07 Agosto 2014
“As redes sociais digitais, como ambientes de construção da vida social, podem ser também ambientes de testemunho cristão a partir da nossa própria presença, que deve expressar ‘o que somos e aquilo em que acreditamos’”, afirma o pesquisador.
Foto: www.radiocoracao.org |
A cultura do encontro e o testemunho. Essas são as bases que devem nortear a comunicação na Igreja, que tem não somente a intenção de comunicar, mas a prioridade de evangelizar. Num contexto desafiante de transcender o “marketing religioso”, ainda mais excessivo na era digital, é preciso “passar de uma comunicação meramente informativa para uma comunicação performativa, que não apenas transmita dados e informações, mas que promova o Encontro maiúsculo, a experiência de uma Mensagem maiúscula, que vai muito além do mero conteúdo transmitido”, assinala Moisés Sbardelotto, mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, à IHU On-Line.
Membro da Comissão Especial para o Diretório de Comunicação para a Igreja no Brasil, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, Moisés Sbardelotto participou do 4º Encontro Nacional da Pastoral da Comunicação e do 2º Seminário Nacional de Jovens Comunicadores, realizados em Aparecida, São Paulo, no mês passado.
Segundo ele, os eventos tiveram o “desafio de entender a autêntica evangelização, em primeiro lugar, como testemunho”. Nessa perspectiva, enfatiza, “a ‘cultura do encontro’ é uma ideia-chave do papado de Francisco”, e antes de ser definida conceitualmente, ela “pode ser vista em construção nos próprios gestos do papa, no seu reconhecimento do outro, na sua abertura ao diferente. Foi assim no seu primeiro gesto, a inclinação diante de um grande ‘outro’, o povo de Deus reunido na Praça de São Pedro. Mas também nos seus inúmeros encontros, como com os jovens presos no Lava-Pés, com os imigrantes de Lampedusa, com os doentes, na expressão máxima do abraço em Vinicio Riva, o homem que sofre de neurofibromatose, com os líderes religiosos de outras confissões, como no recente encontro com o pastor Giovanni Traettino, o primeiro encontro de um pontífice com um expoente do pentecostalismo”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Sbardelotto chama a atenção para a confusão entre o que significa evangelizar e fazer proselitismo com a mensagem cristã. Sobre essa questão, a crítica do pesquisador é pontual: “Acaba-se confundindo a ação evangelizadora com práticas de um ‘mercado de bens religiosos’, marcado pela ‘concorrência religiosa’, pelas ‘ações de marketing religioso’, pela ‘fidelização’ de novos ‘adeptos’, pela busca de ‘visibilidade positiva’ e de ‘aumento de popularidade’ da Igreja e das suas lideranças. Como álibi, até se costuma dizer que o próprio Jesus foi ‘o maior marqueteiro da história’, e a cruz — de ‘escândalo para os judeus e loucura para os pagãos’ (1Cor 1, 23) — se converte no ‘maior logotipo que conhecemos na história’... Como diz o Papa Francisco, mesmo com ‘aparências de religiosidade e até mesmo de amor à Igreja’, busca-se, no fundo, ‘a glória humana e o bem-estar pessoal’ (Evangelii gaudium, n. 93)”.
Autor de E o Verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosas na internet (Editora Santuário, 2012), Moisés Sbardelotto pesquisa a interface mídia e religião no ambiente digital, a qual tem em sua centralidade o conceito de ciberteologia. Para ele, o conceito tem, como “maior desafio”, “explicitar com clareza reflexiva qual a diferença que o prefixo ‘ciber’ traz à teologia”, porque “do ponto de vista teológico, um primeiro risco é o de pensar Deus e a experiência cristã no tempo da rede a partir do ‘impacto’ e da ‘influência’ dos aparatos tecnológicos e das tecnologias digitais, entendidos como dominação do digital sobre o religioso e o teológico. (...) O desafio da teologia é pensar Deus em meio às mediações humanas, como a cultura digital, em suas luzes e sombras. Como pensar tal interface sem cair em uma mera ‘ciberidolatria’ patrocinada pela Apple, Google e afins?” Para ele, a relação entre teologia e comunicação, ou a comunicação realizada na Igreja, devem ser permeadas por um “problema de fundo”: “Como ‘pensar e viver Deus’ na cultura digital na sua densidade fenomênica, para além do mero âmbito maquinal de telas, teclas, bits e chips”.
Moisés Sbardelotto é jornalista graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos.
