Por: Patricia Fachin | 25 Setembro 2018
Sem um “choque de gestão” e “uma ação conjunta entre entes públicos e privados” será impossível eliminar o desmatamento ilegal em Mato Grosso, meta que deveria ser cumprida até 2020 segundo o acordo firmado na COP-21, adverte Ana Paula Valdiones, analista de Gestão Ambiental do Instituto Centro de Vida, na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Segundo ela, o aumento do desmatamento no estado entre 2014 e 2017 evidencia que “as ações que estão sendo realizadas até o momento para conter o desmatamento não estão sendo suficientes”. Ela informa que, do total de vegetação derrubada em 2017, “98% não detinha autorização do órgão ambiental estadual para desmatar” e que “46% da área do Cerrado desmatada estava coberta por pastagem, 44% por agricultura e 10% é um mosaico de agricultura e pastagem”.
Para reforçar o quadro de desmatamento, afirma, “o governo do estado sancionou uma lei (Lei Estadual nº 10.713/2018) que permite novos desmatamentos na Área de Proteção Ambiental das Cabeceiras do Rio Cuiabá”. Embora a legislação esteja suspensa pelo Ministério Público, essa é mais uma medida que dificulta o alcance das metas assumidas na COP-21 e é uma sinalização positiva para aqueles que desmataram ilegalmente. “Essa medida também diminui o grau de proteção de uma das poucas Unidades de Conservação - UC de Mato Grosso no Cerrado. As UCs no estado protegem apenas 6% da área original do bioma Cerrado. Excetuando-se as Áreas de Proteção Ambiental - APA, categoria que conta com menor proteção e permite na maioria das unidades a exploração agropecuária, Mato Grosso possui menos de 2% do Cerrado protegido por Unidades de Conservação”, pontua.
Na avaliação de Ana Paula, o desmatamento ilegal em Mato Grosso é facilitado pela não implementação de acordos como a moratória da soja e os TACs da pecuária no estado. “Os acordos de cadeias para combater o desmatamento como a moratória da soja e os TACs da pecuária ainda não abrangem o bioma Cerrado, e se mantêm olhando exclusivamente para Amazônia. (...) É necessário que outras bases de dados chaves, como a Guia de Trânsito Animal, que registra a movimentação comercial do gado entre fazendas, também sejam disponibilizadas na íntegra para possibilitar o monitoramento de toda a cadeia, por meio do cruzamento entre diferentes bases de dados”.
Ana Paula | Foto: Reprodução - Youtube
Ana Paula Valdiones é graduada em Gestão Ambiental pela Universidade de São Paulo - USP e mestra em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da USP. Atualmente, é analista de Gestão Ambiental do Instituto Centro de Vida.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Segundo monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe, entre agosto de 2016 e julho de 2017, o desmatamento no Cerrado foi de 7,4 mil km². E entre 2014 e 2017, o desmatamento subiu 24% somente em Mato Grosso. Qual é o significado do aumento do desmatamento na região, considerando a atual situação do Cerrado?
Ana Paula Valdiones - Nossa análise foi apenas de Mato Grosso e a comparação com o bioma Cerrado como um todo, que envolve 11 estados e o DF. Mas não analisamos a dinâmica de desmate nos outros estados individualmente. Assim, sabemos que em Mato Grosso o desmatamento aumentou entre 2014 e 2017, enquanto o desmatamento total no bioma diminuiu nesse mesmo período. O aumento no estado demonstra que as ações que estão sendo realizadas até o momento para conter o desmatamento não estão sendo suficientes. Os órgãos ambientais responsáveis pelo combate ao desmatamento não estão conseguindo ser efetivos na dissuasão da derrubada ilegal da vegetação natural, bem como os mercados ainda não estão cumprindo seus compromissos de eliminar o desmatamento de sua cadeia de fornecimento (notadamente soja e pecuária) evitando compras de produtos oriundos do desmatamento ilegal que ameaça esse bioma.
IHU On-Line - Como você avalia, de outro lado, a contestação desses dados do desmatamento pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso - Sema-MT, segundo a qual o desmatamento foi de 7,9% entre 2014 e 2017?
Ana Paula Valdiones - Estamos nos referindo a duas informações que são "medidas" de formas diferentes. O Inpe, que é o órgão federal responsável, dentre outras atribuições, pelo monitoramento do desmatamento nos diferentes biomas, tem uma metodologia diferente daquela empregada pela Sema. Seria interessante que o próprio órgão ambiental estadual, que é o responsável pela metodologia e pela produção da informação, explicitasse as divergências metodológicas ao contestar os dados federais, deixando mais claras as limitações e pontos fortes de cada metodologia.
IHU On-Line - Em que regiões de Mato Grosso o desmatamento do Cerrado é maior?
Ana Paula Valdiones - Assim como na Amazônia mato-grossense, o desmatamento no Cerrado também está bastante concentrado. 53% de todo o desmatamento de 2017 se concentrou em 10 municípios, dentre eles Nova Nazaré, Ribeirão Cascalheira e Cocalinho.
IHU On-Line - Quais são as implicações do desmatamento para o Cerrado como um todo?
Ana Paula Valdiones - O Cerrado é o segundo maior bioma do país e o mais rico em biodiversidade. O bioma presta serviços diversos à sociedade, como a manutenção da quantidade e qualidade de água, regulação do clima, conservação da biodiversidade e oferta de alimentos. Além disso, dele dependem diversas populações tradicionais, que compõem o patrimônio histórico e cultural brasileiro. Contudo esse desmatamento ameaça a continuidade da prestação desses serviços ecossistêmicos, inclusive aqueles essenciais ao agronegócio, que reduzem as possibilidades de quebras de safras, como a provisão de água e regulação climática, e coloca em risco a subsistência dos povos e comunidades tradicionais e tem impactos irreversíveis sobre a biodiversidade.
IHU On-Line - O levantamento do Instituto Centro de Vida - ICV também aponta que 46% do Cerrado foi convertido em outros usos. Quais são eles?
Ana Paula Valdiones - Segundo os dados do Mapbiomas, em 2017, 46% da área do Cerrado desmatada estava coberta por pastagem, 44% por agricultura e 10% é um mosaico de agricultura e pastagem.
IHU On-Line - Que fatores têm contribuído para o desmatamento do Cerrado e para a conversão do bioma em outros usos? Há um incentivo para a expansão do agronegócio no estado? Isso tem um impacto no Cerrado?
Ana Paula Valdiones - As ações de desincentivo (dissuasão) do desmatamento ilegal ainda são insuficientes. Do total de vegetação derrubada em 2017, 98% não detinha autorização do órgão ambiental estadual para desmatar. A capacidade de fiscalização do estado ainda é limitada perante o desafio de combater o desmatamento ilegal. É necessário implementar ferramentas mais eficientes e ampliar a transparência de informações fundamentais para o controle ambiental, possibilitando que toda a sociedade possa contribuir para o monitoramento e combate ao desmatamento. Um passo importante foi dado nesse sentido semana passada (19/09), com o lançamento do Portal da Transparência da Sema.
Bioma Cerrado (Foto: Todo Estudo)
Além disso, incentivos econômicos para se conservar a floresta em pé ainda não foram implementados. Aqueles produtores com áreas de vegetação superior ao exigido pela lei não têm hoje mecanismos financeiros que tornem atrativa a manutenção dessas áreas com vegetação excedente.
IHU On-Line - O estado de Mato Grosso se comprometeu em eliminar o desmatamento ilegal até 2020 para atender as metas da COP-21. Qual é a possibilidade de essa meta se concretizar?
Ana Paula Valdiones - A não ser que ocorra um choque de gestão e uma ação conjunta entre entes públicos e privados, infelizmente será muito difícil atingir essa meta no prazo. A ilegalidade na abertura de novas áreas é muito alta. Em 2017, 98% de tudo que foi aberto no Cerrado e 89% do total desmatado na Amazônia foi ilegal.
