Por: Márcia Junges | 27 Fevereiro 2017
“Conciso, breve e criativo, o chiste não se confunde com a piada, ainda que ambos sejam produtores de prazer. A linguagem chistosa deixa irromper a verdade de forma indireta, com o máximo de sentido para um mínimo de suporte, ou seja, com o mínimo de palavras obtém um máximo de graça, deixando escapar algo inconciliável e insuportável. A verdade que aflora por meio do chiste é da ordem do real insuportável que acossa o sujeito”. A explicação é do filósofo e psicanalista Mario Fleig, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, analisando o conceito de chiste, proposto por Sigmund Freud.
De acordo com o professor, um chiste que necessita de explicação perde sua graça. A condição necessária para um chiste provocar graça é o riso do Outro. “O riso do outro, como efeito do chiste, vem como o selo de autenticação de que ali houve um chiste. Se ele não ocorrer, se não se produz o laço social no rir juntos, mas vergonha por ter sido pego em flagrante, seria apenas um lapso”. O riso seria um tipo de alívio, “dispêndio psíquico decorrente da liberação da energia alocada na tensão”. E complementa: “Parece que o riso, por sua força afirmativa e ao mesmo tempo subversiva, por sua irrupção discreta ou escancarada, flutua sempre numa certa indeterminação e equivocidade. Ele indica o permanente hiato de que padece o ser humano, na encruzilhada do físico e do psíquico, do individual e do social, do divino e do diabólico: os animais não riem, assim como também os deuses. Parece que a fonte do riso se encontra na eterna defasagem entre o que somos e o que deveríamos ser”.
Mario Fleig | Foto: Reprodução - YouTube
Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, em São Paulo, e em Psicologia pela Unisinos, Mario Fleig é mestre e doutor em Filosofia. Foi professor titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em metafísica. Como psicanalista, é membro da Association Lacanienne Internationale e da Escola de Estudos Psicanalíticos. Com Jean-Pierre Lebrun organizou O mal-estar na subjetivação (Porto Alegre: CMC Editora, 2010) e O desejo perverso (Porto Alegre: CMC Editora, 2008).
A entrevista foi publicada originalmente na Revista IHU On-Line, N°. 367, de 27-11-2011.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que é um chiste? E qual é a sua relação com o inconsciente, como proposto por Freud?
Mario Fleig – O chiste faz parte de um conjunto diverso de fenômenos próprios do ser humano que produzem a graça e o riso. Freud se dedica a seu estudo, e o denomina pelo termo alemão Witz. Trata-se de um enunciado surpreendente e desconcertante que opera por meio dos recursos da linguagem, cuja técnica foi demonstrada por Freud, e provoca uma satisfação particular, tendo assim um importante papel na vida psíquica. E Freud estabelece a relação que o chiste tem com o inconsciente, como veremos logo a seguir.
Sugiro que consideremos o chiste a partir de um de seus efeitos: o riso. Mesmo que este não esgote o chiste, visto que os mistérios que o envolvem atravessam a história da humanidade, sabemos que o selo de autenticidade de um chiste irrompe no riso. Um chiste que precise ser explicado já não tem nada mais de chistoso, perdeu a graça. Por isso o que estamos elucidando aqui sobre o chiste não tem graça nenhuma, não nos faz rir e muito menos apresenta um lance criativo, como é peculiar ao chiste. Que a graça seja própria do ser humano já fora afirmado por Aristóteles em As partes dos animais ao escrever que “O homem é o único animal que ri”, atribuindo assim ao riso valor ímpar e apresentando a fisiologia do riso, que tem como elemento principal o diafragma. Outros autores retomarão esta linha de estudo, descrevendo as afecções corporais do riso, como o calor, o rubor, o estremecimento e até algumas minúcias das transformações da expressão facial. A busca por estudos acerca do risível acaba por nos remeter ao livro perdido de Aristóteles, em que algo da comédia estaria escrito. Posteriormente, Quintiliano, sob a influência da filosofia de Cícero, afirmara que “na verdade, todo o sal de uma palavra está na apresentação das coisas de uma maneira contrária à lógica e à verdade: conseguimos isso unicamente seja fingindo sobre nossas próprias opiniões ou sobre as dos outros, seja enunciando uma impossibilidade”.
Enfim, o riso não deixa de esconder seu mistério e sua diversidade: pode se apresentar agressivo, sarcástico, escarnecedor, amigável, etc., sob a forma da ironia, do humor, do burlesco, do grotesco, do cômico, do chistoso, etc. O riso é multiforme, ambivalente, ambíguo. Pode-se rir para não chorar. Pode expressar tanto a alegria pura quanto o triunfo maldoso, o orgulho ou a simpatia, assim como pode ser um riso aparentemente imotivado, expressando dramas subjetivos particulares, como se pode encontrar na psicose. O riso pode ser apaziguador, fascinante e até mesmo inquietante e assustador. Parece que o riso, por sua força afirmativa e ao mesmo tempo subversiva, por sua irrupção discreta ou escancarada, flutua sempre numa certa indeterminação e equivocidade. Ele indica o permanente hiato de que padece o ser humano, na encruzilhada do físico e do psíquico, do individual e do social, do divino e do diabólico: os animais não riem, assim como também os deuses. Parece que a fonte do riso se encontra na eterna defasagem entre o que somos e o que deveríamos ser, e não é por acaso que na tradição grega a tragédia desemboque na comédia. Por que rir é o melhor remédio?
Então, se um dos efeitos do chiste é o riso, em que consiste o chiste? Vimos que Freud se debruçou com atenção sobre o enigma do riso por uma de sua formas: o chiste, Witz, com o qual se defrontou desde o início de seu trabalho clínico, nos casos de tratamento das histéricas. Ele postula que, se uma representação inconsciente for recalcada, ela poderá retornar de uma forma irreconhecível, para escapar da censura. As formas de retorno do recalcado são diversas, constituindo o que Lacan reuniu com a denominação de “formações do inconsciente”. São os sonhos, os lapsos, os sintomas, os chistes, etc. Estas formações, que encontram um terreno fértil no duplo sentido de uma palavra, a polissemia da linguagem, podem constituir a via que permite essas transformações, ou seja, contornar a censura. Foi assim, por exemplo, para aquela jovem que sofria de uma dor penetrante na fronte, dor que a remetia inconscientemente a uma lembrança remota de sua avó desconfiada, que a olhava com um olhar “penetrante”. Nesse caso, o inconsciente joga com o duplo sentido que a palavra “penetrante” adquire. De igual modo, é de forma similar que as coisas se dão no chiste ou dito espirituoso. Em razão disso, podemos afirmar, com Lacan, que as três grandes obras inaugurais de Freud, a Interpretação dos sonhos (1900), A psicopatologia da vida cotidiana (1901) e O chiste e suas relações com o inconsciente (1905), publicadas na aurora do século XX, são consagradas aos mecanismos de linguagem do inconsciente, inaugurando uma nova teoria do inconsciente, e complementada com seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905).
Não vamos aqui tentar percorrer a riqueza e a graça que perpassa a obra de Freud sobre os chistes, que na sua maioria somente podem ser apreciados em sua língua original, mas apenas indicar que ela se divide em três partes. A primeira, analítica, trata da técnica e das tendências do chiste; a segunda parte, sintética, elucida o mecanismo psíquico e linguístico gerador do prazer espirituoso, seus motivos e seu processo social; e finalmente a terceira parte, teórica, examina a relação do chiste com o sonho e o inconsciente e o distingue do cômico e do humor.
Conciso, breve e criativo, o chiste não se confunde com a piada, ainda que ambos sejam produtores de prazer. A linguagem chistosa deixa irromper a verdade de forma indireta, com o máximo de sentido para um mínimo de suporte, ou seja, com o mínimo de palavras obtém um máximo de graça, deixando escapar algo inconciliável e insuportável. A verdade que aflora por meio do chiste é da ordem do real insuportável que acossa o sujeito. A brevidade do chiste é o indicativo do sucesso criativo de seu principal mecanismo linguístico, a condensação, por meio da qual dois campos de significados em conflito se fundem, causando estupefação e surpresa. O termo utilizado por Freud para o significante enigmático, que deixa o sujeito siderado, é Verblüflung, estupefação, desconcerto, espanto, assombro, perplexidade. Ao mesmo tempo, diferente do que ocorre no ato falho ou no sintoma, que são metáforas fracassadas, no chiste ocorre um ato criativo, visível frequentemente na formação de um neologismo.
Vejamos um singelo exemplo, referido por uma colega: Um menino, em sério conflito com seu irmão, no momento da oração, assim conclui o “Pai nosso”: “... livrai-nos do mala mém.” O cruzamento de duas cadeias de pensamento, uma manifesta e a outra latente, se faz pela condensação de “mal” + “mala” resultante do deslocamento do intervalo para a letra seguinte. Essa condensação permite então a irrupção da frase recalcada, reveladora dos pensamentos de agressividade endereçados ao irmão. Lembremos que a condição necessária para que esta frase seja um chiste é que ela produza o efeito do riso, e por isso ela precisa convocar o outro. O riso do outro, como efeito do chiste, vem como o selo de autenticação de que ali houve um chiste. Se ele não ocorrer, se não se produz o laço social no rir juntos, mas vergonha por ter sido pego em flagrante, seria apenas um lapso.
No chiste, aquilo que até então estava emudecido pode, enfim, tomar a palavra, visto que ao fazer rir o sujeito desarma o Outro, que até ali mantinha uma censura intransponível. E isso produz uma satisfação naquele que faz e/ou naquele que ouve um chiste. Como se explica esse prazer? O jogo de palavras e sua sonoridade poderiam nos remeter a um grande prazer sentido da infância e agora revisitado. Contudo, mais do que isso, Freud destaca que o êxito do chiste se encontra na particularidade da elaboração da frase que é então mais facilmente aceita pela censura, mesmo quando se trata de pensamentos rejeitados pela consciência. Assim, produz-se uma suspensão do recalcamento em curso e a liberação da energia utilizada para isso. É na liberação desta energia economizada que dá o prazer, definido por Freud como diminuição da tensão.
O chiste requer, então, um terceiro, cuja verdade é atestada pelo riso, ao passo que o cômico necessita apenas de dois polos, o eu e o objeto. Assim, uma gozação pode se fazer sobre uma determinada pessoa, que se encontra numa situação peculiar. Por exemplo, uma senhora vistosamente vestida que pisa em uma casca de banana e se estatela no passeio público pode ser algo muito cômico. Se isso acontecesse com uma trôpega senhora muito idosa certamente produzir um sentimento de pesar nos transeuntes. Deste modo, Freud insiste que a verdade, inicialmente inadmissível, que irrompe no dito espirituoso só vale como chiste quando enunciada para um terceiro, que ao rir irá atestá-la. Destaca-se assim a assunção subjetiva da função subversiva da fala, que já havia sido descoberta pelos gregos, como se pode ler na Retórica de Aristóteles, que encontra seu aval no terceiro, denominado por Lacan de Outro, que está para além do semelhante. O Outro, lugar da Lei, tanto é aquele que autentica a verdade da fala espirituosa que burla a censura assim como aquele que é subvertido, visto que passível de falha. Resulta, enfim, em uma subversão da posição do sujeito, pois o dito espirituoso rompe a sideração resultando da condição de gozo de estar à mercê do Outro, e dá à luz ao desiderium, ou seja, à de-sideração, quer dizer, ao desejo. Lacan localiza nesta operação a instância da letra no inconsciente, elemento material mínimo que, por propiciar a escrita de uma borda, faz cessar o gozo mortífero que assombrava este sujeito. Vemos, assim, que outras formações do inconsciente, como os lapsos de memória, os atos falhos e os sintomas, ainda que sejam retornos do recalcado inconsciente, não apresentam a dimensão criativa do chiste com seu poder subversivo.
IHU On-Line – Há uma necessidade psicológica em fazermos chistes? Por quê?
Mario Fleig – Por que rimos ou por que precisamos rir? Se o riso é o melhor remédio, como afirma a sabedoria popular, podemos supor que sua necessidade brota do mal que nos assola. Freud segue esta linha de raciocínio, que também encontramos em Kant. Este afirma em seu estudo A arte do gênio: “O riso é um afecção decorrente da súbita transformação de uma expectativa tensa em nada” (KANT, I. Os pensadores: Kant II. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 266). O riso parece consistir em um tipo de alívio, um dispêndio psíquico decorrente da liberação da energia alocada na tensão.
IHU On-Line – O que difere um chiste de uma piada?
Mario Fleig – Certamente que nem toda piada corresponde a um chiste. Para precisar a diferença entre ambos, vale inicialmente a diferença que Freud estabelece entre o chiste e o cômico. Se o chiste é sempre causa do riso, por meio de uma elaboração frasal produzida de propósito, o cômico é da ordem de um efeito resultante de um achado em situação. Uma situação é cômica, um dito é espirituoso. Assim, podemos ter piadas que podem ter graça ou não, visto que graça pode estar no desempenho do narrador, que então consideramos um bom contador de piada. Dentre os vários gêneros de piadas, temos, por exemplo, o uso de estereótipos, em que são confrontados dois pontos de vista. Basta o contador de piada introduzir o tema, dizendo: “Vocês sabem aquela do papagaio?”, e o clima já está formado. O mesmo ocorre se a narrativa incide sobre campos socialmente controversos e suficientemente conhecidos dos ouvintes, em que o texto parece querer dizer uma coisa, mas diz outra. Geralmente, a controvérsia gira em torno da sexualidade, das instituições (escola, religião, família, governo), das desgraças.
Há pouco, em um quadro humorístico de Chico Anysio, o personagem, que parecia estar falando das cartas do baralho, se referia há liberação da “copa”, para que então outros ficassem com o “ouro”, assim como um coringa que se achava um rei, etc. Para que esta piada se produza, é preciso ter acompanhado as notícias relativas à liberação de verbas para obras públicas da Copa do Mundo no Brasil, assim como o papel desempenhado pelo ex-presidente Lula na política atual.
IHU On-Line – O objetivo de um chiste é o riso?
Mario Fleig – Como vimos antes, no caso do chiste, o riso é um efeito. O riso é o atestado de que ali se produziu um dito espirituoso. O cômico e a piada têm como objetivo fazer rir, ao passo que o chiste é uma elaboração produzida de propósito para suspender o recalcamento e, assim, liberar-se do mal-estar gerado pelo assombramento de estar à mercê do Outro, na forma de um gozo mortífero. Por isso, entendemos que o chiste é uma formação do inconsciente. Ou seja, ele ocorre de propósito no sentido que visa algo que ultrapassa a intenção consciente do sujeito. Neste sentido, Freud afirma que o chiste é uma formação do inconsciente, ao passo que outras formas de produzir riso operam com elementos pré-consciente e consciente.
IHU On-Line – No que consistia o estudo do riso empreendido por Aristóteles? Algum outro filósofo analisou esse tema?
Mario Fleig – Pouco sabemos sobre este suposto livro que faria parte da Poética de Aristóteles, além de suposições medievais de que teria existido e que, então, teria sido perdido. Ou ele nunca chegou a ser escrito, ou foi queimado no incêndio que destruiu a Biblioteca de Alexandria. Sua existência é uma suposição bem plausível, visto que a comédia é o que logicamente se seguiria à análise da tragédia, no estudo sobre a retórica do teatro.
O estudo sobre o riso é imenso e eu não poderia dar conta aqui da história do interesse sobre o tema na filosofia, na sociologia, nas artes, etc. Posso sugerir, entre outras, a obra magistral de Mikhail Bakhtin, A obra de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e na Renascença, que retoma a história do riso do século do XIV ao século XVI.
IHU On-Line – Em O nome da rosa, a trama se baseia em livros que tiveram suas páginas envenenadas para que seus leitores morressem após folheá-las. Uma dessas obras era o segundo tomo de A poética, de Aristóteles. O argumento do Venerável Jorge, monge beneditino que havia embebido as páginas do livro com veneno, era que o riso matava o temor e, por conseguinte, a fé. Como podemos compreender essa afirmação? O que ela guarda de verdade, embora tenha sido feita dentro de uma obra de ficção?
Mario Fleig – O nome da rosa, do escritor italiano Umberto Eco, traduz de forma literária a importância do aristotelismo para o pensamento cristão medieval. Trata-se de uma trama policial, como reverberações múltiplas da literatura ocidental, da filosofia e da ciência, que se desdobra em torno de um livro misterioso, um tratado de Aristóteles sobre como o riso pode auxiliar na busca pela verdade, que acaba por levar vários monges à morte em uma abadia medieval.
O Venerável Jorge de Burgos, monge responsável pela biblioteca do mosteiro para o qual se encaminha William de Baskerville, afirma que a obra deveria ser destruída justamente por ter sido escrita por Aristóteles. A influência do pensador grego era tamanha que, ao endossar o riso e o escárnio como fontes válidas para se chegar ao conhecimento da verdade, Aristóteles poderia desencadear o caos na sociedade, uma vez que, ao rirem do mundo, os homens espantariam o temor ao demônio e perceberiam como Deus era desnecessário, produzindo-se um colapso geral. Assim, o verdadeiro perigo viria deste livro, pois ele é que poderia contaminar os doutos, e não do riso das pessoas simples e medíocres. O riso poderia afastar o indivíduo de Deus, ao passo que o livro de Aristóteles afastaria os doutos do caminho da razão e da verdadeira sabedoria, e aí se encontrariam o verdadeiro perigo. Vejamos esta argumentação nas próprias palavras do Venerável Jorge de Burgos:
“O riso libera o aldeão do medo do diabo, porque na festa dos tolos também o diabo aparece pobre e tolo, portanto controlável. Mas este livro poderia ensinar que libertar-se do medo do diabo é sabedoria. Quando ri, enquanto o vinho borbulha em sua garganta, o aldeão sente-se patrão, porque inverteu as relações de senhoria: mas este livro poderia ensinar aos doutos os artifícios argutos, e desde então ilustres, com que legitimar a inversão. Então, seria transformado em operação do intelecto aquilo que no gesto irrefletido do aldeão é ainda e afortunadamente operação do ventre. Que o riso é próprio do homem é sinal do nosso limite de pecadores. Mas deste livro quantas mentes corrompidas com a tua tirariam o silogismo extremo, pelo qual o riso é a finalidade do homem! O riso distrai, por alguns instantes, o aldeão do medo. Mas a lei é imposta pelo próprio medo, cujo nome verdadeiro é temor a Deus. E deste livro poderia partir a fagulha luciferina que atearia no mundo inteiro um novo incêndio: e o riso seria designado como arte nova, desconhecida até de Prometeu, para anular o medo. Para o aldeão que ri, naquele momento, não lhe importa morrer: mas depois, acabada sua licença, e a liturgia impõe-lhe de novo, de acordo com o desígnio divino, o medo da morte. E deste livro poderia nascer a nova e destrutiva aspiração a destruir a morte por meio da libertação do medo. E o que queremos nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais benéfico e afetuoso dos dons divinos”.
Como oposição à pretensão de ter a verdade absoluta e à certeza de ser a “mão de Deus”, o frade Baskerville pondera que “talvez a tarefa de quem ama os homens seja fazer rir da verdade, fazer rir a verdade, porque a única verdade é aprendermos a nos libertar da paixão insana pela verdade.”
IHU On-Line – Por que o riso foi considerado, por vezes, demoníaco, uma vez que é prerrogativa exclusivamente humana?
Mario Fleig – Sabemos que um importante suporte das religiões é o temor dos deuses, sendo que a estratégia de cindir a divindade em duas, uma boa e protetora e a outra maléfica, permite que a primeira seja fortalecida pelo incrementado temor na segunda. Uma das hipóteses para o aumento do temor ao demônio, que se constata no período medieval e perdura até nossos dias, seria decorrente do incessante enfraquecimento do temor a Deus. Assim, quanto mais se teme ao inimigo, maior deve ser o poder daquele que nos protege. Essa hipótese poderia ser verificada pelo exame do lugar que o demônio ocupa nas assim denominadas igrejas neopentecostais no Brasil. Ora, no período medieval surgem formas novas de contestação, porta de entrada para o demônio, colocando em perigo o poder da divindade: o demônio do meio-dia, ou seja, a preguiça como expressão da melancolia, a nascente ciência moderna e sua racionalidade, e o antigo riso. Todas elas são consideradas como manifestação do demoníaco a ser combatido. São os novos poderes do demônio, que requerem uma divindade forte e firme. Assim, o antigo poder catártico e subversivo da tragédia e da comédia gregas, que preconizava o benefício libertário das lágrimas e do riso, era inaceitável para a ortodoxia medieval, que via nela a obra do demônio. Além disso, apesar de ser reconhecido como próprio do homem, o riso em geral era censurado à luz do argumento de que Jesus, modelo supremo do humano, não teria rido em sua vida terrena. Enfim, o riso e o humor, por seu poder subversivo, tenderiam a profanar e a zombar do sagrado, e nisso consistir seu poder demoníaco a ser combatido.
IHU On-Line – Em que aspectos é possível estabelecer uma relação entre o riso e o trágico?
Mario Fleig – O trágico e o cômico fazem parte das múltiplas respostas do homem confrontado com o paradoxo de sua existência. Seria o riso a melhor resposta para esse paradoxo? O humor não seria o valor supremo que permite aceitar sem compreender, agir sem desconfiar, assumir tudo sem levar nada a sério?
Sabemos que as tragédias gregas costumavam constituir uma trilogia: a primeira apresentava o conflito, como Édipo Rei, na trilogia de Sófocles; a segunda tratava do desdobramento dos efeitos do conflito, como Antígona; e a terceira apresentava uma solução do conflito, como Édipo em Colonos. A comédia, ou seja, a dimensão do riso, viria como a solução da tragédia.
A tragédia surge na Grécia a partir do culto ao deus Dionísio, dentro da trama de narrativas denominadas de mito que delimitam o que chamamos de trágico. Assim, o trágico não se restringe ao âmbito das tragédias do teatro, mas é algo que define a especificidade da condição humana, à medida que é nele que se realiza o que há de mais estranho no estranho, como se enuncia no primeiro coro da Antígona de Sófocles: “Muitas são as coisas estranhas, nada, porém, há de mais estranho (to deinataton) do que o homem” (v. 332).
O riso da comédia e do cômico não se confunde com o mesmo efeito produzido pelo chiste e pelo humor, e funciona como um automatismo psíquico pré-consciente. O humor apresenta um riso entre parênteses, recatado, ao passo que o chiste resulta de um processo inconsciente que, com a autorização do sujeito, confessa a verdade que ser para ficar calada.
O humor, mesmo que possa se prender ao inconsciente, consiste para Freud em uma contribuição do supereu para o cômico. O ponto de intersecção destas diferentes modalidades de riso se encontra se encontra no centro do culto ao deus Dionísio, o falo. Este falo simbólico que opera sua função somente se velado faz surgir a verdade do sujeito na revelação específica do cômico, visto que ele presentifica o desejo inconfessado no instante em que se dá a queda do falo. Assim, poderíamos ler o exemplo que referi acima, da senhora chique que escorrega em uma casca de banana e se estatela no passeio público, acompanhada pelo olhar de gozação dos transeuntes. Do que é mesmo que eles riem?
Retornamos sempre ao mesmo ponto, ou seja, como lidamos com esse estranho em nós mesmos? Voltando ao trágico, este pode se apresentar em relatos aparentemente banais da vida cotidiana, como o jovem se queixava a respeito de suas dificuldades em progredir na vida, tanto no trabalho quanto no estudo, e muito mais ainda em sua vida amorosa. Logo se lembra de pensamentos fugidios que o atormentam, dos quais consegue situar um: tem um pensamento terrível de que seu pai iria morrer se ele não fizesse determinadas coisas. Não se sente à vontade para falar destas coisas, pois as considerava idiotas. Finalmente as revela: para que seu pai não viesse a morrer por sua causa, deveria contar até quatro e depois descontar até zero ou dar três passos para frente, três para o lado e depois recuar os três passos e assim por diante. Parece-nos que sua narrativa apresenta a dimensão trágica de sua vida, presente no paradoxo entre avançar um tanto e recuar na mesma proporção, de modo a jamais sair do lugar. Estava paralisado por uma contradição existencial. O que poderia acontecer para que pudesse transpor tal impasse, ou seja, deixar cair o gozo deletério de seu sintoma? Semelhante ao percurso literário e social que a inventividade dos gregos construiu, da transformação do trágico em uma trilogia e a irrupção do riso na comédia, o percurso em um tratamento psicanalítico leva o sujeito a poder se apropriar de sua tragédia e, até mesmo, chegar a rir da banalidade de seu destino, renunciando então a gozar do ódio.
IHU On-Line – Podemos dizer que o chiste, o humor e o riso são formas de lidar com o mal-estar? Por quê?
Mario Fleig – Freud escreveu um pequeno artigo denominado O humor (1927), reiterando que a fonte de prazer deste provém da economia de um dispêndio afetivo que uma situação de mal-estar produz, ou seja, que o humor é gerador de um ganho de prazer para si ou para o espectador, de modo semelhante ao que se passa no chiste e no cômico. Contudo, ele apresenta uma novidade, ao afirmar que “o humor não só tem algo de libertador, sendo análogo nisso ao chiste e ao cômico, mas também tem algo de sublime e patético, traços que não encontramos nesses dois outros modos de obter prazer mediante uma atividade intelectual. Evidentemente, o sublime reside no triunfo do narcisismo, da vitoriosa confirmação da invulnerabilidade do eu. O eu recusa-se a se deixar abater e sucumbir ao sofrimento ocasionado pela realidade externa; recusa-se a admitir que os traumas do mundo externo o possam afetar, e ainda mostra que são para ele apenas oportunidades de obter prazer.”
O exemplo cabal do senso de humor irrompe na frase do condenado à forca que na segunda-feira, ao ser levado para o patíbulo, declara para seu carrasco: “Começamos bem a semana!” Não é uma frase de queixa e resignação, mas de oposição, que indica, além do triunfo do eu, a afirmação de um prazer apesar das circunstâncias desfavoráveis. Como meio de defesa contra a dor, o humor, assim como o chiste e o cômico, “ocupa um lugar dentro da grande série dos métodos que a vida anímica do ser humano construiu com o intuito de escapar da compulsão ao sofrimento, série que se inicia com a neurose e culmina no delírio, e na qual se incluem a embriaguez, o abandono de si, o êxtase”, afirma Freud.
Enfim, a sabedoria popular nos diz que “rimos para não chorar” ou que “rir é o melhor remédio”. Que verdade encontramos nestes provérbios? Se seguirmos as formulações de Freud, entendemos que nos encontramos com as diferentes elaborações e transformações da pulsão de morte, que, em vez de seguir a via direta da destruição, faz um contorno do estranho e impossível e cria algo diferente. No riso, ainda que seja de escárnio e repúdio, há um instante de suspensão do desejo de pura destruição de si e do outro. Instante que pode circunscrever outra coisa.
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O riso e o hiato da condição humana. Entrevista especial com Mario Fleig - Instituto Humanitas Unisinos - IHU