Sbardelotto publicou nos Cadernos Teologia Pública, nº. 70, Deus digital, religiosidade online, fiel conectado: Estudos sobre religião e internet, e nos Cadernos IHU, nº. 35, "E o Verbo se fez bit". Uma análise da experiência religiosa na internet.
Confira a entrevista.
Foto: CNBB |
IHU On-Line – Em que consiste o conceito de ciberteologia, discutido no 4º Encontro Nacional da Pastoral da Comunicação e no 2º Seminário Nacional de Jovens Comunicadores?
Moisés Sbardelotto – A ciberteologia é uma proposta conceitual de (re)pensar a teologia, entendida como inteligência da fé (intellectus fidei), no tempo da rede e também de viver a fé a partir da lógica da rede digital. O conceito já vinha sendo utilizado a partir de várias vertentes, mas ganhou notoriedade a partir do livro homônimo, publicado pelo padre jesuíta italiano Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica.
A intenção do autor é desafiar seus leitores e os teólogos de hoje a compreender as mudanças do mundo contemporâneo a partir dos desdobramentos tecnológicos e como essa mudança demanda um reposicionamento da ação e da reflexão sobre a vida de fé, ou seja, repensar o significado da fé no “novo contexto existencial gerado pelas mídias e pela consequente 'mudança antropológica'”, como afirma Spadaro. Em suma, o desafio lançado pelo autor aos teólogos cristãos de hoje é realizar, em suas palavras, uma “obra de mediação entre o Logos e a cultura digital”.
Como dizia Bento XVI na exortação Verbum Domini, "é à luz da revelação feita pelo Verbo divino que se esclarece definitivamente o enigma da condição humana". Hoje, a teologia é desafiada a compreender o "Verbo que se faz bit" e que continua se manifestando nas mediações da condição humana contemporânea.
A ciberteologia, como proposta conceitual, ainda está em construção. Não é um conceito pronto nem possui um método estabelecido, mas busca despertar especialmente a teologia e seus estudiosos e pesquisadores para essa importante interface com os processos comunicacionais contemporâneos. No âmbito da Comunicação e das Ciências da Religião, esse debate já vem acontecendo há mais tempo. Alguns dos resultados mais recentes são duas coletâneas: do ponto de vista da Comunicação, o livro Mídias e religiões: a comunicação e a fé em sociedades em midiatização (Ed. Unisinos/Casa Leiria, 2013) e, do ponto de vista das Ciências da Religião, o livro Espiritualidade e sagrado no mundo cibernético: questões de método e vivências em Ciências da Religião (Ed. Loyola/Unicap, 2014). Contudo, a teologia ainda custa a enfrentar o desafio conceitual e metodológico da cultura digital. Trata-se quase de um imperativo teológico hoje.
IHU On-Line – Quais são os desafios e limites dessa proposta conceitual? O que esse conceito agrega à teologia?
"Francisco reconhece a importância da comunicação como uma ajuda para 'sentir-nos mais próximos uns dos outros'"
Moisés Sbardelotto – O maior desafio da ciberteologia é explicitar com clareza reflexiva qual a diferença que o prefixo “ciber” traz à teologia. O termo deriva do grego tekhné kybernetiké, a arte/técnica de pilotar embarcações, de governar. A cibernética, proposta pelo matemático norte-americano Norbert Wiener (1894-1964) e outros, seria a arte/técnica de “governar e pilotar” máquinas e seres humanos (ou de “governar e pilotar” seres humanos como se fossem máquinas...). Um grande avanço na proposta teórica de Wiener foi pensar a comunicação como “máquina”, como um processo de organização social, como um “ser físico organizado”, não apenas como um somatório atomizado de elementos. Contudo, por outro lado, a cibernética acabou reduzindo tudo ao “maquinal”, como se o todo social funcionasse como uma máquina artificial, deixando de lado o “maquinante”, o poético, o artesanal.
Controle e comando passaram a ser conceitos-chave para a compreensão da cibernética e da chamada cibercultura. Buscava-se o controle e o comando não apenas sobre informações, mas também sobre comportamentos, como se a sociedade funcionasse como uma máquina. Aliás, uma das principais obras de Wiener intitula-se justamente The Human Use of Human Beings (em português, Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos, 1950). A comunicação tornava-se uma subordinada dos aparelhos, das máquinas e dos programas. A informação constituía-se como “programa” do social, e a comunicação reduzia-se a mera transmissão de comandos.
Por isso, do ponto de vista teológico, um primeiro risco é o de pensar Deus e a experiência cristã no tempo da rede a partir do “impacto” e da “influência” dos aparatos tecnológicos e das tecnologias digitais, entendidos como dominação do digital sobre o religioso e o teológico. Mas tecnologia e teologia convivem em um mesmo caldo cultural, de modo complexo. A rede digital é fruto de um determinado ambiente social, histórica e culturalmente específico, que concebe e programa os seus próprios “aparelhos de comando” — muitas vezes também com base em pressupostos teológicos. Como articular tecnologia e teologia de modo não dominador?
Um segundo risco, ao contrário, pode ser o de simplesmente abstrair o âmbito tecnológico das reflexões teológicas sobre o digital. A técnica digital pode se tornar transparente aos nossos olhos, como se a internet não existisse, mas apenas pessoas em interação. Isso pode promover leituras do digital a partir de uma suposta emancipação humana total diante da técnica. Assim, podemos acabar esquecendo dos condicionamentos tecnológicos, a existência efetiva de programas, aparelhos, softwares, algoritmos que, embora não determinantes, moldam as ações sociais. Cai-se, assim, no que havia de mais dominador no pensamento cibernético: “Dominar um sistema é comandá-lo sem sofrer sua reação”, como dizia Albert Ducrocq. A ideologia do digital, muitas vezes, interpreta a cultura nascente de modo ingênuo, como totalmente emancipatória, transparente, libertadora. O desafio da teologia é pensar Deus em meio às mediações humanas, como a cultura digital, em suas luzes e sombras. Como pensar tal interface sem cair em uma mera “ciberidolatria” patrocinada por Apple, Google e afins?
Além do futurismo
O desafio da ciberteologia, portanto, é ir além de uma certa produção acadêmica meramente especulativa e futurista ou apologeticamente extravagante e utópica da cultura digital, vista como um “ciberespaço” desconectado da realidade social, um “Eldorado” tecnológico, e aprofundar teologicamente a reflexão sobre a cultura digital, para além dos meros maquinismos. A rede não é uma construção imaterial ou desencarnada, nem um “aparelho de comando” extrassocial ou suprassocial, e a cultura digital não se restringe a gadgets e a modismos tecnológicos, mas é um trabalho em rede e complexo (net-work), constituído por relações vivas entre o humano, a tecnologia e o ambiente — e também a teologia.
No questionamento sobre a experiência cristã no tempo da rede, estão em xeque os fundamentos de ambos os âmbitos sociais — comunicacional e teológico — em suas interações e afetações, marcadas por lógicas conjuntas, plurais e híbridas. Há mediações que não são neutras, e o risco é de não perceber que “a linguagem sobre Deus é uma das mais difíceis e perigosas com que trabalhar, porque pode resultar em estruturas opressivas ou ser um trampolim para a libertação”, como nos diz Mary Hunt (Cadernos Teologia Pública, n. 66, p. 6). O problema de fundo é como “pensar e viver Deus” na cultura digital na sua densidade fenomênica, para além do mero âmbito maquinal de telas, teclas, bits e chips.
Em suma, afastando-nos cada vez mais da “máquina” cibernética, como pensar Deus de forma complexa e complementar — em rede — em relação ao humano, ao social, ao tecnológico, ao ecológico? Como pensar Deus não de forma linear (um megaprograma maquinal), mas em um circuito retroativo, simbiótico e recursivo (processo vital maquinante) em relação ao próprio humano e ao cosmos? Como pensar Deus a partir de um ambiente sociodigital policêntrico, realmente em rede, em que o jogo comunicacional não pertence a uma entidade central, mas ao organismo-rede?
Parafraseando Edgar Morin, no Método 1, talvez devêssemos pensar também em uma si-ciberteologia, ou uma siberteologia. Ou seja, não uma teologia baseada na arte/ciência do governo, do controle e do comando de Deus sobre a história, mas na arte/ciência de “pilotar junto” com Deus nos fenômenos históricos, uma teologia realmente baseada na lógica da rede, como uma forma de intelecção complexa, simbiótica, retroativa e recursiva da organização comunicacional da experiência cristã, não apenas no tempo da rede, mas ao longo de toda a história da Salvação.
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"O maior risco, contudo, é o de cair no puro marketing, na busca de uma comunicação 'infalível', 'eficaz', que ofereça 'o produto certo, no momento certo, para o público certo', de ver a Igreja como uma 'marca' a mais" |
IHU On-Line – Um dos temas centrais dos eventos foi a discussão de que não se faz comunicação de conteúdo na Igreja, porque a comunicação para os católicos se dá pela presença e pelo testemunho, ou seja, comunica-se através do testemunho e da presença. Pode desenvolver esses conceitos e explicar como a questão da comunicação na Igreja foi discutida nos dois eventos?
Moisés Sbardelotto – A evangelização e a comunicação eclesial podem cair muito facilmente em um “mundanismo espiritual”, muito criticado pelo Papa Francisco. Assim, acaba-se confundindo a ação evangelizadora com práticas de um “mercado de bens religiosos”, marcado pela “concorrência religiosa”, pelas “ações de marketing religioso”, pela “fidelização” de novos “adeptos”, pela busca de “visibilidade positiva” e de “aumento de popularidade” da Igreja e das suas lideranças. Como álibi, até se costuma dizer que o próprio Jesus foi “o maior marqueteiro da história”, e a cruz — de “escândalo para os judeus e loucura para os pagãos” (1Cor 1, 23) — se converte no “maior logotipo que conhecemos na história”... Como diz o Papa Francisco, mesmo com aparência de religiosidade e até mesmo de amor à Igreja, busca-se, no fundo, “a glória humana e o bem-estar pessoal” (Evangelii gaudium, n. 93).
O desafio lançado pelo encontro de Aparecida foi o de entender a autêntica evangelização, em primeiro lugar, como testemunho. O Papa Francisco, retomando uma frase de Bento XVI, deixou muito claro na Evangelii gaudium que “todos têm o direito de receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de o anunciar, sem excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete apetecível. A Igreja não cresce por proselitismo, mas 'por atração'” (n. 14).
Em Aparecida, viu-se a necessidade de passar de uma comunicação meramente informativa para uma comunicação performativa, que não apenas transmita dados e informações, mas que promova o Encontro maiúsculo, a experiência de uma Mensagem maiúscula, que vai muito além do mero conteúdo transmitido. Como diz o papa, aí está a fonte da ação evangelizadora: “Se alguém acolheu este amor que lhe devolve o sentido da vida, como é que pode conter o desejo de o comunicar aos outros?” (EG 8). Ou seja, a comunicação evangelizadora ou a evangelização comunicativa é expandir o primeiro Encontro aos outros, reconhecendo que, muito além de todos os nossos esforços pessoais e comunitários, a evangelização “tem o seu fundamento último na iniciativa livre e gratuita de Deus” (EG 111).
IHU On-Line – Segundo Spadaro, os primeiros cristãos foram os grandes comunicadores, porque comunicaram pelo testemunho. Como se entende, nesse sentido, nos dias de hoje, a rede enquanto meio para comunicar pelo testemunho? Quais são as potencialidades da rede para comunicar pelo testemunho? Que relação pode ser estabelecida entre a cultura digital e a comunicação do Evangelho?
Moisés Sbardelotto – No dia 5 de maio de 2014, o Papa Francisco postou um tuíte com a seguinte frase: “Que quer dizer evangelizar? Testemunhar com alegria e simplicidade o que somos e aquilo em que acreditamos”. Bastaria isso como resposta. As redes sociais digitais, como ambientes de construção da vida social, podem ser também ambientes de testemunho cristão a partir da nossa própria presença, que deve expressar “o que somos e aquilo em que acreditamos”. Na sua mensagem ao Dia Mundial das Comunicações Sociais deste ano, o papa é ainda mais enfático: “O testemunho cristão não se faz com o bombardeio de mensagens religiosas, mas com a vontade de se doar aos outros através da disponibilidade para se deixar envolver, pacientemente e com respeito, nas suas questões e nas suas dúvidas, no caminho de busca da verdade e do sentido da existência humana”.
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"O desafio da ciberteologia é ir além de uma certa produção acadêmica meramente especulativa e futurista ou apologeticamente extravagante e utópica da cultura digital" |
Por isso, é interessante retomar aqui a definição de inculturação proposta pelo papa na Evangelii gaudium. Pela inculturação, diz o papa, a Igreja “introduz os povos com as suas culturas na sua própria comunidade, porque cada cultura oferece formas e valores positivos que podem enriquecer o modo como o Evangelho é pregado, compreendido e vivido”. Com relação à cultura digital, a Igreja também é chamada a assumir os valores presentes aí, introduzindo-os na sua própria comunidade. Antes de se fazer presente na rede “para evangelizá-la”, o importante é conhecer a rede, as suas lógicas, as realidades humanas e as práticas sociais aí presentes e então assumir o que há de bom na cultura digital, para enriquecer a própria Igreja e sua ação evangelizadora. Não significa jogar fora a doutrina cristã ou dissolvê-la segundo os gostos locais, mas, nas palavras do papa, “recordar-se de que cada ensinamento da doutrina deve situar-se na atitude evangelizadora que desperte a adesão do coração com a proximidade, o amor e o testemunho” (n. 42).
Cultura digital X evangelização
E qual a relação entre a cultura digital e a evangelização? Em primeiro lugar, a evangelização não pode ser pensada fora da cultura. Se hoje o caráter predominante da cultura é um processo de digitalização, a evangelização deve fazer as contas com esse processo. A Igreja deve aprovar o seu próprio “marco civil” diante da cultura digital, assumindo os valores dessa cultura (talvez, por que não?, relendo teológica e eclesialmente os mesmos valores defendidos pelo Marco Civil da Internet no Brasil, como a privacidade, a neutralidade e a liberdade. Que sentido tais valores têm para a vivência cristã?) e estabelecendo um diálogo com ela. “Tudo o que é humano nos diz respeito”, disse Paulo VI na encíclica Ecclesiam suam. Pois bem, se “a rede digital pode ser um lugar rico de humanidade”, como diz o Papa Francisco, lá também a Igreja deve se fazer presente, ir ao encontro dessas pessoas, em primeiro lugar para conhecê-las e ouvi-las, como servidora, como mãe.
Bento XVI, na mensagem ao Dia Mundial das Comunicações de 2010, dizia que, “quanto mais intensas forem as relações criadas pelas modernas tecnologias e mais ampliadas forem as fronteiras pelo mundo digital”, tanto mais somos chamados a nos ocupar disso pastoralmente. Na internet, a Igreja é desafiada a promover uma “diaconia da cultura”, como pedia Bento XVI, ou seja, uma pastoral no mundo digital “chamada a ter em conta também aqueles que não acreditam, caíram no desânimo e cultivam no coração desejos de absoluto e de verdades não caducas, dado que os novos meios permitem entrar em contato com crentes de todas as religiões, com não crentes e pessoas de todas as culturas”.
IHU On-Line – O que o papa Francisco quer dizer com a cultura do encontro da comunicação?
Moisés Sbardelotto – A cultura do encontro é uma ideia-chave do papado de Francisco. Mais do que qualquer definição, a cultura do encontro pode ser vista em construção nos próprios gestos do papa, no seu reconhecimento do outro, na sua abertura ao diferente. Foi assim no seu primeiro gesto, a inclinação diante de um grande “outro”, o povo de Deus reunido na Praça de São Pedro. Mas também nos seus inúmeros encontros, como com os jovens presos no Lava-Pés, com os imigrantes de Lampedusa, com os doentes, na expressão máxima do abraço em Vinicio Riva, o homem que sofre de neurofibromatose, com os líderes religiosos de outras confissões, como no recente encontro com o pastor Giovanni Traettino, o primeiro encontro de um pontífice com um expoente do pentecostalismo.
E o próprio papa expôs a sua ideia da cultura do encontro, de modo mais explícito, na sua mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2014. É nesse texto que o papa relaciona tal cultura com os processos comunicativos. Nela, Francisco afirma que, se existem muros que nos dividem, eles só podem ser superados “se estivermos prontos a ouvir e a aprender uns dos outros”, porque “a cultura do encontro requer que estejamos dispostos não só a dar, mas também a receber de outros”. Ou seja, o papa reconhece a importância da comunicação como uma ajuda para sentir-nos mais próximos uns dos outros. “Uma boa comunicação - continua o pontífice - ajuda-nos a estar mais perto e a nos conhecer melhor entre nós, a ser mais unidos”. Para construir a cultura do encontro, portanto, é preciso saber como ser e estar verdadeiramente próximos uns dos outros, porque “quem comunica faz-se próximo”, sintetiza Francisco.
Harmonia das diferenças
Para fazer-nos semelhantes ao outro, o papa lança o desafio de “harmonizar as diferenças”. Construir a cultura do encontro não significa ignorar ou desfazer as diferenças, mas harmonizá-las. A cultura do encontro não pressupõe uniformidade ou mesmice. As diferenças, quando harmonizadas, nos enriquecem mutuamente. É o que o próprio Deus faz na Criação. Ele não se desfaz das trevas, privilegiando a luz: Ele organiza os elementos, transforma o caos em um cosmos. E a comunicação - diante de inúmeros símbolos, linguagens, culturas, meios, agentes, contextos - é uma ação centralmente cosmogênica.
E como se harmonizam as diferenças? Por meio do diálogo. O diálogo, que nasce primeiramente da escuta, nos leva a aprender a “ver o mundo com olhos diferentes e a apreciar a experiência humana tal como se manifesta nas várias culturas e tradições”, como diz Francisco em sua mensagem. “Dialogar significa estar convencido de que o outro tem algo de bom para dizer, dar espaço ao seu ponto de vista, às suas propostas. Dialogar não significa renunciar às próprias ideias e tradições, mas à pretensão de que sejam únicas e absolutas”, reitera o papa.
O mais importante, contudo, é que, como proposta de uma “cultura”, não se trata de algo pronto, que possa ser explicado ou mesmo ensinado. A cultura do encontro é um desafio lançado pelo papa, um “vir a ser”, para que cada um e cada uma, acolhendo-a, ajude na sua construção, no seu desdobramento, em um processo artesanal, tentativo, complexo e, justamente por isso, efetivamente humano.
IHU On-Line – Outro ponto discutido nos eventos foi a diferença entre a linguagem digital e virtual. Por que a Igreja propõe que o ambiente da internet seja entendido como digital e não virtual?
Moisés Sbardelotto – Isso se deve a um debate filosófico malconduzido que mais complicou do que simplificou as coisas, correndo o risco de desvirtuar a nossa ação e a nossa reflexão sobre a cultura digital. Com o surgimento da internet e as suas imensas potencialidades para a realidade da época, começou-se a diferenciar entre o mundo “real” e o ambiente “virtual”, operando uma mistura nada funcional nem compreensiva das dualidades “real” x “ideal” e “atual” x “virtual”. Começou-se a pensar o contexto digital como se este fosse puramente uma “potência” do real, intangível, perdido em algum “limbo” eletrônico, no éter de um “ciberespaço” meramente onírico.
Mas o “virtual” não se contrapõe ao “real”. O “virtual” é real. A internet depende de muita materialidade para existir: cabos, fios, telas, chips, etc. Basta dar uma olhada nos data centers dos grandes sistemas de busca, que às vezes ocupam vários hectares de terras, repletos de equipamentos de processamento e armazenamento de dados. Por outro lado, se quisermos abordar a rede digital como uma virtualidade, devido ao caráter semântico e simbólico das suas linguagens, então a internet é tão “virtual” quanto uma biblioteca. Todo o conhecimento reunido em uma biblioteca é “virtual”, não o detemos, é intangível, é incomensurável. Porém, assim que acessamos um determinado livro, um determinado conteúdo, interagimos com ele e o apreendemos, tal conhecimento se atualiza, se presentifica na nossa vida. Passa-se do “virtual” ao “atual” — sem deixar de ser “real”!
Em termos eclesiais, é preciso recorrer a Bento XVI, na sua mensagem ao Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2013, dedicada às “Redes Sociais: portais de verdade e de fé; novos espaços de evangelização”. Nela, o bispo emérito de Roma afirma: “O ambiente digital não é um mundo paralelo ou puramente virtual, mas faz parte da realidade quotidiana de muitas pessoas, especialmente dos mais jovens”.
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"O problema de fundo é como 'pensar e viver Deus' na cultura digital na sua densidade fenomênica, para além do mero âmbito maquinal de telas, teclas, bits e chips" |
Extensões reais do humano
Se abordarmos a internet meramente como “virtualidade”, podemos correr o risco de abstrair toda a sua materialidade, todas as suas marcas de socialidade, ou seja, a sua contextualidade, que é sinal da própria humanidade nela presente. Em termos pastorais, o risco é de minimizá-la como um fruto puramente da “imaginação” e não perceber nela um novo ambiente socialmente construído de relação pessoal e de organização social. E é por isso que a Igreja deseja, primeiro, compreender tal ambiente, para assim constituir nele uma presença significativa.
Como diz Bento XVI, “as redes sociais são o fruto da interação humana, mas, por sua vez, dão formas novas às dinâmicas da comunicação que cria relações”. Ou seja, as tecnologias digitais são extensões reais do humano, condensando espaços e encurtando tempos, assim como o humano é uma extensão real da tecnologia, sendo um “coprocessador” contextualizado em um lugar e um tempo específicos. Por isso, é importante perceber os agenciamentos socioculturais das redes, porque a cultura digital é fruto de expressões sociais e constitui um verdadeiro ambiente social novo e renovado, repleto de realidades humanas, positivas e negativas, que despertam a Igreja para esses sinais dos tempos emergentes.
IHU On-Line – Em que consiste o Diretório Nacional da Comunicação, lançado no 4º Encontro Nacional da Pastoral da Comunicação? Em que sentido ele é uma orientação para a comunicação da Igreja no Brasil e de que modo poderá contribuir para a comunicação a ser feita na Igreja?
Moisés Sbardelotto – O Diretório é fruto de 13 anos de estudos, debates e práticas de comunicação nas dioceses, paróquias e comunidades brasileiras, envolvendo especialistas e agentes da Pastoral da Comunicação. Foi aprovado no dia 13 de março de 2014, pelo Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, tornando-se um documento oficial da CNBB, de número 99.
Fruto de profundas pesquisas, estudos e debates, o documento é pioneiro em todas as Igrejas das Américas, já que apenas a Conferência Episcopal Italiana possui o seu próprio Diretório de Comunicação. O texto brasileiro foi escrito a várias mãos, com a colaboração de diversos pesquisadores, dentre os quais eu me incluo, sob a orientação, no processo final, do presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Comunicação da CNBB, Dom Dimas Lara Barbosa, e dos seus assessores, Ir. Élide Fogolari e Pe. Clóvis de Melo Andrade.
O texto não pretende estabelecer normas, mas sim disponibilizar referenciais comunicacionais, sociológicos, teológicos, éticos, políticos, pedagógicos e pastorais, voltados à reflexão das diversas comunidades eclesiais e também civis, dirigido especialmente a todos os agentes envolvidos na Pastoral da Comunicação, entendida como “um processo dinâmico, dialógico, interativo e multidirecional” (n. 10). Recolhendo os frutos de um verdadeiro caminho de práxis comunicacional iniciado há cinco décadas pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, especialmente através do decreto Inter mirifica, de 1963, o Diretório também busca aprofundar a “cultura do encontro” proposta pelo Papa Francisco, como desafio contemporâneo para a Igreja no Brasil em todos os seus âmbitos.
Comunicação, comunhão e comunidade
Centralmente, “a comunicação é entendida como um processo social” (n. 6), que envolve práticas de “construção simbólica que possibilitam a interação pessoal e a organização social” (n. 12), tendo como “objetivo primordial criar comunhão, estabelecer vínculos de relações, promover o bem comum, o serviço e o diálogo na sociedade” (n. 13). Ou seja, o Diretório reconhece que “não se trata de mera transmissão de mensagens, mas de ressignificação constante do mundo” (n. 12). Para a pastoral da Igreja, o ponto central é que, sem comunicação, “não há nem comunhão, nem comunidade” (n. 13).
Além disso, cada um dos dez capítulos oferece uma série de Pistas de Ação específicas para os agentes de pastoral e todos os envolvidos na comunicação da Igreja, como um convite concreto para que o documento seja efetivamente “encarnado” na vida eclesial, em todas as suas instâncias. Não se trata de um texto fechado, mas aberto ao debate e aos acréscimos necessários a partir das práticas comunicacionais de cada Igreja particular. Por isso, reconhece-se que “os frutos serão colhidos ao longo do caminho a ser percorrido com a contribuição de toda a Igreja comunicante” (n. 13).
IHU On-Line – Como avalia o 4º Encontro Nacional da Pastoral da Comunicação e o 2º Seminário Nacional de Jovens Comunicadores, tendo em vista a aposta da igreja na comunicação? Como interpreta essa aposta?
Moisés Sbardelotto – Não se trata apenas de uma aposta, no sentido estrategista, mas sim de uma necessidade intrínseca à própria Igreja, porque, como diz o documento Igreja e internet, do Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais, “a comunicação pertence à essência da Igreja”. Comunicar a Boa Nova é uma necessidade imperativa de todos os cristãos. E tão importante quanto comunicar é refletir sobre a própria comunicação, é partilhar o esforço comunicativo. E os dois encontros de Aparecida vão nesse sentido. Sinal disso é o aumento quase exponencial de participantes: de cerca de 200 na primeira edição para os mais de 900 nesta edição — em sua grande maioria, jovens.
Nas grandes conferências pela manhã, foi desdobrado o tema deste ano: Comunicação, desafios e possibilidades para evangelizar na era da cultura digital. Os encontros de Aparecida serviram, assim, para ajudar a Igreja brasileira a refletir sobre aquilo que o ambiente digital pode nos propor e nos desafiar na nossa ação evangelizadora. Como diz Francisco na mensagem deste ano, “a internet pode oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos; e isto é uma coisa boa, é um dom de Deus”. Em Aparecida, tais possibilidades puderam ser reconhecidas e partilhadas, para depois poderem ser construídas e aprofundadas por cada agente de pastoral, no contexto específico de sua missão local.
Na parte da tarde, os diversos seminários abordavam questões teórico-práticas sobre a cultura digital e suas perspectivas para a evangelização, além da convergência midiática, da comunicação pela arte, do trabalho das assessorias de imprensa e dos jornalistas que atuam na Igreja, dentre outras várias questões. Foram momentos importantes de partilha de conhecimentos e de experiências, e de crescimento mútuo. Isso também faz parte do contexto sociocultural em que vivemos hoje, o da midiatização, que desafia também a Igreja. Não se trata de uma preocupação “midiacêntrica” por parte da Igreja, no sentido de saber usar as novas mídias, mas de uma preocupação mais ampla, que envolve desde a acolhida pessoal nas nossas igrejas até a construção de uma “comunidade de comunidades” em nível de Igreja nacional.
Por outro lado, o encontro de Aparecida também visava a articular, animar e motivar a Pastoral da Comunicação da Igreja no Brasil, a partir do lançamento do Diretório. Muitas vezes, essa pastoral fica resumida a “fazer o boletim paroquial” ou “organizar o mural da igreja”, empobrecendo imensamente o seu potencial e a sua missão. Por isso, os encontros buscam reanimar nos agentes de pastoral a importância da comunicação vista em seu sentido mais amplo, não de uso de tecnologias, mas da própria constituição da Pascom como um “eixo transversal de todas as pastorais da Igreja”, como diz o Diretório (n. 244), a partir de suas ações de formação para a comunicação, articulação das pastorais dentro da Igreja e com setores da sociedade civil, produção de materiais de reflexão e debate, e espiritualidade, como alicerce de todo comunicador cristão, que não comunica meramente informações, mas uma Experiência, um Encontro.
IHU On-Line – Como avalia a atuação da Igreja brasileira e da Igreja de modo geral nas redes sociais? Os setores de comunicação da Igreja brasileira estão atentos às discussões no âmbito da comunicação?
Moisés Sbardelotto – Em todos os níveis, a Igreja tem investido seus esforços para marcar sua presença no ambiente digital. Em menos de dois anos, a conta @Pontifex, no Twitter, iniciada por Bento XVI e mantida por Francisco, soma mais de 14 milhões de seguidores nos seus diversos idiomas. O PopeApp, o aplicativo da Santa Sé, foi recentemente reformulado, oferecendo novas funcionalidades. A página do Vaticano (vatican.va) também passou por uma reformulação, buscando articular os conceitos emergentes da linguagem digital dos últimos anos. No Brasil, o projeto Jovens Conectados, promovido pelas comissões episcopais pastorais para a Comunicação Social e para a Juventude, também se faz presente nas principais redes sociais digitais, articulando os diversos movimentos da juventude católica e promovendo o diálogo da Igreja com a sociedade em uma linguagem mais atualizada.
Mas a diversidade do universo católico é imensa, e isso se exponencia e se complexifica no ambiente digital, como estou analisando em minha pesquisa atual. A apropriação da comunicação por parte da Igreja é diversa e multifacetada. O maior risco, contudo, é o de cair no puro marketing, na busca de uma comunicação “infalível”, “eficaz”, que ofereça “o produto certo, no momento certo, para o público certo”, de ver a Igreja como uma “marca” a mais... Nos últimos anos, houve um crescimento quase exponencial de empresas de comunicação católicas, que buscam oferecer os seus serviços de planejamento para paróquias, dioceses, etc. O profissionalismo é importante, mas o risco é confundir tais ações com a evangelização. Seria uma deturpação perigosa. As estratégias de marketing encontram-se no extremo oposto da evangelização cristã, “que tem o seu fundamento último na iniciativa livre e gratuita de Deus” (EG 111) e que deve ser “dirigida gratuitamente” aos pobres como “destinatários privilegiados do Evangelho” (EG 48).
Em suma, o esforço é grande, assim como as dificuldades e os obstáculos nesse processo de inculturação. Mas, sem dúvida, é uma das fronteiras em que a Igreja é chamada a estar. Não há respostas prontas, mágicas. Todos os campos sociais e as grandes instituições tateiam na busca de diálogo e de adaptação à cultura digital, da política ao esporte. Contudo, como disse o papa na homilia do dia 8 de maio de 2013, é preciso “coragem apostólica”, “fervor espiritual de sermos seguros”. Haverá erros, enganos, faz parte do processo. Mas, afirmava o papa, “avante! Se erras, levanta-te e segue em frente: este é o caminho. Aqueles que não caminham para não errar, cometem um erro mais grave”.
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“O ‘virtual’ é real”. Cultura digital e evangelização. Entrevista especial com Moisés Sbardelotto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU