Por: João Vitor Santos | 10 Junho 2017
Como em outras metrópoles, para compreender a dinâmica dos coletivos de crime que se incrustaram nas periferias de Porto Alegre, é preciso antes olhar para o sistema carcerário. “Esses grupos não necessariamente surgiram com a finalidade de cometer delitos, e o aparecimento das primeiras facções remetem a contextos de violação de direitos de apenado”, destaca a cientista social Marcelli Cipriani. “As facções aparecem, então, como uma forma de organizar a vida coletiva, de balizar as relações entre apenados e de promover a união diante das injustiças cometidas pelo Estado”, completa. No caso da capital gaúcha, o nascedouro das facções criminosas é o Presídio Central.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Marcelli demonstra que a dinâmica no Rio Grande do Sul é distinta da de outros estados dada a pulverização de grupos. Num momento de intensos conflitos, a Brigada Militar assume o presídio e promove a separação de presos por afinidades em galerias. Inicialmente dá certo, mas há um fortalecimento desses grupos. “Em 1996, a Falange Gaúcha transformou-se em Manos, controlando uma parte do Central já homogeneizada em torno de seus integrantes”, exemplifica. Para tentar quebrar essa hegemonia, a própria BM insere outros grupos, criando verdadeiros territórios das facções que passam a disputar espaço. Com a superlotação e contingenciamento de policiais, a gestão da cadeia, na prática, é feita pelos grupos.
Os problemas nas periferias, segundo Marcelli, se agravam porque reproduzem as disputas que ocorrem dentro do Central. “Antigamente, em Porto Alegre, o domínio exercido pelas facções costumava se calcar nos laços comunitários ao invés de na imposição da força” porque os líderes tinham conexões com a comunidade. Com a morte desses líderes, a vila se torna zona de disputa. Assim, segundo ela, “a intensificação da violência pela competição armada começou a atingir as comunidades, esmagadas pelos tiroteios entre facções rivais, pelos toques de recolher muitas vezes impostos e pela troca das relações de fidelidade pelas de medo, insegurança ou imprevisibilidade”.
Marcelli Cipriani | Foto: Arquivo pessoal
Marcelli Cipriani é formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS, pesquisa o tema das "facções criminais" desde 2015.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que entende como “facção criminal” e como compreender a lógica dessas organizações?
Marcelli Cipriani – Entendo facção criminal como uma forma de viver a criminalidade coletivamente, na qual diferentes grupos espalhados por todo o território nacional partilham determinadas características comuns, apesar de possuírem particularidades. Como conceito teórico, facção criminal é frágil, especialmente por se referir a um fenômeno recente no país (que remonta ao final da década de 1970), mas também porque, devido à sua inscrição no universo delituoso, envolve campos de difícil acesso a pesquisas acadêmicas. Isso faz com que a produção de conhecimentos sobre o tema ainda não dê conta de sua multiplicidade.
Apesar da fragilidade tipológica, se pode indicar que essa vivência do “mundo do crime” a que se dá o nome de facção está centralmente vinculada à prisão. Grupos como o Comando Vermelho – CV, a Falange Gaúcha e o Primeiro Comando da Capital – PCC foram constituídos dentro de presídios, respectivamente do Rio de Janeiro (em 1979), de Porto Alegre (em 1987) e de São Paulo (em 1993). A própria ampliação e a interiorização do sistema penitenciário paulista vêm sendo relacionadas com o estabelecimento do PCC, assim como as estratégias de gestão da massa carcerária no Presídio Central de Porto Alegre são apontadas como determinantes para o surgimento e a consolidação de grupos de apenados.
Nas décadas posteriores à emergência das facções no Brasil, divisões internas ocorreram, novos grupos foram criados em âmbito local e grupos mais antigos avançaram (sob relações de aliança ou conflito) para além de seus estados de origem. Entretanto, a despeito das inúmeras transformações ocorridas nessas dinâmicas, a estreita vinculação da atividade de facções com a prisão permanece atual, relacionando-se tanto com a organização do cotidiano de apenados quanto com sua mercantilização.
Ainda que tenham surgido originalmente na prisão, outro traço comum às facções é o transbordamento de suas atividades para a rua, através da interação mútua entre a constituição de territórios prisionais (pelo controle de raios, galerias, ou mesmo de unidades inteiras) e de territórios nas cidades (pela projeção de poder, domínio e influência sobre o espaço urbano). Essa relação se dá, preferencialmente, em periferias, onde a atuação estatal é precária e o acesso à educação e ao trabalho formal é mais restrito.
Nesses cenários, as facções articulam as atividades criminosas como fonte de renda, orientando-se, principalmente, no entorno do mercado de armas e de drogas (ainda que não se limitando a eles). Na verdade, a relação da Falange Gaúcha com o tráfico de entorpecentes não foi imediata e, assim como no caso do PCC, seus membros estavam inicialmente envolvidos com assaltos a bancos e a carros-fortes. Foram alguns fatores estruturais, como o papel da cocaína no Brasil (que passou de corredor de passagem da substância a um de seus maiores consumidores), que influenciaram a reordenação do mercado de ilícitos, tornando-o mais lucrativo e propiciando a vinculação de facções a essas atividades.
Com o barateamento da cocaína no país, a partir do final dos anos de 1970 e mais expressivamente nos anos de 1980, outros delitos também foram estimulados, como a lavagem de dinheiro, o roubo e o furto de veículos, não raro utilizados como moeda de pagamento do entorpecente. Contemporaneamente, o acréscimo ou a redução dos índices de homicídios, influenciados pelas situações de conflito ou de monopólio de facções, também se soma à difusão da atividade criminosa a áreas mais centrais, podendo incidir nas taxas de latrocínio, favorecido pela alta circulação de armamento e de munição.