IHU On-Line - Recentemente você mencionou que dois decretos não favoreceram a proteção das Áreas de Proteção Ambiental - APA do Rio Cuiabá e das planícies do Guaporé e do Araguaia. Pode nos dar algumas informações sobre que decretos são esses e quais suas finalidades?
Ana Paula Valdiones - Recentemente o governo do estado sancionou uma lei (Lei Estadual nº 10.713/2018) que permite novos desmatamentos na Área de Proteção Ambiental das Cabeceiras do Rio Cuiabá. A medida, que está suspensa pelo Ministério Público, significa um retrocesso em relação aos compromissos firmados na COP-21. Além de ser uma sinalização positiva para novos desmatamentos e um afrouxamento para aqueles que já desmataram ilegalmente, essa medida também diminui o grau de proteção de uma das poucas Unidades de Conservação - UC de Mato Grosso no Cerrado. As UCs no estado protegem apenas 6% da área original do bioma Cerrado. Excetuando-se as Áreas de Proteção Ambiental - APA, categoria que conta com menor proteção e permite na maioria das unidades a exploração agropecuária, Mato Grosso possui menos de 2% do Cerrado protegido por Unidades de Conservação.
Outro decreto publicado há poucos dias (Decreto Estadual 1.647/2018) retira o uso restrito em regiões do Vale do Araguaia e do Guaporé, que até então tinham restrições semelhantes às áreas do Pantanal. Essa é novamente uma redução na proteção de ecossistemas frágeis.
IHU On-Line - Qual é a situação ambiental das Áreas de Proteção Ambiental do Rio Cuiabá e das planícies do Guaporé e do Araguaia?
Ana Paula Valdiones - APA Cabeceiras do Rio Cuiabá foi criada em 1999 e cobre uma área de aproximadamente 462 mil hectares. Localiza-se numa região de extremamente alta prioridade para conservação por estar no divisor das bacias do Rio Cuiabá, Arinos, Teles Pires e Manso. 40% da APA Cabeceiras do Rio Cuiabá já foi desmatada; 1/3 disso ocorreu após a criação da Unidade de Conservação, ilegalmente; 90% desse desmatamento recente se concentrou majoritariamente em grandes e médios imóveis rurais cadastrados no CAR [Cadastro Ambiental Rural]. A área destinada à produção agropecuária no entorno está crescendo e significa uma pressão à manutenção da vegetação remanescente nesta UC. A Lei que permite novos desmatamentos autorizados pode afetar quase 100 mil hectares de Cerrado inseridos na APA e que, até então, estavam sob proteção legal.
Já as áreas úmidas do Guaporé e do Araguaia, assim como outros ecossistemas de interface entre ambientes terrestres e aquáticos, têm um papel importante para o provimento de água e conservação da biodiversidade. Assim, quando o decreto determina “Não se aplicam às planícies alagáveis do Guaporé e do Araguaia as restrições impostas por lei específica ao Pantanal mato-grossense e planície pantaneira do Rio Paraguai”, significa mais uma redução na proteção de ecossistemas frágeis.
IHU On-Line - Por que, na sua avaliação, o Cadastro Ambiental Rural não tem sido suficiente ou efetivo para evitar a compra de produtos oriundos de regiões em que ocorre o desmatamento ilegal?
Ana Paula Valdiones - Os acordos de cadeias para combater o desmatamento como a moratória da soja e os TACs [termos de ajustamento de conduta] da pecuária ainda não abrangem o bioma Cerrado, e se mantêm olhando exclusivamente para Amazônia. Recentemente, aumentou significativamente o nível de transparência que temos do CAR no estado de Mato Grosso. É necessário que outras bases de dados chaves, como a Guia de Trânsito Animal, que registra a movimentação comercial do gado entre fazendas, também sejam disponibilizadas na íntegra para possibilitar o monitoramento de toda a cadeia, por meio do cruzamento entre diferentes bases de dados.
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Sem choque de gestão é impossível eliminar o desmatamento ilegal. Entrevista especial com Ana Paula Valdiones - Instituto Humanitas Unisinos - IHU