Apesar de Porto Alegre apresentar “índices de favelização” inferiores aos do Rio de Janeiro, entre 2000 e 2010 “houve um crescimento de 34%” de periferias na capital gaúcha, superando a proporção das áreas de favela na cidade de São Paulo, que é de 11,4%, diz Leandro Pinheiro à IHU On-Line.
“Bairros como Bom Jesus e Lomba do Pinheiro (zona leste), Mario Quintana e Rubem Berta (zona norte) ou Restinga (extremo sul) apresentam, cada um, populações superiores a 30 mil habitantes, podendo chegar a mais de 70 ou 100 mil (como são os casos do Rubem Berta e Restinga respectivamente)”, informa.
De acordo com o pesquisador, atualmente a capital gaúcha tem “um déficit habitacional de cerca de 38 mil unidades”, o que equivale a 8,7% dos domicílios. “A situação mais grave ocorre nos bairros Lomba do Pinheiro e Restinga, ambos com percentual de déficit acima de 14%”, diz.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Leandro Pinheiro descreve a situação de algumas das periferias da capital gaúcha e comenta que, segundo os moradores, na última década houve melhorias nas condições de vida da população. “Porém, na maioria das vezes, não parecem associar as mudanças a lutas e conquistas, ou distingui-las como bandeira de um grupo partidário ou outro. Figuras pessoais têm proeminência em suas interpretações sobre a política, com destaque aos nomes de Lula e Dilma, e, ainda assim, estes são passíveis de questionamento quando o cenário socioeconômico sinaliza para a retração das ainda incipientes conquistas”, relata.
Neste momento, frisa, as pessoas que vivem nas periferias sentem o impacto da crise econômica, especialmente na queda da “qualidade dos serviços públicos e na diminuição das alternativas de trabalho”. As alternativas de emprego, pontua, também “diminuem por conta do desaquecimento da economia e/ou da redução das frentes de ação abertas diretamente pelo governo. As áreas de construção civil ou de segurança e limpeza contratam menos hoje e atingem diretamente trabalhadoras e trabalhadores moradores de localidades de periferia”.
Leandro Pinheiro (Foto: IHU)
Leandro Pinheiro é professor na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. É graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, mestre em Administração pela UFRGS e doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, em 2008, com estágio realizado na Universidad Complutense de Madrid.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como é possível caracterizar as periferias da capital gaúcha?
Leandro Pinheiro - Penso que seria difícil fazer uma caracterização exaustiva, dada a complexidade dessas realidades e, em articulação, os usos possíveis da própria noção de “periferias”.
Partilhamos certo entendimento no uso dessa expressão, e poderíamos evocar, aqui, imagens de contextos com moradias semiacabadas, em condição precarizada pela existência insuficiente de equipamentos e serviços públicos; casas pequenas situadas junto a ruas estreitas, sem prévia planificação, em geral situadas em regiões fisicamente distantes do que politicamente se define o centro do município. Contudo, as localidades periféricas são bastante diversas na cidade de Porto Alegre, e em seu interior as desigualdades diferem-se na intensidade e na natureza. As expressões “favela” ou “vila” são signos de tais diferenciações, de modo que entre seus moradores é possível perceber hierarquizações exercidas no cotidiano, articuladas aos laços de solidariedade que por vezes praticam. Possuem condições diversas de acesso a recursos econômicos e culturais e diferentes pertenças étnicas ou religiosas.
Se tomarmos as localidades onde são constatados os maiores índices de vulnerabilidade social e violência em Porto Alegre, há grandes contingentes populacionais, algumas vezes superiores às populações de muitas cidades gaúchas. Para citar alguns exemplos, bairros como Bom Jesus e Lomba do Pinheiro (zona leste), Mario Quintana e Rubem Berta (zona norte) ou Restinga (extremo sul) apresentam, cada um, populações superiores a 30 mil habitantes, podendo chegar a mais de 70 ou 100 mil (como são os casos do Rubem Berta e Restinga respectivamente).
A formação desses núcleos tem antecedentes em políticas de planificação e higienização da cidade no início do século XX, que removiam as populações mais empobrecidas, residentes em cortiços, para as bordas do centro. Sua constituição ganha vulto conforme as políticas de governo e o crescimento industrial influem nos fluxos migratórios campo-cidade, sobretudo a partir da década de 1940, sendo o êxodo rural dos anos 1960 e 1970 o período mais expressivo no crescimento de localidades periféricas (como em outras capitais brasileiras).
Assim, passamos a ter regiões constituídas no curso de crescimento e alastramento da urbe, sendo sua disposição geográfica cambiante à medida que sua população era deslocada para regiões distantes, com infraestrutura urbana frágil ou inexistente, segundo atuavam as pressões do mercado imobiliário e, em congruência, as intervenções do poder público. Vale lembrar, é neste cenário que a noção de “periferia” ganha expressão, como uma das maneiras de designar contingentes de trabalhadores marginalizados no acesso a recursos sociais da cidade.
No entanto, se é possível perceber marcas comuns de uma história de inclusões precarizadas, a disposição geográfica de cada localidade apresenta relações diferentes com o “centro” e com outros bairros, conforme a proximidade, as circunstâncias de conurbação e os fluxos migratórios pendulares existentes no município e na região metropolitana. Ademais, os bairros se constituem desde diferenciações socioespaciais internas variadas e demonstram organização política e cultural distinta. Fenômeno que podemos associar à implantação de condomínios de classe média em bairros afastados do centro histórico nas últimas décadas (e à conformação de equipamentos públicos e serviços comerciais que os acompanham); ou que, noutras situações, vinculamos à estratificação das comunidades nominadas como periféricas, por conta da imigração em períodos distintos e da conquista desigual e fragmentária de recursos públicos (em saneamento, energia elétrica, pavimentação, áreas de lazer etc.).
O trânsito por Porto Alegre é ilustrativo neste sentido, ao nos mostrar cenários cuja formação e cujo crescimento dispõem lado a lado localidades bastante desiguais em quase todas as regiões. Se observarmos o mapa da cidade, podemos verificar que os segmentos mais empobrecidos estão em diferentes partes, em convívio com populações mais abastadas. Em alguns casos, é possível visualizar que vilas e favelas são contíguas, estendendo-se de áreas de divisa municipal às de morros. Embora reconheçamos um centro histórico e político, é necessário considerarmos a existência de várias centralidades na capital gaúcha.
A diversidade também se expressa nas formas de experienciar a identificação com esses lugares. Há aqueles que fazem da condição periférica uma pertença comum e mote de seus enunciados; e há quem perceba ou vivencie desigualdades, mas não interprete seu lugar e seu cotidiano desde a noção de “periferia”, lembrando-nos de que esta é também um constructo relacionalmente produzido. O cotidiano por lá desenha, além disso, um quadro de práticas distintas a constituir as experiências dos sujeitos. Conforme ocupam os dias entre suas atividades e suas sociabilidades, configuram espaços de relação preferenciais, que fazem de sua localidade um lugar singularizado para vivências e pertenças; espaços de ação que atravessam contextos, articulam “periferias” ao “não periférico” e, ainda que se realizem no mesmo território, nem sempre proporcionam encontros entre os moradores do que nós, observadores, denominamos uma mesma comunidade. Tais realidades demandam-nos o reconhecimento de sua condição diversa e caleidoscópica e uma abordagem topológica das relações que as constituem.
A noção de “periferia”, hoje, é manifestação de “fronteiras” socioeconômicas e culturais, para além dos distanciamentos topográficos que possamos delimitar. As expressões artísticas de contextos vulnerabilizados a partir dos anos 1990, com destaque às frentes de ação do Hip Hop, contribuíram para a formação de signos de identificação neste sentido, com apelo especialmente entre os jovens na “conversão do estigma em emblema”, como afirma Rossana Reguillo. Diria que tal dinâmica redimensiona as tensões “centro-periferia”, que podem se visibilizar em diferentes lugares e espaços de ação, quando as esquinas do centro histórico são apropriadas por dançarinos de breaking, por exemplo, ou quando observamos as lutas de movimentos por moradia representadas nas ocupações urbanas.
IHU On-Line - Quais são as situações de mobilidade, habitação, segurança, educação e saúde nas periferias de Porto Alegre?
Leandro Pinheiro - Ponderando os diferentes parâmetros mencionados na questão, tomarei dados de cinco bairros, localizados em diferentes regiões da cidade: Bom Jesus, Lomba do Pinheiro, Mario Quintana, Restinga e Santa Tereza. Parto das séries estatísticas disponibilizadas pelo Observatório da Cidade de Porto Alegre - ObservaPOA, com base no censo populacional de 2010, o que pode nos trazer uma aproximação significativa às condições de vida nas periferias da capital.
Nessas localidades, mesmo sem ponderar suas diferenciações internas, os índices sinalizam condições de acesso comparativamente precarizadas. A situação presente dos contingentes mais vulnerabilizados nesses bairros resulta dos fluxos migratórios já citados (campo-cidade ou no interior do espaço urbano), do predomínio de inserções laborais informais e de renda diminuta e de segregações étnicas associadas. É preciso lembrar que as populações negras foram historicamente relegadas aos territórios mais carentes, integrando boa parte dos grupos que vivenciaram políticas de remoção. Para Bom Jesus, Mario Quintana e Restinga, mais de 38% dos habitantes são autodeclarados negros (ao passo que este índice é de 20% para o conjunto da cidade).
A atual condição de acesso a serviços e equipamentos públicos resulta de uma série de mobilizações conduzidas pelos habitantes, com destaque aos anos 1970 e 1980, quando tivemos a formação de associações de moradores combatentes, alinhadas a militâncias de esquerda. Antes e durante esse processo, há que se destacar a atuação das mulheres, cuja atuação no âmbito das vilas e comunidades é pouco visibilizada. Seja por redes de reciprocidade e apoio gestadas no cotidiano, seja na reivindicação de condições mínimas de saneamento, saúde e educação, podemos perceber a presença de lideranças femininas.
Em geral, os quadros gestores das associações eram compostos majoritariamente por homens, e as mulheres pouco se lançavam à ação política fora do bairro, o que contribui para certo ocultamento. Mas quando estabelecemos diálogos em campo e conhecemos as histórias de vida de moradores, moradoras e ativistas em periferias, a atuação das mulheres se mostra muito relevante para a permanência das lutas.
Podemos assinalar ainda que os equipamentos de que dispõem hoje estas comunidades condizem ao incremento conquistado a partir da década de 1990, junto às iniciativas de participação popular. As condições de saneamento, regularização de moradias, acesso à educação e promoção cultural foram significativas naquele período, embora ainda insuficiente para a demanda existente.
Pelo censo de 2010, Porto Alegre teria cerca de 13,7% de sua população vivendo em aglomerados subnormais. A capital gaúcha apresenta índices de favelização inferiores à cidade do Rio de Janeiro (22%) e, além disso, estes núcleos não estão localizados tão próximos a áreas visibilizadas como nesta última. Por outro lado, houve um crescimento de 34% entre 2000 e 2010, de forma que superamos a proporção da cidade de São Paulo (11,4%).
A capital gaúcha apresenta um déficit habitacional de cerca de 38 mil unidades (8,7% dos domicílios). Nestes termos, a situação mais grave ocorre nos bairros Lomba do Pinheiro e Restinga, ambos com percentual de déficit acima de 14%. Na maioria dos casos, falamos de coabitação familiar (famílias conviventes) ou ocupações irregulares. Em parte, a persistência de tais índices decorre de uma política habitacional que, até pouco tempo, acabava por privilegiar segmentos de classe média, com vínculos formais e/ou estáveis de trabalho.
Considerando os bairros elencados acima, os dados para ‘número de domicílios pobres com renda per capita de até 0,5 salário mínimo’ são os indicadores que sinalizam de maneira mais aguda as desigualdades. Se a média para Porto Alegre era de 9,8% em 2010, superava os 20% nas localidades de referência aqui, chegando a 31,1% para o bairro Mario Quintana. Nestes locais, o rendimento médio dos responsáveis por domicílio seria de pouco mais de dois salários mínimos, quando a média da cidade era de 5,29. Agrega-se a isso a informalidade dos vínculos de trabalho, mais recorrentes que para o restante da cidade, sendo que, para alguns segmentos, podemos falar de trajetórias laborais com apenas episódios de contratação com carteira assinada, em itinerários de migração e trabalho precários que podem se estender entre gerações numa família. Podemos encontrar exemplos dessa situação entre aqueles que trabalham como catadores nos diferentes bairros.
Os índices educacionais (analfabetismo, anos de estudo dos responsáveis por domicílio, abandono escolar, IDEB) demonstram acessos mais fragilizados à instituição escolar, com destaque ao abandono do ensino médio, que chega a ser o dobro ou quase o triplo do índice municipal (10,5% para Porto Alegre e 29,6% no bairro Lomba do Pinheiro, por exemplo). No entanto, a rede de ensino de Porto Alegre é bastante abrangente e possui infraestrutura e política de valorização docente consideravelmente qualificadas, se comparadas a outras redes municipais ou à rede estadual. As dificuldades com a permanência da escola tendem a se associar às necessidades de subsistência e, vale aventar, aos diferenciais em capital cultural acumulado pelas famílias. Então, não só o abandono é superior, o processo de escolarização tende a ser truncado, permeado por descontinuidades decorrentes das urgências da vida (necessidade de trabalhar, a urgência em cuidar de familiares, restrições à circulação pelo tráfico etc.).
As unidades básicas instaladas não suprem as demandas de populações destes bairros, com grande demora nos atendimentos. Não raro, os moradores de localidades periféricas são encaminhados a hospitais em pontos distantes da cidade, porque a unidade hospitalar próxima tem poucos serviços instalados. E chegando lá, precisam conviver com os problemas de uma rede pública sobrecarregada também pelas solicitações da região metropolitana. Não custa lembrar que uma situação de precarização múltipla de recursos (em habitação, renda, educação, saúde...) e de negligência com estas populações tende a gerar um quadro de amplificação recursiva das dificuldades enfrentadas por cada um dos equipamentos/serviços públicos.
As alternativas de transporte se somam a tais precariedades. A malha de itinerários de ônibus começou a se expandir mais significativamente nos anos 1950, por necessidade de viabilizar o deslocamento de mão de obra no interior da cidade. Hoje, a malha é relativamente abrangente, o que remonta especialmente às conquistas dos anos 1990. Porém, os bairros mais vulnerabilizados ou mais distantes possuem linhas com frequência insuficiente, e, não raro, os usuários andam em ônibus lotados em diferentes horários do dia. Outro fator que restringe a mobilidade urbana vem sendo a elevação do custo da passagem. Considerando a necessidade de deslocamento diário em função das atividades laborais e as remunerações tendencialmente reduzidas para moradores de periferias, o custo com transporte inclina-se a inibir a circulação pela urbe.
É também nos bairros mais vulnerabilizados que encontramos índices de violência bastante elevados. Neste sentido, há um dado que é preciso destacar. Em 2010, a taxa de homicídios de jovens negros na cidade (58%) era superior à taxa de homicídios de jovens (51%), situação que se mantém e se agrava quando nos dirigimos aos bairros mais empobrecidos (na Restinga, por exemplo, a taxa chegava a 72,7%). Faço tal destaque porque este dado se articula à situação vivenciada pelos moradores das periferias no que tange à segurança. Além das restrições e conflitos instaurados pelo tráfico de drogas, a violência engendrada pela polícia também faz inúmeras vítimas. Nas incursões às periferias, é comum escutar relatos de truculência e desrespeito por parte da força policial, assim como os depoimentos de moradores sobre as táticas de “boa vizinhança” com agentes do tráfico: em situação de presença insuficiente e/ou repressiva do Estado, algumas vezes criam-se laços com aqueles que também engendram risco e insegurança.
IHU On-Line - Como o crescimento econômico do Brasil nos últimos anos impactou a vida nas periferias gaúchas? Como os moradores das periferias compreendem as políticas públicas desenvolvidas durante os governos Lula e Dilma, por exemplo? Eles comentam se a vida melhorou ou não nos últimos 15 anos? Em que aspectos?
Leandro Pinheiro - A partir de minhas incursões em bairros de Porto Alegre, percebi melhora no acesso à carreira escolar, certa atenuação na precariedade dos serviços de saúde básica, ou, então, amenização do déficit habitacional e da vulnerabilidade das condições de moradia, especialmente pela destinação de recursos do Programa ‘Minha Casa, Minha Vida’ a algumas localidades.
A ampliação do acesso à escolarização pública teve incrementos já a partir da segunda metade da década de 1990. Se comparamos grupos etários, vemos que a permanência na escola apresenta aumento entre os mais jovens, fruto da ampliação das matrículas, das políticas de correção de fluxo e, em localidades de periferia, da articulação dos vínculos escolares a programas como o ‘Bolsa Família’. Neste sentido, iniciamos uma inflexão nas probabilidades de chegada ao ensino médio. Isso repercute, de outra parte, nos tempos dedicados ao trabalho, que, historicamente, ocorre de forma precoce entre moradores de contextos vulnerabilizados. Além disso, considerando-se as possibilidades de acesso ao ensino superior vislumbradas desde a instauração do ProUni e o sistema de cotas, potencializa-se a construção de sentido para a carreira escolar no espaço de possíveis das juventudes de periferia.
Passando a outro aspecto, a exemplo do que indicam os números recorrentemente divulgados em relação ao conjunto do país, observa-se a ampliação das possibilidades de trabalho e um aumento de poder aquisitivo. Dados do IBGE assinalam a ampliação de empregos com carteira assinada entre 2003 e 2012, por efeito, dentre outros fatores, do crescimento da economia no período. E a formalização do trabalho tem repercussões importantes no cotidiano das periferias.
Primeiramente, garante certa estabilidade ao longo do ano e mesmo em períodos de menor atividade em alguns setores, o que é conquista importante para aqueles acostumados às oscilações das contratações informais e precárias.
Em segundo lugar, associado às políticas federais de facilitação do crédito (sobretudo via bancarização), tem contribuído a ampliação do consumo para populações de baixa renda, em que pese aí os riscos de captura dos recursos de segmentos empobrecidos pelo sistema bancário-financeiro.
Devemos mencionar, nesse contexto, a repercussão da ampliação dos vínculos formais articulada ao aumento real do salário mínimo. Isso afetou positivamente a renda dos trabalhadores e, também, dos aposentados. E, vale lembrar, estes últimos têm lugar importante no custeio dos domicílios, dado que as dinâmicas familiares entre grupos populares tendem à coabitação e à criação de laços de reciprocidade que extrapolam a formação nuclear convencional da família. Não raro, nas residências, vivem juntos mães, filhos/netos e avós, sobrinhos etc.
Dos impactos percebidos desde meus diálogos em campo, devo somar também a importância dos recursos recebidos pelo Programa ‘Bolsa Família’. Em contextos vulnerabilizados, trata-se de um incremento de renda significativo. Embora seja persistente o discurso contra a execução deste tipo de iniciativa, sob o argumento preconceituoso e bastante disseminado de que se trata de incentivo à ociosidade, por não ter a convencional vinculação direta trabalho-remuneração, a política de renda mínima deveria ser reforçada. Acompanho a realidade de pessoas que trabalharam e trabalham muito, cujas formas de inclusão precarizada contribuem à manutenção do sistema capitalista, embora sigam invisibilizadas.
O capitalismo está repleto de exemplos de articulações entre iniciativas empresariais de grande vulto e investimento tecnológico com realidades de trabalho exploratórias. Nas periferias de Porto Alegre isto não é diferente. Os valores recebidos pelos usuários do Programa configuram apenas uma atenuação das condições indignas em que vivem; tais recursos são usados com a astúcia que aprenderam nas instabilidades de seus itinerários de vida.
Nesse contexto, os moradores das periferias comentam a ampliação de suas alternativas e a melhora nas condições de vida. Querem a manutenção dos programas e das políticas. Porém, na maioria das vezes, não parecem associar as mudanças a lutas e conquistas, ou distingui-las como bandeira de um grupo partidário ou outro. Figuras pessoais têm proeminência em suas interpretações sobre a política, com destaque aos nomes de Lula e Dilma, e, ainda assim, estes são passíveis de questionamento quando o cenário socioeconômico sinaliza para a retração das ainda incipientes conquistas.
Cabe aventar algumas hipóteses explicativas para o fenômeno. Para a maioria dos segmentos, o principal impacto no cotidiano se consubstanciou pelo aumento do poder aquisitivo e pelo consumo, sem associação direta com a participação em mobilizações e reivindicações políticas. Em articulação, parece haver certo entendimento de que a “política” está distante, ou um sentimento de que não conseguem efetivamente interferir nas arenas de poder. É importante lembrar que esta população não tem ido às ruas nas mobilizações recentes/atuais. De forma geral, eles assistem a um “jogo” entre agentes a que eles têm contato eventual e que pouco se diferenciam, tal o distanciamento das instâncias de tomada de decisão nas trajetórias de vida dos grupos mais vulnerabilizados.
Penso que isso não se articula só ao descolamento entre a ação de políticos de carreira e as demandas de vários setores da população, que experienciamos de maneira patente na atualidade. Trata-se de uma relação com aparatos estatais construída histórica e cotidianamente, em que os recursos chegam às lufadas e são insuficientes. Favorecemos, com isso, a compreensão de que, no final das contas, os sujeitos deverão contar com sua astúcia e com suas redes próximas. Aliás, aí estão as pertenças mais narradas: as redes de reciprocidade entre familiares e vizinhos e, entre jovens, também com amigos. A relação com os aparatos institucionais é de desconfiança. Um Estado cuja atuação sentida é policialesca, incidindo nas mortes de jovens negros como ocorre nas periferias, reforça tal condição.
Mas há inflexões a valorizar e pelas quais lutar. São perceptíveis mudanças nas tomadas de posição entre aqueles que usufruíram de bolsas e cotas universitárias, lograram permanência na escola rumo ao ensino médio ou atuaram em movimentos sociais. Pesquisa do Ibase (2010) traz análises em relação às quais consideraria articulações. Quando perguntado sobre a frase “nos dias de hoje, os/as jovens negros/as e indígenas têm as mesmas oportunidades”, 47,4% dos consultados (jovens e adultos) concordavam. A pesquisa sinalizava que a percepção de desigualdade racial aumentava conforme a renda, a escolaridade, a efetividade de participação em coletivos e também que ela era mais comum entre os mais jovens, entre os quais, ademais, a autodeclaração étnica é mais contundente.
IHU On-Line – Que percepção os jovens têm do ProUni, especialmente neste momento?
Leandro Pinheiro - Os dados nacionais sinalizam para isso, com destaque ao atendimento de contingentes autodeclarados negros ou pardos, se incluirmos aí também o sistema de cotas. Além disso, conheci vários casos de acesso em minhas incursões a bairros vulnerabilizados da cidade ou mesmo desde minhas atividades como professor universitário.
Esta é uma conquista cuja importância pode ser amplificada conforme o poder simbólico de que goza a carreira escolar no âmbito familiar. Muitas vezes, a permanência nos estudos é de difícil viabilização, dado que há outros custos associados (transporte, alimentação, material para leituras etc.). E, em algumas situações, a conclusão do curso superior é um logro de toda a família, envolvendo muito concretamente pais, avós e irmãos na viabilização do êxito do estudante.
Interessante observar que o acesso à faculdade guarda potências. Percebo uma mudança entre esses graduandos em relação ao entendimento sobre as políticas públicas e, em especial, acerca da importância das bolsas e cotas de acesso, associando-as a um direito a garantir para as populações mais empobrecidas. Aqui, é necessário reconhecer o papel dos cursinhos pré-vestibular populares, que apoiam os candidatos de grupos vulnerabilizados na melhora de seus desempenhos, compensando dificuldades geradas por escolarizações truncadas, e que, além disso, contribuem para reflexões sobre o direito à educação.
Há também a potencialidade de aqueles que se tornam estudantes de ensino superior colaborarem para a formação de opiniões pela valorização deste tipo de políticas públicas, sobretudo em suas relações mais próximas, com familiares e amigos. Entretanto, isso demandaria uma pesquisa específica sobre as tomadas de posição coletivas resultantes de um acesso crescente de representantes de grupos populares ao ensino superior. Trata-se de uma mudança a ser ponderada a longo prazo e que tem sua persistência ameaçada pelo cenário político institucional que experienciamos hoje.
IHU On-Line - Como as pessoas que vivem nas periferias de Porto Alegre se relacionam com o restante da cidade?
Leandro Pinheiro - A circulação pelos espaços da cidade é variável, conforme as possibilidades de renda e as redes de pertença. O crescimento da economia e os programas sociais, no cotidiano de moradores de periferias, converteram-se em melhores condições de trânsito por espaços públicos de lazer na cidade. Contudo, uma apropriação da urbe para além do fluxo pendular relacionado ao trabalho depende também dos arranjos relacionais dos sujeitos e das disputas simbólicas na cidade.
Há aqueles que transitam, sobretudo, entre sua localidade e o lugar onde trabalham (noutros bairros ou mesmo noutras cidades metropolitanas), enquanto outros poucos saem de suas vilas ou regiões; alguns criam redes de circulação e sociabilidade entre diferentes territórios (na cidade, na região metropolitana, no país) e fazem da condição periférica uma pertença comum e mote de seus enunciados.
Um corte etário pode ser ilustrativo neste sentido. Quando conversamos com adultos e, principalmente, com idosos, temos narrativas da migração para a cidade, aonde chegaram e precisaram lutar por condições de moradia. Depoimentos que se associam à formação dos bairros periféricos, à conquista de equipamentos públicos e à narrativização de um senso de comunidade. Em contraste, os jovens nos falam de vivências urbanas de forma estrita, que, de um lado, pode constituir experiências de pertença social que conectam pessoas em condição periférica, e, de outro, constrói redes de sociabilidade e amizade que ambientam a circulação e a apropriação do espaço público (no bairro e na cidade), também por práticas culturais e esportivas (e não só no trânsito laboral cotidiano).
Tal forma de circulação tem antecedentes nas práticas musicais e festivas das territorialidades negras, que já promoviam a circulação (não-laboral) fora das comunidades de moradia desde o início do século XX pelo menos. Porém, a circulação de hoje é mais ostensiva na ocupação de espaços centrais e na convocação da população em geral a assistir performances, já que fazem dos estilos, das expressões artísticas e do espetáculo uma arena de disputas para ocupar o território e comunicar ímpetos de reconhecimento.
De toda forma, a apropriação da cidade remete à participação em relações de poder. São comuns as reclamações de moradores das periferias relativas ao preconceito quando buscam emprego, transitam pelas ruas, são noticiados na mídia ou abordados pela polícia. A articulação entre repressão (policial), estigmatização e empobrecimento segue operando fortes restrições a uma relação de mais fruição da urbe. Neste cenário, a disputa pela cidade é ambiência de táticas e de reforço das redes de identificação. Andar em galeras pode significar também proteção frente aos limites impostos; pode levar à aprendizagem sobre onde e como andar com mais segurança. Diferentes redes mobilizam e propiciam circulações em segurança, como são exemplos a partilha de atividades religiosas, a participação em eventos artísticos ou esportivos, a integração a ações políticas.
IHU On-Line - Quais são os principais perfis dos jovens das periferias gaúchas? Que relações eles estabelecem entre si e com outras instâncias sociais e políticas mais amplas, como a família, o mercado de trabalho, as igrejas, as políticas sociais, o mundo do crime e o Estado? De que modo essas várias instituições estão presentes nas periferias?
Leandro Pinheiro - Há várias segmentações possíveis nas periferias de Porto Alegre, conforme as pertenças e as produções identitárias ou, então, a fluidez na participação em diferentes grupos e práticas. As pesquisas sobre a atuação de jovens têm preferido mesmo falar em “juventudes”, acentuando sua pluralidade. Se podemos tomar algumas linhas gerais de caracterização, Paulo Carrano e Juarez Dayrell, dentre outros autores que estudam a condição juvenil contemporânea no Brasil, destacam a importância do consumo cultural (indo da fruição à produção artística e musical), das sociabilidades entre os pares e da apropriação do espaço público para realização de suas atividades.
Em contextos de periferia, precisamos agregar a precarização na interação com os aparatos institucionais, como mencionei antes. Os sentidos da instituição escolar, por exemplo, podem ser diversos (e não só atentos à aprendizagem preconizada por professores). Passam pela busca de um lugar seguro para crianças e jovens, um espaço complementar às jornadas diárias dos pais, ou um locus para estar com colegas-pares e ter momentos de sociabilidade; passam ainda por buscas um tanto pragmáticas, articuladas à necessidade e/ou o desejo de trabalhar, seja para garantir condições de subsistência familiar, seja para garantir os consumos de sua condição juvenil. A escola é valorizada como alternativa para melhoria de condição de vida, mas sua pertinência não deixa de ser atravessada pelas demandas instauradas em outras instâncias de vinculação dos jovens.
Nesse sentido, as práticas artístico-culturais tornam-se espaços de protagonismo e reconhecimento nem sempre encontrados na escola e no trabalho. Com elas materializam anseios de singularização de estilos e identidades, criam meios para narrativização de feitos e gestam a enunciação do que experienciam. Assim, formam arenas que tendem a valorizar modos de estar-junto, exercitam horizontalidade nas interações e produzem uma relação com a autoridade tributária da implicação construída relacionalmente (que deveria nos fazer pensar no lugar da autoridade institucionalizada).
A despeito da precariedade das condições de vida, não raro observamos jovens migrando entre atividades laborais, reclamando da exploração excessiva e da falta de sentido. Diferente de grupos etários mais velhos, o trabalho nem sempre se associa a um projeto coletivo e a um compromisso moral. Há, de outra parte, o desejo patente de articular tal esfera à satisfação pessoal, de forma que se as inserções laborais não a permitem, fazem uso dos recursos obtidos para efetivação de atividades outras, em que logram protagonismo e imbricam dedicação/esforço e realização estética. Ademais, o mundo do trabalho não é uma arena de trânsito fácil para as juventudes: os índices de desemprego são bastante mais elevados para os segmentos juvenis (na ordem de 24% no primeiro trimestre de 2016, por exemplo — mais que o dobro da taxa geral), e a precarização dos vínculos tendem a ser maiores entre contingentes de periferias, em especial para a população negra.
Embora devamos ter cuidado ao afirmar o consumo como arena de atuação quando os recursos econômicos tendem a ser parcos, não podemos desconsiderar as táticas de acesso a bens via mercado informal, ou mesmo meios ilícitos, e as possibilidades geradas pela facilitação do crédito em prestações ou empréstimos. Coadunadas com a ampliação do número de empregos com carteira assinada, constituiu-se aí, por um período, um cenário propício à ampliação do consumo.
Passando ao convívio com atividades criminosas (e aqui falo especialmente do tráfico de drogas), é necessário considerar que estas são um mercado organizado e capilarizado por toda a cidade, envolvendo agentes de práticas ilícitas e parcerias atuantes no mercado convencional e lícito. Suas disputas por território em diferentes localidades de periferia interpõem violência, na forma de conflitos armados, retaliações a rivais e controle de circulação. As atividades incluem o apelo à participação de jovens em seu mercado de trabalho. No âmbito institucional da assistência social e/ou da educação pode ser compreendido como um aparato que concorre na captura do desejo e do tempo de educandos, mas, na rua e na informalidade das relações do entorno, impõe-se a necessidade de conviver com os limites; operar desde uma coabitação astuciosa que associa risco e dependência. Vale lembrar que o sujeito de uma atividade criminosa pode ser o vizinho ou o amigo de infância; que o desafio está em integrar redes e referências simbólicas que proporcionem experiências de reciprocidade, segurança, sociabilidade e alegrias.
Entre os jovens, as redes mais mencionadas são os laços familiares e as amizades. Em relação aos primeiros, a figura materna é a mais proeminente e, não raro, vemos sua presença representada em narrativas e tatuagens. Já os amigos variam na intensidade do vínculo, mas, entre os mais duradouros, é possível perceber a partilha de recursos, incluindo a moradia conjunta, a construção de referências na produção de planos coletivos e a formação de bases comuns para produção de saberes nas atividades que comungam. Tais saberes, em alguns casos, convertem-se em capitais culturais que viabilizam oportunidades de trabalho (como são exemplos as atividades no Hip Hop, na capoeira, no samba etc.).
IHU On-Line - Os jovens das periferias gaúchas têm se relacionado com movimentos sociais? Quais são as pautas deles?
Leandro Pinheiro - Nas periferias, hoje, é possível perceber a presença de iniciativas diversas: empreendimentos de economia popular solidária; ações do movimento negro; organizações por direitos das mulheres; frentes de ação em prol de crianças e adolescentes; articulações do movimento de catadores; reivindicações por moradia; e a organização do movimento Hip Hop, dentre outros de menor expressão.
À exceção deste último, falamos da vinculação a movimentos sociais cuja origem ou pelo menos as vias de operacionalização são tributárias da ação de grupos que lograram a acumulação de capital cultural, criando pautas políticas de luta e humanização; erigem mobilizações desde a interlocução entre moradores de periferia e agentes com acesso a arenas institucionais e com uma base programática de ação (organizações não governamentais, partidos políticos, práticas universitárias extensionistas, segmentos de diferentes igrejas, movimentos organizados em âmbito nacional etc.). Suas pautas ora transcendem as localidades de periferia em função dos aspectos identitários que preconizam, ora confluem na luta por direitos em contextos vulnerabilizados. As iniciativas que fomentam a economia popular solidária, ademais, almejam uma atuação contra-hegemônica e, não raro, tendem a integrar demandas de gênero, étnicas e ambientais às suas redes de ação.
O movimento Hip Hop, por seu turno, procura conquistar espaço de ação para expressões culturais associadas aos moradores das periferias urbanas. Constituído por ativistas residentes nas periferias, organiza-se desde a apropriação de elementos produzidos em guetos norte-americanos, onde contingentes de maioria latina ou afrodescendente criaram formas de expressão artísticas (grafite, rap, breaking, discotecagem) fortemente associadas à simbolização de vivências urbanas (com maior ou menor grau de violência). Seu período de maior expressão nas periferias de Porto Alegre foi na década de 1990 e início de 2000 e é um movimento muito associado às juventudes.
Embora esteja fragilizado hoje pela falta de políticas municipais de apoio e pela disputa de outras expressões musicais, o Hip Hop consegue congregar jovens de maneira mais expressiva que os outros movimentos citados acima. Desenvolve-se em arenas artísticas e midiáticas e se integra ao interesse das juventudes contemporâneas por práticas culturais e de sociabilidade. Reunindo jovens em espaços públicos para fruírem juntos a música e a dança, tem criado ambiências para o desenvolvimento, a uma só vez, de pertenças coletivas e de singularização das individualidades. Disputam elementos muito concretos: o direito ao espaço público, resistindo às estigmatizações e às restrições à circulação; o combate a situações de violência e a diminuição dos riscos nas periferias; e o reconhecimento dos saberes que produzem em seus grupos de ação.
A presença de movimentos sociais ou da pressão que exercem, representada na consolidação de políticas públicas, traz um resultado político a considerar. Se para a maioria da população das periferias a ação política se consubstancia nas articulações cotidianas, no microcosmo das táticas e da manutenção de seu espaço de possíveis, a integração a ações e mobilizações coletivas tem se mostrado um campo de produção de saberes politicamente significativo. A participação de adultos e idosos como lideranças comunitárias e o ativismo de jovens na cena Hip Hop da cidade, por exemplo, vêm contribuindo para a imersão numa rede de relações que socializa para pautas abrangentes e programáticas.
De outra parte, o acesso à escola nas condições que referia antes, atribuindo-se sentido à carreira escolar pela possibilidade de sequência (de formação técnica ou superior), também ambienta discussões abrangentes pelo direito à educação e as condições para efetivá-lo. As ocupações das escolas, incluindo aquelas situadas em localidades vulnerabilizadas, impressionavam pela objetividade das pautas e materializavam formas de organização (comissões de trabalho, assembleias, relações horizontalizadas, realização de oficinas e práticas culturais) que em muito dialogavam com as formas de expressão culturais das juventudes contemporâneas. Reside aí, ademais do tema de reivindicação, uma potência educacional desde a forma de estar, atuar, ocupar.
A imagem integra a exposição “Imagens da periferia”. (Foto: Leandro Prinheiro)
IHU On-Line - Hoje, diante da crise econômica, como está a vida nas periferias gaúchas?
Leandro Pinheiro - A crise se faz sentir, sobretudo, na qualidade dos serviços públicos e na diminuição das alternativas de trabalho. São mais recorrentes as reclamações em relação à área de saúde, por exemplo. As alternativas de emprego diminuem por conta do desaquecimento da economia e/ou da redução das frentes de ação abertas diretamente pelo governo. Tomemos alguns exemplos. As áreas de construção civil ou de segurança e limpeza contratam menos hoje e atingem diretamente trabalhadoras e trabalhadores moradores de localidades de periferia.
Programas como o ‘Mais Educação’, cuja destinação de verba foi suspensa, também representavam uma alternativa de renda para aqueles educadores sociais que realizavam oficinas de aprendizagem sobre saberes produzidos por grupos populares (grafite, breaking, capoeira etc.). Há que se observar que o desemprego entre negros é geralmente superior e, no contexto da crise, tem crescido mais (no final de 2015, 12,3% para negros e 6,5% para “não-negros”, segundo o IBGE).
A população das periferias percebe a piora das condições econômicas gerais e de sua situação. Por outro lado, falamos de contingentes historicamente envoltos em situações de precariedade, com visível capacidade de se colocar a necessidade de encontrar alternativas e não esperar que agentes e instituições de presença episódica atendam suas demandas. Não se trata de passividade; ao contrário, trata-se de um modo de conviver que procura articular diversos artifícios para levar o dia a frente (ainda que seja apenas em subsistência) e, neste sentido, é extremamente ativo e coloca os recursos que o Estado oferece entre as alternativas a manejar.
Creio, todavia, que a situação poderá se agravar bastante mais caso se consolide o golpe e tenhamos a permanência dos grupos de poder que o conduziram na gestão do aparato estatal. A possibilidade de ataque às premissas e ao funcionamento do Sistema Único de Saúde e da Consolidação das Leis do Trabalho, a redução de verbas na área de educação e para os programas sociais, somados à redução das possibilidades de emprego (e ausência de aumento real do salário mínimo), afetarão drasticamente o espaço de possíveis para habitantes das periferias. Os ganhos que se iniciaram no combate à desigualdade social sofrerão retrocesso.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Leandro Pinheiro - Minhas incursões em localidades de periferia de Porto Alegre têm me provocado a perguntar pelo que ocorre no entorno das instituições. Penso que a luta por políticas públicas e o combate à desigualdade social precisam andar junto com uma compreensão cada vez mais detida dos arranjos e das reflexividades construídos no cotidiano de moradores e ativistas das periferias. As pertenças, as redes e as astúcias que desenvolvem são bases para o diálogo. Creio que ali onde não esperamos uma intencionalidade transformadora e/ou educativa, nas transações dos espaços de sociabilidade, erigem-se saberes e dinâmicas éticas a compreender no caminho de mudanças que desejamos produzir juntos, ou pelo menos na resistência à perda de recursos e direitos já conquistados.