É importante destacar, todavia, que esses grupos não necessariamente surgiram com a finalidade de cometer delitos, e o aparecimento das primeiras facções do Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo remetem a contextos de violação de direitos de apenados, como violências perpetradas por agentes penitenciários e pelos próprios presos. As facções aparecem, então, como uma forma de organizar a vida coletiva, de balizar as relações entre apenados e de promover a união diante das injustiças cometidas pelo Estado e por seus agentes.
Assim, apesar de haver uma dimensão claramente econômica na existência das facções, elas não podem ser reduzidas por sua atuação criminosa, pois engendram identidades, fornecem ferramentas para que seus integrantes articulem o estigma social a que estão sujeitos, e produzem relações de pertencimento coletivo. O fato de os membros batizados do PCC se reconhecerem por “irmãos” é um exemplo disso. Em Porto Alegre, “slogans” de grupos criminais também indicam sua vinculação com a sociabilidade dos integrantes. Os V7, por exemplo, se apresentam como “mais do que uma quadrilha, também uma família”.
Os Manos, por sua vez – facção que, na primeira metade da década de 1990, derivou da Falange Gaúcha –, se caracterizavam pela ressignificação positiva do atributo do “bandido” e pela manutenção de uma relação de ódio recíproco com a sociedade: na medida em que essa os rejeitava, também deveria ser rejeitada por eles. Algo semelhante se vê no PCC, com seu projeto de “paz” aos integrantes e “guerra” ao Estado. Trata-se, portanto, de um aspecto “ideológico” (no sentido neutro do termo), que é sustentado por uma dimensão normativa da conduta dos integrantes, algumas vezes formalizada em princípios ou regras escritas (como o Estatuto dos Manos e o Estatuto do PCC).
Em geral, as facções também são organizadas a partir de uma estrutura, embora essa seja variável, podendo tanto aproximar-se de um formato piramidal quanto descentralizado. Aparentemente, a tendência que esses grupos vêm assumindo é a de reduzir suas lideranças absolutas, distribuindo as responsabilidades e as funções de forma menos hierárquica. Isso pode ser percebido no PCC, cuja estrutura piramidal foi sendo progressivamente substituída pela descentralização. Nas facções gaúchas, o assassinato de Dilonei Melara [1] em 2005 – antigo membro da Falange Gaúcha e, mais tarde, líder da facção dos Manos – marcou o início de um período de flexibilização da estrutura organizacional, com a criação de colegiados para a tomada de decisões. Esse movimento acompanha a ampliação e a pulverização das atividades das facções, que antes eram caracterizadas pelo domínio de prisões e de bairros específicos, e atualmente ampliam-se, buscam a expansão e disputam novos territórios.
Por fim, algo que parece rondar as facções como um todo é sua relação com o Estado. Seja devido às escusas corrupções policiais (venda de armamento, recebimento de propina, etc.), ou às consequências diretas que a política criminal e penitenciária têm produzido nesses grupos, é um equívoco pensá-los como “poderes paralelos”. Na verdade, o que se percebe é que o surgimento, o fortalecimento e a pulverização das facções criminais estão absolutamente imbricados no Estado e, portanto, essas não são paralelas a ele, mas se dão em função dele e em intersecção com ele.
IHU On-Line – Quais as particularidades das facções de Porto Alegre em comparação com as demais do Brasil? Quais são os maiores grupos gaúchos e como se organizam?
Marcelli Cipriani – Em Porto Alegre, temos algumas particularidades institucionais que não ocorrem em outros lugares, que contribuíram centralmente para dar o tom às dinâmicas assumidas por facções locais nas últimas décadas e, consequentemente, para a expressão da violência urbana no município. Diferentemente do que ocorre nos presídios brasileiros como um todo, quem administra o Central há quase 22 anos não é a Superintendência de Serviços Penitenciários – Susepe, mas a Polícia Militar. A passagem dessa gestão ocorreu pela “Operação Canarinho” [2], criada em 1995 com caráter emergencial e duração provisória de até seis meses.
A decisão foi motivada por um período de descontrole dos maiores presídios do estado, com a segurança pública sendo considerada como “caótica”. Os índices de homicídios e de outras violências prisionais atingiam níveis altíssimos, e a ocorrência de motins, rebeliões e tentativas de fuga em massa também eram frequentes. Alguns desses episódios adquiriram ampla visibilidade pública, contribuindo para a sensação de insegurança e insatisfação coletivas.
Naquele momento, o objetivo imediato da Brigada Militar era controlar as instabilidades do sistema penitenciário, que se agravavam pelas condições absolutamente precárias dos estabelecimentos e por sua superlotação (na época, o Central já acolhia mais do que o triplo da sua capacidade). Uma das estratégias que passaram a ser utilizadas pela polícia foi a espacialização dos apenados, que começaram a ser agregados, em galerias, de acordo com sua compatibilidade. Aliados foram aproximados entre si e “contras” foram separados, o que se deu em atenção aos riscos da má distribuição de presos, que já haviam sido indicados pela Vara de Execuções Criminais e pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa.
A situação do Presídio Central, então, começou a melhorar, o número de violências internas foi caindo progressivamente e os tumultos também foram reduzindo. Em 1996, a Falange Gaúcha transformou-se em Manos, controlando uma parte do Central já homogeneizada em torno de seus integrantes. Um ano depois, para tentar desestabilizar esse domínio e enfraquecer o monopólio dos Manos, a Brigada Militar favoreceu o surgimento de um novo grupo, que veio a ser chamado de Brasas.
A proposta da polícia era de que um preso de seu afeto, o Brasa, ocupasse um dos pavilhões do Presídio Central, podendo preenchê-lo com apenados de sua confiança. O lugar deveria permanecer limpo e organizado, e o grupo deveria se comprometer com não fazer motins e rebeliões e com não organizar tentativas de fuga. Em troca, teria certa autonomia na gestão do pavilhão que, caso permanecesse em ordem e em paz, não seria duramente monitorado. De lá para cá, outras facções surgiram, e a espacialização do Central passou de estratégia de curto prazo para mecanismo institucionalizado, o que propiciou a consolidação de uma variedade de grupos dentro do presídio, cada um deles habitando uma ou mais galerias. Nelas, são alocados tanto os membros de facções quanto indivíduos que não lhe estão vinculados, mas moram em regiões do município sob seu controle.
Atualmente, no pavilhão A, a primeira galeria é do grupo Unidos Pela Paz, e a segunda é da facção da Conceição. No pavilhão B, a primeira é dos Abertos, e a segunda e terceira galerias pertencem aos Manos. O pavilhão C foi destruído em 2014, como parte de um plano nunca concretizado de demolir o Central, o que agravou ainda mais seus problemas de superlotação. No pavilhão D, a primeira e terceira galerias são dos grupos vinculados à Zona Norte do município de Porto Alegre e ao bairro Farrapos, enquanto a segunda pertence aos Abertos. Na terceira galeria do pavilhão F, vivem os Bala na Cara, a facção mais proeminente do estado. Nos demais pavilhões (E, G, H, I), distribuem-se galerias marcadas por outras características que não o pertencimento à facção, como presos por estupro, travestis, presos “problemáticos” e aqueles que estão em projeto de desintoxicação ou trabalham no presídio.
O acordo tácito entre polícia e apenados que propiciou a criação da facção dos Brasa é, em suma, a base da “pacificação” do Central, ainda que seus termos tenham sofrido alterações. Atualmente, a ordem interna ao presídio é vantajosa para a grande maioria dos atores sociais envolvidos. Por um lado, integrantes de facções perceberam no sistema um espaço de lucro e de poder, o que torna a ocorrência de instabilidades desinteressante. A autonomia que recebem para gerir suas galerias (incluindo-se funções como a abertura e o fechamento de celas, gerenciamento da subcantina, mercados paralelos, etc.) possibilita o controle da circulação de bens e serviços (lícitos e ilícitos) em cada uma delas, assim como produz um contingente de apenados lhes devendo favores e quantias financeiras.
Paralelamente, apenados como um todo temem a perda de direitos como a visita e a imposição de sanções como a “viagem” (a transferência para outro presídio), e preferem não instigar maiores conflitos. Já para a Brigada Militar, o controle das galerias pelos membros criminais barateia a administração prisional, pois lhes transfere atividades que deveriam ser de sua competência, o que também permite a manutenção de um baixo efetivo de funcionários.
Uma das consequências do presídio “silencioso”, entretanto, é a força que garante ao funcionamento das facções que, apesar de manterem um “voto de paz” interno (a fim de não prejudicar seus próprios interesses), disputam com cada vez mais brutalidade do lado de fora dos muros carcerários. Esses conflitos foram adquirindo novos contornos a partir de 2008, com o controle de uma das galerias do Central pelos Bala na Cara e por sua ascensão nos mercados locais do tráfico.
Os Bala surgiram com a característica da expansão forçada de territórios e com a utilização da violência como mecanismo principal de controle. Antes de seu crescimento, também havia conflitos entre membros de facções, mas suas relações não estavam tão circunscritas à disputa armada por novos pontos de poder, e os mercados de ilícitos se encontravam em relativo equilíbrio, com todos os maiores grupos lucrando concomitantemente. A partir de 2011, o “fator Bala na Cara” começou a alterar esse cenário.
Em reação à desestabilização do “mundo do crime” local, decorrente da consolidação violenta dos Bala na Cara como potência, surgiram, em 2016, os Antibala. Os adeptos da “bala nos Bala” compõem o chamado “embolamento”, uma agregação de diferentes grupos criminais, de maior ou menor expressividade que, nesse caso, se encontram unidos por rechaçarem os Bala, que aparecem como fator intimidador tanto para facções maiores (por ameaçarem sua posição nos negócios de ilícitos do município) quanto para grupos menores (que podem ser cooptados ou aniquilados pela facção).
A polarização da disputa entre Balas na Cara e Antibala e seu espraiamento para praticamente todo o município de Porto Alegre tem produzido um ciclo de vinganças que impacta a violência urbana tanto em termos quantitativos quanto qualitativos. Para além do aumento do número de latrocínios e homicídios (especialmente em periferias), tem-se percebido o uso de métodos cada vez mais cruéis, como a decapitação e o desmembramento, utilizados como forma de exaltar o poder dos grupos.
IHU On-Line – Como compreender as relações entre “facções criminosas” e moradores de comunidades de periferias?
Marcelli Cipriani – A relação entre facções e moradores das periferias é variável, não raro ambígua. O grupo criminal pode tanto oferecer vantagens quanto perpetuar opressões, demonstrando solidariedade e, ao mesmo tempo, cometendo atos de crueldade. Em Porto Alegre, a violência em comunidades sob domínio do tráfico parece estar relacionada com o início da expansão territorial dos grupos, que deixam de estar vinculados apenas ao local de sua origem e passam a controlar outras áreas.
Antigamente, em Porto Alegre, o domínio exercido pelas facções costumava se calcar nos laços comunitários ao invés de na imposição da força, porque seus líderes eram nativos dos bairros onde exerciam as atividades criminais. Nesse período, era comum que os integrantes dos grupos ajudassem os moradores (lhes comprando medicamentos ou botijões de gás e lhes arranjando empregos, por exemplo), bem como que produzissem festas infantis, eventos e outras celebrações financiadas pelo lucro do tráfico.
Com o crescimento das disputas, alguns bairros passaram a ser controlados por traficantes de outras áreas, e os elementos que possibilitavam a integração entre facções e moradores restaram enfraquecidos. Paralelamente, a intensificação da violência pela competição armada começou a atingir as comunidades, esmagadas pelos tiroteios entre facções rivais, pelos toques de recolher muitas vezes impostos e pela troca das relações de fidelidade pelas de medo, insegurança ou imprevisibilidade.
Há, entretanto, algumas exceções. No “Campo da Tuca” [3], por exemplo, se comenta a existência de normas de proteção à periferia, com o veto de crimes como o roubo e o estupro. Alexandre Goulart Madeira, o Xandi, ligado aos Manos, foi o último dos líderes de facções ligado intimamente por laços de pertencimento ao território. Quando foi assassinado, em 2015, houve reações enlutadas dos moradores do Condomínio Princesa Isabel [4]. O local, também conhecido como “Carandiru”, é um dos centros de tráfico da cidade e o maior complexo urbano de venda de ilícitos dos Manos. Na ocasião, faixas foram penduradas nos apartamentos, uma música foi gravada para celebrar Xandi como “padrinho” da comunidade e um grafite foi pintado no prédio em sua homenagem.
Entretanto, as denúncias de opressões perpetradas por membros dos grupos costumam ser mais frequentes. Na vila Cruzeiro, bairro Santa Tereza, por exemplo, muitas famílias foram removidas de suas casas, por essas se situarem em pontos estratégicos para o comércio de entorpecentes ou para rotas de fugas. No Beco dos Cafunchos, bairro Agronomia, um líder comunitário foi assassinado em 2015, supostamente por estar causando incômodos a traficantes que haviam tomado a região no ano anterior.
O cenário de Porto Alegre é muito diferente do delineado por pesquisadores do PCC, que indicam que a redução dos homicídios em São Paulo estaria diretamente vinculada com sua atuação. O monopólio da facção sobre as prisões e periferias paulistas teria permitido não só o desuso da violência física para a manutenção do poder, como também a mediação das violências advindas dos moradores. Segundo esses autores, o PCC teria instaurado a regra de que o assassinato, nos territórios do grupo, só pode ser legitimado pelos tribunais do Comando, o que contribuiu decisivamente para o rompimento de um ciclo de mortes (por acerto de contas, dívidas do tráfico, etc.) e de vinganças que era, antes, verificado.
De forma inversa, a permanência de uma pluralidade de grupos no Presídio Central e nos bairros de Porto Alegre, em disputa aberta, corrobora com o aumento das violências no município, o que torna nosso contexto bastante distante do paulista, e mais próximo do identificado no Rio de Janeiro.
IHU On-Line – De que forma se dá a territorialidade do tráfico de drogas diante do espaço urbano da metrópole? Até que ponto se pode falar em espaços de segregação e como esses espaços são inscritos numa cidade como Porto Alegre?
Marcelli Cipriani – Entendo por território a manifestação espacial do poder, e por territorialidade os arranjos e relações que se dão no território, as maneiras pelas quais o poder efetivamente se exerce. Assim, enquanto a ideia de território serve para definir o espaço social a partir do domínio de cada facção, refletir sobre suas territorialidades permite compreender o que faz com que uma área seja considerada “do” grupo criminal, e como isso se dá na realidade concreta.
A formação de territórios por facções passa dos acordos por interesses mútuos entre diferentes grupos criminais aos confrontos armados, e se vincula aos propósitos que orientam cada territorialidade específica (como a proteção de um grupo por sua agregação a outro, ou a exaltação simbólica de poder pela desterritorialização de um grupo pelo outro). As consequências que essas territorialidades implicam no substrato onde se dão (nos bairros urbanos) são diferenciadas, produzindo efeitos variados nas comunidades afetadas.
Em Porto Alegre, quando a constituição de territórios é feita pela negociação com outros grupos, formam-se os “embolamentos”. Na prática, isso significa que pontos de tráfico menores se alinharam a um grupo mais expressivo como fornecedor de seus ilícitos, que “facções” se uniram estrategicamente, ou, então, que passaram a apoiar grupos menores, acordando o oferecimento de armas e pessoal para a defesa de uma área de comércio de drogas. É algo semelhante ao que, no Rio de Janeiro, se chama de “comando”, uma congregação instável de grupos criminais mais organizados.
O desequilíbrio promovido pelos Bala na Cara nos mercados porto-alegrenses se deu, principalmente, por sua forma de territorializar os espaços periféricos, ligada ao seu objetivo de ampliar o controle territorial. O grupo começou a tomar pontos de tráfico nos quais os ilícitos vendidos tinham fornecimento de melhor qualidade do que os seus, não necessariamente expulsando seus comerciantes, mas coagindo-os a se associar ao grupo, a venderem suas mercadorias e a repassarem quantias financeiras para evitar uma invasão ou execução. Essas territorialidades são, assim, espécies de “embolamentos forçados” – nos quais o englobamento que se dá entre grupos não se firma por interesses comuns a ambos, assentando-se sobre relações hierárquicas de poder e de dominação.
Nesse caso, os territórios dos Bala na Cara se afirmam na violência como ato (a expulsão e o assassinato daqueles que se negam a vincular-se à facção) ou potencial (pela ameaça que paira aos integrantes de um grupo que aceita as condições dos Bala). Por outro lado, os Antibala são um conjunto de territorialidades em comum acordo, unidas pelo objetivo de frear os avanços do Bala na Cara. Assim, são grupos que compõem um “embolamento voluntário” – e é a resistência ao controle dos Bala na Cara e o sentimento coletivo de desprezo à facção que tornam certas áreas do município territórios dos Antibala.
Esses processos se dão em espaços de segregação que, em termos gerais, podem ser tomados como locais desprezados pelas classes mais favorecidas da sociedade, e cuja habitação é composta por pessoas que foram “empurradas” à vivência e permanência neles. Em Porto Alegre, as remoções de famílias de áreas centrais – que viviam em lugares pejorativamente chamados de “malocas” – e sua realocação para locais periféricos têm se consolidado, com maior profundidade, a partir dos anos 1980, intensificando-se progressivamente até os dias atuais. Esses movimentos acarretam a qualificação diferenciada das áreas da metrópole, que se tornam marcadas pelo acesso diferencial dos indivíduos à participação no plano econômico, político e social.
Os padrões desiguais de desenvolvimento urbano contemporâneos e a hierarquização do espaço social começam a se intensificar paralelamente ao aumento das territorializações do tráfico em comunidades desassistidas, cujo acesso externo passa a ser mais controlado, havendo um relativo “fechamento” (sempre permeável, pois os consumidores, as armas e as drogas advêm do lado de fora). A partir da virada para a década de 80, o imaginário social sobre as periferias também passa a se transformar, e a representação social do morador da “favela” vai sendo cada vez mais relacionada ao crime e aos mercados de ilícitos.
Assim, o medo coletivo se amplia, e a insegurança urbana abre caminho à exploração desses sentimentos pelo capital privado e pelo Estado, em especial através da especulação imobiliária e dos processos de gentrificação. Nessa lógica, também se insere a valorização de sistemas privativos de vigilância e de controle, que servem à sensação individual de manutenção de alguma segurança em uma realidade social cada vez mais imprevisível. Em municípios onde o padrão “centro-periferia” não pode mais ser observado, esse cenário é agravado, pois a segregação socioespacial se expressa com a justaposição de ricos e pobres, combinando a desigualdade de fato com uma relativa proximidade geográfica, como é o caso de Porto Alegre e do Rio de Janeiro.
Essa proximidade, entretanto, só se torna possível com o recurso a mecanismos de criação e estabelecimento de fronteiras: alarmes, cercas eletrificadas, muros altos, guaritas e cancelas, vigilância monitorada, etc. Com o crescente autoenclausuramento das elites e das classes médias, a proliferação de condomínios cada vez mais autossuficientes e exclusivos, a criação de espaços de lazer e circulação restritivos (ou de difícil acesso para determinadas partes da população), há a diminuição de vários tipos de interação social e espacial, e a homogeneidade dos que vivem dentro dos espaços de segregação e de autossegregação é confrontada com a heterogeneidade entre ambos.
Atualmente, os pontos de contato entre moradores de periferias e de outras áreas urbanas costumam restringir-se à compra de substâncias ilícitas por pessoas que não vivem em comunidades e pelo emprego da força de trabalho de seus habitantes em serviços pouco valorizados, como os braçais ou domésticos. Através do filtro territorial, que também se intersecciona com filtros raciais, de classe e de acesso à cidadania, também se articulam a seletividade policial e penal, a vulnerabilidade social e a sujeição à violência comum ou praticada por agentes estatais.
Portanto, a ausência do Estado nos espaços segregados – percebida pela precariedade de serviços, de lazer, do acesso à cultura, ao trabalho e à educação, da acessibilidade a outras partes da cidade, etc. – é acompanhada da presença substancial de seu braço armado: seja porque esses locais estão mais sujeitos a patrulhamentos de rotina de policiais, seja pela atuação de Unidades de Polícia Pacificadora, por episódios de emprego das Forças Armadas no combate à criminalidade quotidiana, ou por outras formas de militarização da questão urbana.
IHU On-Line – Que outras relações se estabelecem entre a favela, as comunidades de periferias, e a prisão, as cadeias gaúchas?
Marcelli Cipriani – Quando um indivíduo do sexo masculino é preso em Porto Alegre, ele será encaminhado para o Central, que é a “porta de entrada” do sistema. Antes de ser enviado para uma galeria, os policiais lhe perguntarão se ele faz parte de alguma facção, para que seja colocado nela. Caso o apenado não tenha vinculação com grupos criminais, o critério para definir onde ele viverá no presídio passa a ser o bairro de sua moradia na rua, e ele será colocado na galeria controlada pela facção que também controla essa área.
As galerias são corredores onde, lateralmente, se distribuem as celas nas quais deveriam ficar os indivíduos. Porém, devido aos graves problemas de superlotação do Presídio Central (sensivelmente mais críticos em galerias de facções), é inviável que as celas fiquem fechadas, e os apenados se distribuem pelos corredores. Em algumas galerias, eles se amontoam em colchões enfileirados e espalhados pelo chão, dada a falta de espaço extremada.
Evidentemente, é inviável que se faça um controle disciplinar do indivíduo em uma situação como essa: na verdade, os policiais não entram nas galerias, e quem faz o controle de cada uma delas são os próprios apenados, em especial pelos chamados “prefeitos” e por seus colegiados. São eles que organizam o cotidiano interno e mantêm a ordem, não a polícia. Em lugar disso, os agentes estatais fazem um gerenciamento de grupo agenciado pelos representantes das galerias, que repassam eventuais solicitações de apenados e servem como mediadores.
Diante disso, temos alguns aspectos importantes: o primeiro é que se formam “nichos” em cada galeria, pela homogeneidade de presos de uma mesma facção ou de um mesmo bairro; o segundo é que, dentro desses “nichos”, os apenados têm uma autonomia considerável, propiciada pelo acordo tácito entre estes e os policiais, visando-se a manter a “pacificação” do Central. Na organização interna está incluída, dentre outras atividades, a venda de celulares, a venda de drogas (que é bastante rentável dentro do presídio, apesar de ter reduzido após a adoção de scanners para revistas corporais em 2015), e a própria mercantilização da vida cotidiana.
Assim como em outros presídios do país, falta, no Central, desde o papel higiênico, o sabonete, o colchão, etc., até, no caso extremo dos “caídos” (presos que não têm visitas), recipiente para a alimentação. Em tais casos, ela acaba sendo feita em sacos plásticos e com o uso das mãos. Esses bens básicos, necessários à satisfação das mínimas condições concretas de vida dos indivíduos, serão fornecidos pelos grupos criminais, que têm acesso à cantina do presídio.
Existe, no Central, uma cantina (estabelecida sob a cobrança de aluguel e via licitação), onde produtos (de higiene, alimentícios, etc.) são expostos à venda para os presos. Entretanto, como seria inviável que todos os apenados se dirigissem até a cantina, cada galeria conta com a figura de um “cantineiro”, responsável por fazer as compras coletivas. O que ocorre, na prática, é que esse papel é assumido pela facção, que adquire os produtos e os revende a preços exorbitantes em “cantinas paralelas”.
Para além disso, existem outras formas de ocupar o vazio da presença do Estado ou a deficiência de seus serviços, que vão desde a cobrança pela entrada ou saída de aparelhos elétricos permitidos, mas de uso limitado (como ventiladores), até o fornecimento de advogados e passagens de ônibus para familiares de apenados que vivem no interior, por exemplo. O lucro gerado por uma galeria é expressivo a ponto de os integrantes de facções instrumentalizarem a superlotação em seu benefício próprio. Assim, quando se tranca a entrada de novos apenados em uma galeria de facção por motivos de falta de espaço, costuma-se haver reclamações por parte dos apenados que têm o seu controle.
Todas as atividades dos grupos no presídio se exercem na lógica da “dádiva”, sob exigência de “contrapartidas” claras ou fazendo com que os indivíduos se sintam, de forma permanente e prolongada pelo tempo, “na obrigação”. Cobranças quanto à efetuação de serviços pelo apenado na rua, após a saída do presídio, até pedidos para que seus familiares tentem entrar com drogas no estabelecimento ou enviem quantias financeiras são comuns. Já que as galerias de facções têm correspondência em bairros do município, e como as famílias dos apenados também costumam viver nessas regiões, o controle feito pelo grupo transcende o indivíduo preso, atingindo seus entes próximos.
Em síntese, como quem faz a segurança das galerias e controla a circulação de seus bens e serviços são os presos e não a polícia, o sujeito que acessa o presídio entrega a garantia de sua vida e a manutenção de sua sobrevivência diária para outros presos. Por consequência, estes últimos acabam controlando o lugar onde, na rua, os apenados moram, e onde, normalmente, suas famílias também vivem. Assim, se estabelece uma simbiose.
IHU On-Line – Gostaria de detalhasse mais como as relações de poder e os processos sociais no contexto do Presídio Central de Porto Alegre “vazam” para as periferias.
Marcelli Cipriani – O “vazamento” de processos sociais do Central para periferias (e vice-versa) pode ser bem ilustrado através de um exemplo local, em que uma antiga liderança de grupo criminal foi internamente derrubada. Paulo Ricardo Santos da Silva, também conhecido como Paulão da Conceição, costumava ser o líder da facção da Conceição, localizada no bairro Partenon, mas presente em ao menos uma dezena de bairros porto-alegrenses. Paulão, uma das últimas lideranças “supremas” de grupos criminais locais, eventualmente entrou em choque com seu enteado, Beto Drey, que buscava assumir seu controle. As atitudes de Beto Drey desagradaram metade dos detentos da galeria da Conceição, o que acabou por influenciar negativamente o poder de Paulão nos territórios do grupo. Esse clima de dissenso criou as condições para a emergência de Xu que, à época, era um dos gerentes da facção.
Assim, enquanto Paulão e Beto Drey disputavam o domínio do grupo, Xu foi estabelecendo as bases (no presídio e fora dele) para a deposição de ambos e para a criação de um novo modelo de gestão descentralizado, a partir da estrutura de um colegiado. Em funk gravado com um celular por membros da facção no Central, eles cantam que tomaram seu morro através da humildade, que seria o lema da “nova direção”.
Quando o comando da Conceição mudou, alterando as dinâmicas nos bairros (sobre as novas alianças, a compra, venda e fornecimento de ilícitos, por exemplo), o comando da galeria do grupo no Central também foi transformado. Naquele momento, aos aliados de Paulão restaram duas alternativas: ou aceitavam a perda do domínio do antigo líder, acatando as novas orientações internas, ou deveriam sair da galeria. O oposto também ocorre, e se a galeria prisional tem grande influência na facção (por exemplo, se indivíduos em posições elevadas de poder se encontram presos), as determinações de dentro refletirão as atividades externas.
Outro fator a impactar as relações sociais entre a prisão e a rua é o perfil do crime local e dos integrantes de facções dos anos 90 até o presente. Em sentido mais amplo, vão se perceber transformações fundamentais nas políticas de punição do país: por um lado, o fim da ditadura militar na década de 1980 coincide com o início do encarceramento em massa. Ao mesmo tempo, a adoção do discurso de “guerra às drogas”, importado dos Estados Unidos, vai criar um novo inimigo social: não mais o comunista, mas o traficante.
Esse discurso adquire força em um momento no qual o sistema de Importação-Exportação-Atacado das substâncias ilícitas também se reordena no Brasil, com o aumento de sua entrada no país e o barateamento de seu consumo. Em paralelo, a priorização da repressão ao comércio de drogas de varejo e a falta de articulação entre a polícia civil e a polícia militar vêm obstando o avanço de investigações, comprometendo o sucesso de ações que poderiam causar real impacto nas dinâmicas do tráfico de ilícitos. Em oposição, a prisão em flagrante de pequenos comerciantes se tornou o foco do controle social, e o resultado observado é aquilo que se conhece por “enxugar o gelo”.
Com a nova lei de drogas de 2006 (cuja definição sobre o enquadramento por uso ou tráfico é deixada à discricionariedade de policiais na abordagem, de membros do Ministério Público na acusação e de juízes no julgamento), se deu o agravamento desse cenário, com o número de presos triplicando no país na última década e os índices de presos provisórios tornando-se altíssimos. A preferência das instituições de segurança pública e justiça criminal pela alternativa da prisão (e da prisão por motivo de drogas), e seu desprezo por medidas alternativas de punição, têm sido fatores fundamentais à padronização da população carcerária e à sua cooptação por facções criminais.
Somando-se a isso, em âmbito local, o recente aumento das rivalidades entre facções e da crueldade nas ações de seus membros acabou por produzir inimizades generalizadas, o que influencia a instabilidade das redes de relações criminais. A forma brutal de lidar com o crime é, por exemplo, simbolizada pelo próprio nome da facção dos Bala na Cara, que remete ao “tiro de esculacho” – tiro dado no rosto, para fazer com que a vítima de assassinato seja velada com o caixão fechado.
O quanto mais envolvido o indivíduo estiver com os conflitos armados e com os homicídios (ou “traficídios”, homicídios relacionados às disputas internas ao tráfico), mais apoio e proteção de seu grupo ele irá necessitar, o que acirra suas relações de pertencimento. O Central cristaliza e complexifica essa vinculação agregando outros elementos, como os referentes a favores e serviços oferecidos nas galerias. A polícia também desempenha esse papel na medida em que, apesar do aumento dos homicídios no estado, a grande maioria dos apenados se encontram presos por tráfico, roubo e furto. Em Porto Alegre, os flagrantes policiais em bairros desassistidos são responsáveis por mais de 90% das prisões efetuadas, o que delineia o padrão das relações no ambiente carcerário.
IHU On-Line – Você tem uma experiência de pesquisa com travestis e transexuais no ambiente do sistema carcerário. O que mais lhe chamou atenção nesse estudo?
Marcelli Cipriani – O Presídio Central, assim como outros presídios brasileiros, é caracterizado pelo tratamento deficitário (muitas vezes violento) concedido aos apenados. Tratando-se de um estabelecimento masculino, e no qual os valores e comportamentos vinculados à hipermasculinidade são celebrados, em seu cotidiano também se articulam a transfobia, a homofobia e o sexismo. Não foi surpresa, portanto, entrar em contato com informações sobre os abusos aos quais as travestis presas estavam sujeitas, tanto por parte dos agentes da Brigada Militar quanto pelos demais apenados.
Essas manifestações se expressavam em termos multidimensionais. Desde o campo simbólico, pela negativa dos policiais em chamar as travestis por seu nome social (apesar da existência de decreto governamental nesse sentido), tratando-as pelos nomes de registro, até na violência física, por espancamentos protagonizados pela polícia. Além disso, as travestis costumavam ter seus cabelos raspados, eram proibidas de usar maquiagem, de pintar as unhas, e de se vestirem com roupas socialmente consideradas como femininas. Quanto ao convívio com demais apenados, sua exposição às violências físicas e sexuais eram reiteradas, e não era incomum que elas fossem usadas como “mulas” no transporte de substâncias ilícitas.
Esse cenário mudou em 2012, quando foi criada a “3ª do H” – 3ª galeria do pavilhão H –, onde travestis encaminhadas para o Presídio Central e seus companheiros homossexuais passaram a viver. Suas experiências, durante esse período, são bastante enriquecedoras para um debate sobre os processos de mudança social, a partir dos tensionamentos entre o peso das estruturas da sociedade e as possibilidades de agência dos indivíduos em um espaço duro como a prisão. A conquista da galeria foi resultado de uma conjunção de esforços, articulando a mobilização intensa das travestis presas com a atuação de organizações de direitos de travestis e de mulheres transexuais. Isso ocorreu ao mesmo tempo em que se estabelecia uma conjuntura favorável no âmbito do governo estadual, que passava a intensificar as políticas públicas de gênero e identidade.
Entretanto, tal processo de mudança não foi pleno, pois não bastou para assegurar o acesso à cidadania das travestis presas, que seguem abrindo mão de outros direitos (como o estudo e o trabalho, por exemplo, que poderiam lhes fornecer a remição da pena), para evitar o risco de abusos pelo contato com outros apenados. Ainda, as poucas possibilidades de geração de renda que são oferecidas a elas costumam reforçar estereótipos de gênero e de feminilidade, bem como reproduzir a “docilização” de suas existências, que devem ser “comportadas”.
Na atualidade, a 3ª do H escapa aos códigos normativos de galerias controladas por facções, e é orientada segundo outros critérios de sociabilidade. Além disso, assim como na galeria dos trabalhadores, dos apenados em programa de desintoxicação e dos religiosos, nela tanto as drogas quanto os celulares e as armas estão absolutamente vetados.
IHU On-Line – Que análise faz sobre o papel da mulher num contexto de criminalidade, seja na cadeia ou na comunidade de periferia?
Marcelli Cipriani – Apesar de a população carcerária feminina ter crescido consideravelmente nas últimas décadas, e de grande proporção dessas prisões ter sido motivada pelo uso, venda ou transporte de drogas, entendo que o controle sobre os mercados de substâncias ilícitas (de dentro de presídios e fora deles) é essencialmente articulado por homens, com as mulheres ocupando posições coadjuvantes na produção de efeitos atribuídos ao tráfico em espaços urbanos.
Isso não quer dizer, todavia, que não há mulheres em posições de poder nas dinâmicas dos comércios de drogas, tampouco que, em suas trajetórias nas vivências criminais, elas não assumam papéis de protagonistas. Também não significa que, como erroneamente entendido por algumas visões mais tradicionais, o desejo de angariar poder não seja motivação de muitas mulheres para a entrada nos negócios de entorpecentes.
A inserção das mulheres no “mundo do crime” parece ser estimulada por uma variedade de fatores, que vão desde a proteção a companheiros envolvidos com o tráfico, até o potencial de empoderamento contido na atividade criminal, passando pela necessidade de complementação da renda ou mesmo de sua obtenção, em face do alto nível de desemprego atestado na categoria em que elas se alocam. Entretanto, como se dão predominantemente no Brasil, as principais redes e mercados de substâncias ilícitas são protagonizadas por grupos criminais formados por apenados em presídios masculinos, não concentrando sua organização em torno de mulheres ocupando posições de poder (econômico e simbólico), que costumam acessar pontos secundários.
Todavia, em que pese ocuparem lugares secundários nas dinâmicas mais expressivas dos negócios de entorpecentes, as mulheres não deixam de ser afetadas por ele. Assim, submetem-se de diferentes formas às suas dinâmicas, assumindo comportamentos de risco; têm suas interações familiares afetadas por um marido, pai ou filho que se encontra preso (através do transbordamento do estigma prisional e da mudança na lógica de renda familiar, por exemplo); podem ser sujeitadas pelo domínio de facções sobre seus entes queridos, que também as alcança; e o simples fato de morarem em locais que estão sob controle de grupos criminais pode acarretar a instituição, por parte desses, de normas sobre suas condutas, assim como a imposição de critérios para seus relacionamentos afetivos.
Seja qual for a maneira de analisar as mulheres nessas redes e mercados, com elas participando deles ativamente ou sendo afetadas indiretamente por suas dinâmicas, é preciso perceber que, na maioria dos casos, estamos nos referindo a certas mulheres: aquelas que vivem em bairros sociopolítico-espacialmente segregados, que estão vulneráveis à violência do crime comum e da seletividade policial, que se encontram nas fronteiras do trabalho formal e informal, muitas que são chefes de família, e que costumam estar expostas à exclusão racial e de classe.
Notas:
[1] Dilonei Francisco Melara (1954-2005): foi um criminoso brasileiro. Ficou conhecido por liderar o maior motim da história de Porto Alegre, no sul do Brasil. No episódio, acontecido em julho de 1994, ele e parceiros de prisão tomaram 27 reféns, escaparam do Presídio Central de Porto Alegre e invadiram, em um táxi, o saguão do hotel mais luxuoso da época, o Plaza São Rafael, no centro de Porto Alegre. O incidente causou a morte de cinco pessoas e um dos reféns ficou paraplégico. A partir de então, o assaltante de bancos fugiu várias vezes da prisão. Ex-agricultor nascido em São José do Ouro, Melara ingressou na carreira criminosa assaltando táxis e ônibus em Caxias do Sul, nos anos 70. Uma década depois, integrou a mais famosa quadrilha de ladrões de banco do estado. Melara foi assassinado em 2005. (Nota da IHU On-Line)
[2] Operação Canarinho: criada pela secretaria de Segurança do governo do Estado do Rio Grande do Sul em 1995 para apoiar o trabalho dos agentes penitenciários, a operação consiste no emprego de policiais militares, a Brigada Militar gaúcha. A Operação Canarinho foi uma força-tarefa temporária que deveria durar seis meses, mas que segue em vigor até hoje, como no caso do Presídio Central de Porto Alegre. (Nota da IHU On-Line)
[3] Vila da periferia de Porto Alegre. (Nota da IHU On-Line)
[4] O condomínio Princesa Isabel, na avenida do mesmo nome, no bairro Azenha, em Porto Alegre, foi construído pela prefeitura como projeto de regularização fundiária. No local, havia uma vila. Os barracos foram destruídos e deram lugar a prédios, assentando os moradores em apartamentos. (Nota da IHU On-Line)
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Presídio Central de Porto Alegre e os coletivos criminais do Rio Grande do Sul. Entrevista especial com Marcelli Cipriani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU