro problema é que a diferenciação da sociedade passa a ser ignorada quando se pensa que tudo é política. Existem, na esfera privada, questões que são afetadas pela política. Não estou dizendo que temos que naturalizar a desigualdade de gênero, mas ao politizar a relação íntima das pessoas e transformá-las — como é feito nos movimentos sociais e sobretudo nas universidades —, não estamos fazendo política. Não estamos fazendo política criando códigos de relações interpessoais que vão desde a linguagem até o humor, mas destruindo a lógica própria de determinadas esferas e, inclusive, impedindo que essas esferas possam se transformar para melhor. Se você quer acabar com o casamento, você politiza o casamento o tempo inteiro. Isso não significa que você não possa discutir o casamento.
Discutir politicamente todas as dimensões da vida significa aderir a uma visão de que nós somos seres políticos e de que a política está na nossa essência. Mas essa visão é falsa. A política é uma das esferas da nossa vida e é um dos valores. Nós vivemos outras coisas na vida, valorizamos outros valores e a política não resolve todos os problemas individuais e coletivos.
IHU On-Line – Por que houve uma adesão à politização de todas as esferas da vida e como o senhor avalia, de outro lado, a recusa a essa politização por parte da sociedade que se manifesta contra o politicamente correto?
Roberto Dutra – Isso tem a ver com o confronto de esferas. Tenho amigos negros, e, se eu fosse introduzir na nossa relação de amizade os códigos de relação do politicamente correto, essa seria uma relação fria. Nunca fui acusado de fazer brincadeiras racistas, mas não me privo de brincar com eles, assim como eles não se privam de usar determinados termos quando falam comigo, inclusive sacaneando o politicamente correto. Isso envolve a esfera íntima, o uso da linguagem, as relações de amizade, as relações de namoro e as relações interpessoais que têm características próprias.
As pessoas que não foram educadas na universidade não conseguem ver nenhum sentido no politicamente correto porque não conseguem ver nenhum ganho no uso dessa linguagem, sobretudo quando olham para a vida que levam as pessoas que usam o politicamente correto, ou seja, essas pessoas não se sentem diante de um modelo atraente de vida. Eu diria até que há um certo cansaço entre os próprios protagonistas do politicamente correto em relação a ele.
O politicamente correto não é uma unanimidade nem mesmo nos movimentos de minorias. Ele representa justamente a politização indevida das relações interpessoais, ou seja, se decide coletivamente como as pessoas vão, nas suas relações diárias, tratar umas às outras. A crítica ao politicamente correto não significa tolerar violências de gênero ou de minorias. Trata-se de ver a complexidade. Existem outros mecanismos para reagir à violência, como os mecanismos legais. É preciso se perguntar sobre os resultados do politicamente correto: ele tem reduzido a violência, por exemplo, ele tem efeito? Não, ele não tem efeito prático. O efeito prático dele é desgastar as relações interpessoais e ele não tem efeito positivo sobre o racismo. Essa é uma das razões pelas quais muitos negros votaram em Trump nos EUA.
IHU On-Line – O senhor disse que a hipermoralização da política também gera performances como as do #elenão e #elesim, como vimos nas eleições deste ano. Qual é a implicação da performance para a política?
Roberto Dutra – A performance e a moral nunca estiveram distantes da política: a própria inclusão das mulheres no movimento sindical envolve um processo de empatia, mas era uma moralidade e uma performance mais pragmática e que não colocava nenhum check list ou nenhum critério moral para o outro estar ou não incluído no movimento. Quando analisamos os movimentos universitários de negros ou feministas, nos quais muitas vezes se exige um check list, se percebe que há um discurso de que a pessoa “não é negra o suficiente”, que “não tem origem identitária o suficiente”, não está fazendo uso de determinado símbolo corretamente, ou seja, isso não produz ampliação, não agrega força para a causa que está sendo defendida com aquela performance. Estou falando de uma performance de hipermoralização, não de moralização, porque a moralização da política faz parte, uma vez que a vida social é permeada pela moral. Não é desejável que a moral esteja fora. O problema é a hipermoralização. A performance “eu não dialogo com você porque você é esquerdo-macho”, não agrega. Se eu não faço adesão ao feminismo, sou um insensível. Se faço, sou um esquerdo-macho. Então, é difícil.
Em relação aos movimentos negros, a situação é mais complexa, porque há grupos no movimento negro que rechaçam essa performance da hipermoralização. O movimento negro tem uma história no Brasil muito maior do que isso, que envolve uma ligação com a identidade nacional. O problema dos negros é um problema de exclusão, que é inaceitável. Mas existe um discurso de que há um dever moral de ajudar no presente quem foi prejudicado no passado. Ou seja, a questão é colocada só no campo da moral: porque a pessoa é vítima, o outro tem a obrigação moral de ajudá-la. Mas a questão é que não tem nada que obrigue alguém a ajudar o outro. A pessoa pode não se sentir tocada pela moral do outro. Agora, quando se amplia a narrativa e se coloca a questão do que a nação ganha com a inclusão do negro, aí isso muda. Veja, o Brasil se tornou grande na música e no futebol porque incluiu os negros, ou seja, o Brasil teria ganhos na política e na economia com a inclusão dos negros. Esse é um exemplo de uma performance na política que não segrega, mas que amplia. Negros e mulheres são maioria e é preciso lembrar isso. Por que eles têm que se colocar como minorias? Essas eleições vão nos obrigar a rever essas coisas.
IHU On-Line – O senhor tem defendido a criação de uma agenda nacional para o Brasil. O presidente eleito tem falado em pacificação e em acabar com o “nós” contra “eles”. O país tende a caminhar nessa direção ou não? Como interpreta o discurso de pacificação de Bolsonaro?
Roberto Dutra – Bolsonaro propõe uma agenda nacional, sim. É uma agenda que não tem conteúdo, mas tem forma. É uma política não de desenvolvimento, mas de identidade e inaugura e recupera uma gramática política de patriotismo. Tenho a hipótese de que esse discurso coloca a esquerda diante do desafio que eu já tinha pontuado em outra entrevista que te concedi, de uma agenda nacional de fato, porque a agenda do Bolsonaro é fácil de ser criticada, ela é integrista do ponto de vista econômico. É um patriotismo de guerra cultural.
Bolsonaro era um nacionalista confuso que se converteu ao neoliberalismo de forma confusa. O que temos até agora é um nacionalismo culturalista, um nacionalismo que não coloca a questão da soberania econômica, que não coloca a questão da nossa autonomia política diante do mundo. Bolsonaro fala que somos colonizados por ONGs, tem uma implicância com a China — o que não deixa de ter suas razões —, mas não coloca a agenda nacionalista de Figueiredo ou Geisel. Essa agenda não tem nada a ver com Bolsonaro.
Bolsonaro faz o mesmo movimento que Pinochet fez: quando deu o golpe, Pinochet era um nacionalista, mas ele tinha a convicção de que o nacionalismo econômico havia fracassado com Salvador Allende, e olhava para os modelos de nacionalismo da América Latina e dizia que eles não dariam certo, porque o Chile já havia aderido àqueles modelos e não se conseguia nem comprar cigarros nas ruas chilenas. Para resolver a questão, Pinochet chama os Chicago Boys da Universidade Católica do Chile, com uma certa desconfiança, e sugere que se faça um experimento de liberalização econômica. A política feita gerou resultados, sim, mas nenhum chileno tem condições de dizer que o Chile é um país economicamente autônomo. O Chile é um país muito mais dependente do que era antes. Parece que é esse movimento que Bolsonaro quer fazer.
IHU On-Line – Qual é a possibilidade de um país ter uma economia independente hoje, em que vivemos num mundo globalizado?
Roberto Dutra – Completamente independente não é possível, mas é possível controlar processos decisórios economicamente importantes para o desenvolvimento do país. A China faz isso, os EUA estão querendo fazer isso novamente — e, ao contrário do que se dizia, que seria um fracasso total, não está sendo — e a Alemanha continua fazendo isso.
É um grande mito dizer que os estados nacionais têm, por um lado, autonomia política, econômica e jurídica total, isso eles nunca tiveram; mas também é um mito dizer que o nacionalismo econômico acabou. Acabou o discurso: a Alemanha é o país que mais faz o discurso do cosmopolitismo econômico, mas é nacionalista demais na sua política industrial, tecnológica, e fez leis proibindo a compra de empresas alemãs por empresas chinesas e americanas. Quase não existem empresas alemãs controladas por bancos americanos. O sistema financeiro que controla a economia alemã é bancado pela classe média alemã. E ninguém vai dizer que a Alemanha é um atraso econômico.
IHU On-Line – O Brasil deveria seguir o modelo alemão?
Roberto Dutra – Sim. O nosso nacionalismo econômico foi inspirado no alemão. Os alemães não gostam de falar em nacionalismo alemão, mas é um bom modelo. Precisamos de uma política que consiga recuperar o espaço das grandes questões coletivas, como desenvolvimento econômico, distribuição de renda, segurança pública.
IHU On-Line – Com a derrota da esquerda e a ascensão da direita, alguns têm proposto um pacto político, como o ministro Dias Toffoli. Como vê essa proposta?
Roberto Dutra – Pacto com quem? Em geral pacto é algo negativo. O pacto numa democracia são os procedimentos democráticos: quem ganhou governa e quem perdeu faz oposição. Falar em grande pacto nacional me parece uma espécie de chantagem moral para que a oposição apoie o governo. Defendo uma oposição constitutiva e afirmativa, uma oposição que a cada avanço do governo sobre a agenda econômica, sobre a agenda social, seja capaz de oferecer uma alternativa, construindo um projeto de país alternativo passo a passo.
IHU On-Line – O que não foi feito nos últimos anos.
Roberto Dutra – Exatamente. O PSDB não fez oposição nos últimos anos e o PT fez uma oposição muito negativa no governo FHC, de negar tudo. Negar por negar não será o melhor caminho, é necessário oferecer uma alternativa. O pacto que tem que ser feito é o de respeitar a democracia. Bolsonaro foi eleito e ele tem que respeitar a Constituição. É preciso que ele faça um pacto para respeitar a Constituição? Não basta que a Constituição exista e que ele tenha sido eleito a partir dela? Se precisa de um pacto, é porque ele não está convencido de que deva respeitá-la. Esse discurso de pacto, vindo sobretudo da boca do Toffoli, é uma coisa muito estranha e me cheira a golpe.
IHU On-Line – O que a sociedade precisa neste momento para além da política, considerando que várias relações familiares e de amizade foram afetadas por conta do comportamento das pessoas nas eleições?
Roberto Dutra – Sempre reclamávamos que as pessoas não se envolviam com política no Brasil. A sua pergunta vai no sentido oposto: será que não está na hora de nos envolvermos menos com política no Brasil? Acho que sim. A ideia de que a política deve ocupar um espaço muito grande na nossa vida nem sempre está certa e neste momento é bastante óbvio que devemos cuidar da nossa vida cotidiana, daquelas coisas banais que são significativas.
Essa politização e esse vício em política que vivemos neste momento pode levar a uma simplificação da visão das pessoas sobre outras dimensões da vida das quais elas não costumavam ter visões simplistas. Schumpeter [economista e cientista político austríaco] tem uma frase muito interessante no seu livro sobre democracia, que se aplica para este momento. Ele dizia que pessoas razoáveis que tomam decisões maduras e complexas em todas as esferas da vida, na família, no trabalho, quando vão votar e participar da vida política, regridem à idade mental de cinco anos. Não quero ser tão agressivo assim, mas o meu medo é o de que as pessoas retornem para as suas famílias e seus trabalhos com uma mentalidade de cinco anos que elas aprenderam a cultivar na política e estraguem não só a política, mas a vida.
É preocupante esse processo de perseguição na vida cotidiana, de brigas de família, de invasão da política no ambiente familiar. Precisamos cultivar mais o valor da própria diferenciação da sociedade e o pluralismo de valores. Vamos falar menos de política e reatar as amizades com as pessoas e vamos tentar não perder as nuances que temos quando estamos fora da política. Não tem uma esfera que é mais importante, mas a política também tem que ser colocada na sua caixinha.
IHU On-Line – A sociedade sai mais fragilizada ou fortalecida desta eleição?
Roberto Dutra – Sai fragilizada, porque o envolvimento com a política foi moralizador e despolitizador, que nega a política. Mas, por outro lado, a negação da política entrou na política, e se tivermos eleições democráticas daqui a quatro anos, a chegada da ultradireita ao poder é positiva porque coloca na sociedade, no centro do poder, uma alternativa que estava querendo se colocar há muito tempo e que agora poderá ser julgada, dando espaço para a formulação de outras alternativas. Mas isso vai depender de essa negação da política não prosseguir. É preciso interromper a guerra cultural que nega a política e ver o governo Bolsonaro, se ele assim quiser ser visto, como um governo normal que foi a opção da maioria, mas que, provavelmente, não será a opção da maioria daqui a quatro ou oito anos.
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A política moderna é bipolar e opera entre democracia e autocracia. Entrevista especial com Roberto Dutra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU