31 Julho 2013
Muito se tem falado da “visita do Papa Francisco ao Brasil”, da qual foram inúmeros os protagonistas e os ambientes de interação. Mas poucas têm sido as análises mais específicas da própria 28ª Jornada Mundial da Juventude. O que pretendo fazer aqui é uma reflexão pessoal sobre aquilo que eu vi e vivi no Rio de Janeiro durante os dias em que lá estive. Pretendo fazê-lo a partir de três protagonistas da Jornada: a cidade do Rio, os jovens participantes e o Papa Francisco.
A análise é do jornalista Moisés Sbardelotto, autor do livro E o Verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosas na internet (Ed. Santuário, 2012).
Eis o texto.
Muito se tem falado da “visita do Papa Francisco ao Brasil”, da qual foram inúmeros os protagonistas e os ambientes de interação: a multidão e o “carro simples” com a janela aberta e as ruas do Rio; os romeiros de “fé simples” e o Santuário de Aparecida; os doentes e dependentes químicos e o Hospital São Francisco de Assis; os pobres e as favelas; as autoridades públicas, os índios e os afro-brasileiros e o Theatro Municipal; os jovens argentinos e a Catedral; os voluntários e o Riocentro; os bispos latino-americanos e caribenhos e a Residência Sumaré; os jornalistas e o avião. Também muito se falou da desorganização das entidades públicas federais, estaduais e municipais. Mas poucas têm sido as análises mais específicas da própria 28ª Jornada Mundial da Juventude.
O que pretendo fazer aqui é uma reflexão pessoal sobre aquilo que eu vi e vivi no Rio de Janeiro durante os dias em que lá estive. Pretendo fazê-lo a partir de três protagonistas da Jornada: a cidade do Rio, os jovens participantes e o Papa Francisco. Em cada um deles, quero me deter sobre três pontos específicos. Obviamente, essas tríades não são casuais: fazem parte da própria fluidez de reflexão do Papa Francisco, que, tanto na Vigília do sábado, quanto na Missa de Envio do domingo, enumerou, não por acaso, três pistas-chave de aprofundamento.
A Jornada no Rio reuniu a maior concentração de turistas em uma única cidade brasileira em toda a história do Brasil. Alguns números talvez ajudem a entender um pouco o que isso significa: 3,7 milhões de pessoas reunidas na orla de Copacabana; 60 mil voluntários; 8,7 mil ônibus urbanos em atividade nos principais dias do evento (ou seja, 100% da frota municipal); transporte público em funcionamento durante as 24 horas do dia; 600 horários extras de ônibus na rodoviária carioca e 230 voos extras no Rio e em São Paulo.
Como disse o Papa Francisco em sua saudação inicial, na quinta-feira, “esta semana, o Rio se converte no centro da Igreja, em seu coração vivo e jovem, porque vocês responderam com generosidade e entusiasmo ao convite que Jesus lhes fez para estar com ele, para ser seus amigos”.
Naturalmente, um evento do porte de uma Jornada Mundial da Juventude deve envolver uma grande sinergia de esforços, tanto públicos, quanto eclesiais. A princípio, o evento revelou uma grande desorganização e burocracia dos seus responsáveis, mas a cidade do Rio de Janeiro acabou sendo o palco da manifestação de uma multidão auto-organizada, e o comitê organizador da Jornada foi salvo de seus erros pela força simbólica e gratuita do dom da Criação.
1.1 Desorganização
O primeiro “compromisso” dos jovens ao chegar ao Rio era a retirada do “kit do peregrino”, no Sambódromo. A centralização desse primeiro contato com a Jornada em um único local fez com que os responsáveis pelos grupos de peregrinos tivessem que passar, em muitos casos, mais de oito horas em filas intermináveis, abaixo de chuva, sem acesso a comida e banheiro (sob o risco de perder o lugar – ou de “se perder” no lugar).
Ao finalmente serem atendidos, se deparavam com uma sucessão de guichês, primeira demonstração de burocracia. No primeiro, conferiam-se os documentos e a inscrição do grupo. No segundo, retiravam-se os tickets de alimentação e de transporte. No terceiro, recebia-se a mochila com uma camiseta e uma cruz de pescoço. No quarto, retirava-se o material gráfico da Jornada (guia do peregrino e livros litúrgicos e catequéticos). No quinto e último guichê, o voluntário-atendente verificava se tudo havia sido entregue apropriadamente. Para os grupos maiores, essa conferência podia durar horas.
O imaginário da Cidade Maravilhosa, do sol e do calor cariocas levaram os organizadores a esquecer a Irmã Chuva e o Irmão Frio. Com o cancelamento da peregrinação até o Campus Fidei, em Guaratiba, devido ao mau tempo, todos os eventos centrais aconteceram na praia de Copacabana, que, definitivamente, não ofereceu uma estrutura mínima de bem-estar aos peregrinos. Falou-se em “imprevistos”. Contudo, o que se espera de uma organização é justamente que os leve em conta, pois senão não seria necessária tal organização.
Copacabana, então, tornou-se o grande palco da Jornada. A orla estava dividida pela pista por onde o papa se deslocaria, formada por uma das faixas da Avenida Atlântica. Algumas horas antes da chegada do pontífice, essa pista era evacuada, e o acesso das pessoas à praia era proibido. Quem estava à beira-mar não podia mais sair; e quem estava do lado dos edifícios não podia mais entrar. A circulação só voltava ao normal depois da passagem do papamóvel.
Um dos transtornos dessa logística, por exemplo, foi o acesso aos banheiros. Para os que estavam à beira da praia, as únicas opções de toaletes eram os poucos e tradicionais “postos” de Copacabana, localizados ao longo da orla (só havia banheiros químicos do outro lado da “pista do papa”, fora da praia), que não estão preparados para uma quantidade tão grande de visitantes, contando com apenas um banheiro masculino e um feminino, com capacidade máxima de cinco pessoas cada.
Embora sendo tradicionalmente pagos (R$ 1,70 por acesso), os banheiros dos postos tinham acesso grátis aos peregrinos, a partir de um acordo com a prefeitura. Porém, em uma segunda demonstração de burocracia totalmente desnecessária, para fazer uso desses banheiros, cada “necessitado” precisava preencher, na porta do banheiro, uma ficha com seu nome, número de identificação e assinatura. Os estrangeiros eram obrigados a informar o número do passaporte. Com esse controle, os organizadores da Jornada poderiam ressarcir a administração municipal.
Já na Vigília do sábado, para quem preferiu pernoitar na praia, as opções eram enfrentar as infindáveis filas dos banheiros dos postos na praia ou dos banheiros químicos na avenida (que, por serem poucos para a enorme multidão, ultrapassavam sua capacidade de limpeza e de armazenamento), ou improvisar, como fez um grupo de canadenses: dentro de uma barraca montada na praia, eles utilizavam galões de água vazios para fazer suas necessidades, que depois ficavam à espera do seu destino no mar ou no lixo.
Na peregrinação a pé para a Vigília, em Copacabana, a desorganização e a burocracia novamente deram as caras: a distribuição dos kits de comida foi centralizada no Museu de Arte Contemporânea. Mais de três milhões de peregrinos, e apenas um único ponto de distribuição, sem qualquer tipo de organização das filas nos arredores. Assim, a região do museu tornou-se o caos total. Alguns voluntários tentavam organizar os peregrinos, mas era impossível saber, no meio da imensa multidão, se as filas estavam se aproximando ou se afastando do museu – ou mesmo se o longínquo início da fila levaria realmente a algum lugar... E tudo ao embalo da chuva, que ia e vinha ao longo da manhã de sábado. Assim, foram inúmeros os peregrinos que simplesmente mudaram de ideia e não retiraram os seus kits.
1.2 Multidão auto-organizada
Apesar de todos os transtornos, o espírito coletivo foi mais forte e permitiu uma reunião gigantesca de pessoas sem nenhuma tragédia ou violência. Um interessante estudo de caso para os adeptos à auto-organização.
O Rio de Janeiro estava acostumado a ver recentemente grandes conglomerados de pessoas reunidas pacificamente para manifestar contra as injustiças sociais, porém o saldo final acabava sendo negativo depois que alguns criminosos devastavam e saqueavam a cidade. Na Jornada, diante da desorganização dos responsáveis, a multidão auto-organizada, sob a atração pacífica de Francisco, foi um ponto de destaque.
Seja na recepção ao papa, aglomerando-se ao redor do carro do pontífice, seja na praia de Copacabana, a multidão mostrou a sua força de manifestação e de organização, atraída e congregada por um objetivo comum.
1.3 Força simbólica da Criação
Além disso, o que faltou da parte humana responsável pelo evento, a parte natural da cidade retribuiu ao cêntuplo. O comentário maldoso até dizia que, neste ano, a participação dos jovens nas “catequeses” com os bispos foi maior justamente por causa das chuvas. Se os dias estivessem ensolarados, a “catequese” do Irmão Sol e da Irmã Praia certamente seria a mais concorrida...
Com a mudança da peregrinação de 13 quilômetros até o Campus Fidei, em Guaratiba, para Copacabana, o trajeto foi reduzido para nove quilômetros, partindo da Estação Central do Brasil. Assim, ao longo do caminho, os peregrinos eram retribuídos com uma tarde de sábado finalmente ensolarada, com as belíssimas vistas do Corcovado, à direita, e do Pão de Açúcar, à esquerda.
E o próprio papa assumiu em seu discurso na vigília do sábado, que, “por causa do mau tempo, tivemos de suspender a realização desta Vigília no 'Campus Fidei', em Guaratiba. Não quererá, porventura, o Senhor dizer-nos que o verdadeiro 'Campus Fidei', o verdadeiro Campo da Fé, não é um lugar geográfico, mas somos nós mesmos? Sim, é verdade! Cada um de nós, cada um de vocês, eu, todos. E ser discípulo missionário significa saber que somos o Campo da Fé de Deus”.
Diferentemente de um aeroporto abandonado (como ocorreu em outras Jornadas) ou de um grande descampado (como seria em Guaratiba), a praia de Copacabana foi o sinal máximo de que o verdadeiro campo de missão envolve também a cidade, as ruas, a multidão, a Criação, cada um e cada uma. Cada um desses elementos diz e narra a fé e Deus a nós. E, por outro lado, cada um e cada uma de nós é convidado a reconhecer a presença de Deus em cada um desses elementos.
Apesar de todos os percalços da organização, os jovens mostraram, como disse o Papa Francisco em sua saudação em Copacabana na quinta-feira, “que a fé de vocês é mais forte do que o frio e a chuva”.
E isso era visível em toda a cidade do Rio. O protagonismo dos jovens na Jornada ficou evidente em três pontos principais: o encontro, o compromisso e a mudança.
2.1 O encontro
A Jornada foi celebrada em diversos níveis de encontro: dos jovens entre si, dos jovens com o papa e a Igreja, e dos jovens com o mundo.
Foi o encontro dos jovens peregrinos com a realidade da cidade, da pobreza, da injustiça e do desperdício espalhados pelas ruas pelas quais caminhavam. A “cultura do encontro”, defendida por Francisco em outros momentos de sua viagem, tornou-se não apenas discurso, mas também desafio e possibilidade em cada um dos dias dos peregrinos e do próprio papa, em que cada discurso se encarnava em gestos tanto com a multidão, quanto com as pessoas encontradas individualmente.
A Jornada também foi um encontro com aqueles que não puderam estar presentes. Primeiramente, com Bento XVI, que convocou essa Jornada e a quem o seu sucessor pediu que se enviasse “uma saudação e um forte aplauso”. Depois, um encontro com “todos os jovens do mundo, em particular aqueles que queriam vir ao Rio de Janeiro e não puderam”. Esse encontro foi marcado pelo reconhecimento, por parte da Igreja, dos novos processos sociais, como a midiatização. O encontro com Bento XVI, por exemplo, se deu, para além da oração, por meio da televisão. Francisco contou que Bento XVI lhe dissera que estaria junto da televisão durante todo o evento. “Ele está nos vendo agora”, disse o pontífice aos jovens. Continuando, o papa disse: “A todos os que nos seguem por meio do rádio, da televisão e da internet, a todos lhes digo: bem-vindos a esta festa da fé! (…) Porque o mais importante hoje é essa reunião de vocês e a reunião de todos os jovens que estão nos acompanhando através dos meios”.
Na Vigília, contudo, o encontro tornou-se desafio. Na organização inicial, pensada para o Campus Fidei, os peregrinos ficariam divididos em diversos lotes, distribuídos por todo o espaço. Com a transferência para Copacabana, a praia se tornou uma “terra sem leis”, em que os “latifundiários da areia” (geralmente os grupos mais numerosos e que haviam chegado à praia ainda no sábado pela manhã, reservando seus territórios) se adonavam de grandes extensões de praia com fios improvisados, fitas de demarcação ou com “muralhas” de areia, impedindo o acesso dos demais peregrinos nas “suas” terras. Para se deslocar, as pessoas se amontoavam em estreitos corredores entre os lotes improvisados. A disputa por um “pedaço de areia” não era exatamente a demonstração da cultura da solidariedade e do encontro proposta por Francisco, embora fosse possível ver alguns jovens solidários e abertos aos “sem praia”.
2.2 O compromisso
A partir do encontro, a Jornada também foi um momento de compromisso prático e concreto dos jovens com a realidade eclesial e mundial. Do encontro, nascem as relações de amizade entre os jovens, mas também o compromisso com a Igreja e com o mundo.
Isso se deu especialmente na Via Sacra, na sexta-feira, celebrada de forma muito tocante e concreta, a partir de exemplos de realidades contemporâneas, ao longo da orla de Copacabana. O Papa Francisco, em seu discurso, relembrou que cada jovem, ao longo dos dois anos de peregrinação da Cruz da Jornada pelo Brasil , deixou algo na Cruz, desejos e necessidades. Por outro lado, a Cruz também deixou algo na vida de cada um e de cada uma. E, por fim, a Cruz ensinou algo a cada um e de cada uma em sua vida.
Francisco convidou a um compromisso que nasce a partir da Cruz: “Olhar sempre para o outro com misericórdia e amor, sobretudo a quem sofre, a quem tem necessidade de ajuda, a quem espera uma palavra, um gesto. A Cruz nos convida a sair de nós mesmos para ir ao encontro deles e estender-lhes as mãos”.
Para Francisco, “com a Cruz, Jesus se une ao silêncio das vítimas da violência, que já não podem gritar, sobretudo os inocentes e os indefesos”, sejam as famílias que perdem seus filhos, como os 240 jovens mortos em Santa Maria, lembrados especialmente pelo papa, sejam as pessoas que passam fome diante do desperdício de alimentos, sejam as mães e os pais que veem seus filhos vítimas da droga, sejam os perseguidos pela religião, pelas suas ideias ou pela cor da pele, sejam os jovens que perderam a confiança nas instituições políticas ou na Igreja, devido ao egoísmo, à corrupção e à incoerência.
Outro momento de compromisso foi a Vigília do sábado, em que os já celebres “testemunhos” são momentos para mostrar, a cada Jornada, o papel protagônico dos jovens na Igreja em todo o mundo. Neste ano, contudo – justamente no ano cujo tema é “fazer discípulos entre todas as nações” –, eles ficaram centrados apenas em jovens brasileiros (três cariocas e um paranaense), em grande parte centrados também em relatos sobre experiências individuais de renovação e conversão – com pouco compromisso com o outro.
O jovem paranaense, por exemplo, depois de relatar um assalto sofrido e que lhe deixou paraplégico, centrou sua fala na sua opção de se “guardar” no seu namoro até o casamento e na convivência com a sua comunidade de fé particular. Em certo ponto, pediu que os jovens se ajoelhassem na praia e adorassem a cruz peitoral do kit do peregrino, invocando uma espécie de juramento, desviando-se do testemunho e passando para a pregação. Ao Papa Francisco, pediu ainda que entronizasse a “era do Espírito Santo”, avistada misticamente pela fundadora de sua comunidade. No fim, para o desespero da produção do evento, vendo que sua fala tomava um grande tempo da celebração, foi perceptível que ele precisou ser avisado pelo ponto eletrônico para encerrar o seu discurso.
Depois de ouvir esse e outros testemunhos, o Papa Francisco, em contraste, falou sobre os diversos campos em que a semente cai, como no relato evangélico. E foi muito claro sobre o tipo de compromisso necessário: “Eu sei que vocês querem ser uma boa terra, cristãos a sério, não cristãos de meio tempo, não cristãos 'engomados', com o nariz assim [empinado], que parecem cristãos e, no fundo, não fazem nada. Não cristãos de fachada. Esses cristãos que são pura aparência. Mas sim cristãos autênticos”.
Parecia uma resposta direta do pontífice ao que acabara de ouvir.
2.3 A mudança
A Jornada como um todo foi uma grande perspectiva de mudança: mudança pessoal, pela experiência vivida por cada peregrino; mudança social, no embalo das manifestações brasileiras; mas principalmente mudança eclesial, pelas palavras e pelos gestos de Francisco, ecoados no entusiasmo e na alegria da multidão de jovens peregrinos.
Como disse o papa na sua saudação na quinta-feira, “eu também vim [à Jornada] para ser confirmado pelos entusiasmo da fé de vocês. Vocês sabem que na vida de um bispo há tantos problemas que pedem para ser solucionados. E com esses problemas e dificuldades, a fé do bispo pode se entristecer. Que feio é um bispo triste. Que feio é. Para que a minha fé não seja triste, eu vim aqui para me contagiar com o entusiasmo de vocês”.
Contudo, na Vigília do sábado, o último testemunho dos jovens da noite também girou em torno de uma "mudança", de uma “conversão” de uma moça: ela deixou de ouvir “funk proibidão” (termo repetido várias vezes) e de falar palavrões. “Manhã, tarde e noite – relatou a moça –, era só proibidão. Eu me recordo de São Paulo que respirava para matar cristão, eu respirava para escutar funk proibidão. Sentia muito prazer nisso, fazia apologia ao crime, gestos obscenos e falava palavrões. Cada 10 palavras, 7 eram palavrões. Revistas de horóscopos, signos, simpatias, ao mesmo tempo todo domingo estava na Santa Missa e comungava”. Depois de ouvir uma “música da igreja” em uma rádio funk, contou, “sem perceber, parei de escutar proibidão e falar palavrões”.
Em contraste, logo em seguida, no seu discurso, o papa desafiava os jovens à verdadeira mudança: “Talvez, às vezes (…), escutamos o Senhor, mas não muda nada em nossa vida, porque nos deixamos atontar pelos tantos apelos superficiais que escutamos. Eu lhes pergunto, mas não respondam agora, cada um responda em seu coração: eu sou um jovem, uma jovem atontado?”.
Atontado. Termo forte, claro, direto, providencial diante do que se acabara de ouvir nos testemunhos.
Um dia antes, no discurso da Via Sacra, Francisco também foi enfático sobre o tipo de mudança necessária: “A fé faz uma revolução que poderíamos chamar de copernicana, tira-nos do centro e coloca a Deus no centro; a fé nos inunda de seu amor que nos dá segurança, força e esperança, Aparentemente, parece que não muda nada, mas, no mais profundo de nós mesmos, muda tudo. (…) Amigos queridos, a fé é revolucionária, e eu te pergunto: hoje, tu estás disposto, estás disposta a entrar nessa onda da revolução da fé?”.
Mais diretamente, na Vigília, Francisco pediu “os jovens na rua”. “São jovens que querem ser protagonistas da mudança. Por favor, não deixem que outros sejam os protagonistas da mudança. Vocês são os que têm o futuro. (...) Continuem superando a apatia e oferecendo uma resposta cristã às inquietações sociais e políticas que vão surgindo em diversas partes do mundo. Peço-lhes que sejam construtores do futuro, que se ponham ao trabalho por um mundo melhor. Queridos jovens, por favor, não 'olhem da sacada' a vida, metam-se nela. Jesus não ficou na sacada, meteu-se; não 'olhem da sacada' a vida, metam-se nela como fez Jesus”.
Por fim, o grande protagonista da Jornada foi, sem dúvida, o Papa Francisco. O “primeiro” em tantas coisas na vida da Igreja: o primeiro papa latino-americano, o primeiro papa jesuíta, o primeiro papa a ter a coragem de assumir o nome de Francisco; o “inovador” do papado, do pontífice que carrega a sua própria mala e circula por uma das cidades mais violentas do país com os vidros do carro abertos e em um papamóvel sem vidro blindado, fora da “caixa de vidro”, criticada por ele em sua entrevista à TV, para tratar como gente as pessoas que ele visita.
Em seu discurso de despedida, no domingo à noite, Francisco disse que estava partindo “com a alma cheia de recordações felizes”. “Neste momento – continuou – já começo a sentir saudades. Saudades do Brasil, este povo tão grande e de grande coração; este povo tão amoroso (...). Tenho a certeza de que Cristo vive e está realmente presente no agir de tantos e tantas jovens e demais pessoas que encontrei nesta inesquecível semana. Obrigado pelo acolhimento e o calor da amizade que me foram demonstrados. Também disso começo a sentir saudades”.
Essa “saudade” certamente nasceu também no coração de todos os peregrinos, que ouviram e viram o papa falar e pôr em prática a sua opção em pôr Cristo no centro, a sua ênfase na liberdade de consciência e a “nova primavera em todo o mundo” que Cristo está preparando (também encarnada pelas palavras e pelos gestos de Francisco).
3.1 Cristo no centro
Para Francisco, não basta “botar fé”, slogan utilizado pela organização brasileira para a peregrinação dos símbolos da Jornada por todo o país. Além de não especificar em quem se “bota a fé”, o slogan deixa faltar ainda os complementos: esperança e amor (em que, aliás, “o maior deles é o amor”, cf. 1Cor 13, 13). Com a fé, disse o papa, “a vida terá um sabor novo, a vida terá uma bússola que indica a direção”; com a esperança, “todos os seus dias serão iluminados e o seu horizonte já não será escuro, mas luminoso”; com o amor, “a sua existência será como uma casa construída sobre a rocha, o seu caminho será alegre, porque encontrará muitos amigos que caminham com você”.
E afirmou: “Hoje será bom que todos nos perguntemos sinceramente: em que botamos a nossa fé? Em nós mesmos, nas coisas ou em Jesus? Todos temos muitas vezes a tentação de pormo-nos no centro, de crer que somos o eixo do universo, de crer que nós sozinhos construímos a nossa vida […]. 'Bota Cristo' em tua vida, põe tua confiança nele e não ficarás desiludido!”.
“Botar Cristo” na própria vida: esse é o desafio de Francisco a todos os jovens. Assim, “tua vida estará cheia do seu amor, será uma vida fecunda. Porque todos nós queremos ter uma vida fecunda. Uma vida que dê vida a outros”.
3.2 Liberdade de consciência
Muito mais do que a liberdade pessoal (“Eu não tenho medo. Sou inconsciente”, diria ele em sua primeira entrevista televisiva), que o leva a andar de carro não blindado, com a janela aberta, em pleno centro do Rio, a percorrer a multidão em um papamóvel aberto para poder beijar as crianças e saudar as pessoas, Francisco também promoveu a liberdade de consciência em todos os jovens peregrinos.
Isso ficou patentemente claro na Via Crucis e na Vigília do sábado. Na Via Sacra, Francisco disse: “Eu te pergunto hoje: tu, como quem queres ser? [referindo-se a Pilatos, Cirineu ou Maria] (…) E tu, como qual deles queres ser? Como Pilatos, como o Cirineu, como Maria? Jesus está te olhando agora e te diz: queres me ajudar a levar a Cruz? Irmão e irmã, com toda a força de jovem, o que lhe respondes?”.
O convite é pessoal (“tu”), inclusivo ("irmão e irmã") e direto (“Jesus está te olhando e te diz”). A resposta, porém, fica na consciência de cada um.
Na Vigília, Francisco promoveu um dos mais belos momentos místicos da Jornada, em que os milhões de pessoas reunidas na praia fizeram alguns instantes de silêncio diante do convite do papa: “Façamos uma coisa: todos em silêncio, olhemos para o coração, e cada um diga a Jesus que quer receber a semente [lançada por Jesus]. Diga a Jesus: 'Olha, Jesus, as pedras que existem, olha os espinhos, olha os jugos, mas olha este pedacinho de terra que eu te ofereço, para que a semente entre'. Em silêncio, deixemos entrar a semente de Jesus. Lembrem-se desse momento. Cada um sabe o nome da semente que entrou. Deixem-na crescer, e Deus vai cuidá-la”.
“Cada um sabe”... No silêncio da liberdade de consciência de cada um, Deus “vai cuidar” dessa semente e a fará crescer.
E ainda: “Eu te pergunto, mas responde no teu coração, hein! Não em voz alta, em silêncio. Eu rezo? Cada um se responda. Eu falo com Jesus? Ou tenho medo do silêncio? Deixo que o Espírito Santo fale no meu coração? Eu pergunto a Jesus: o que queres que eu faça? O que queres da minha vida? Isso é treinar-se. Perguntem a Jesus, falem com Jesus”.
O papa pergunta. Mas a resposta está “no teu coração”, “em silêncio”, na ação do "Espírito Santo no meu coração". “Cada um se responda”.
O contraponto foram os shows musicais que antecederam os grandes encontros em Copacabana. Enquanto a multidão aguardava o início das celebrações, diversos músicos católicos e padres cantores se revezavam no palco. E a espiritualidade proposta revelava a crescente “pentecostalização” do catolicismo brasileiro, um “catolicismo evangélico” já analisado por diversos estudiosos.
Uma das canções interpretava a Eucaristia como “o céu dentro de mim”, saciando o fiel “triste, abatido, precisando de amor”. Outra falava que “o meu lugar é o céu”, é o lugar onde “eu quero morar”.
Contudo, distante de uma interpretação personalista dos sacramentos ou deturpada da presença divina “no céu”, Francisco disse na homilia da Missa de Envio que somos enviados por Cristo, sem medo, para servir. “No começo do salmo que proclamamos – afirmou – estão estas palavras: 'Cantem ao Senhor um canto novo' (95,1). Qual é esse canto novo? Não são palavras, não é uma melodia, mas é o canto da nossa vida, é deixar que a nossa vida se identifique com a de Jesus, é ter os seus sentimentos, os seus pensamentos, as suas ações. E a vida de Jesus é uma vida para os demais. É uma vida de serviço”.
Além disso, em vez de buscar um “céu” distante, Francisco convidou, na quarta-feira, na visita ao Hospital São Francisco, a “abraçar a carne sofredora de Cristo” nos irmãos e irmãs em dificuldade. “Jesus foi quem veio primeiro para junto de nós e não nos deu somente um pouco de Si, mas se deu por inteiro, Ele deu a sua vida para nos salvar e mostrar o amor e a misericórdia de Deus”, disse Francisco na Missa de Envio.
Assim se manifesta a liberdade de consciência. Jesus não propõe a desconexão com o mundo, em uma liberdade fora do mundo ("no céu") ou personalista ("o meu próprio bem"). Jesus também não impõe, não é “vontade de domínio” ou “vontade de poder”. A liberdade de consciência se manifesta na “força do amor”, disse o papa. Ser livre, para o papa, é dar-se totalmente pelos demais, como Jesus, é ter "uma vida de serviço para os demais". “Jesus não nos trata como escravos, mas como pessoas livres, como amigos, como irmãos; e não somente nos envia, mas nos acompanha, está sempre junto de nós nesta missão de amor”, afirmou.
Para Francisco, é nessa liberdade de consciência – que brota do Espírito, no diálogo com Jesus –, que nascem a oração, o discipulado missionário e o amor fraterno encarnado especialmente na carne sofredora de Cristo nos pobres.
3.3 Nova primavera
Em sua despedida no aeroporto, Francisco afirmou que continuará nutrindo “uma esperança imensa nos jovens do Brasil e do mundo inteiro: através deles, Cristo está preparando uma nova primavera em todo o mundo. Eu vi os primeiros resultados desta sementeira; outros rejubilarão com a rica colheita!”.
O pontificado de Francisco como um todo tem sido uma “nova primavera”. Mas Francisco reconhece que essa primavera não é apenas dele, mas também dos jovens. Ou, melhor, não é nem dele, nem dos jovens, mas de Cristo. E assume que ele, Francisco, só poderá ver os primeiros frutos, pois reparar a Igreja se trata de um processo longo.
Na Vigília, Francisco refletiu sobre essa primavera a partir de "três imagens que podem nos ajudar a entender melhor o que significa ser um discípulo missionário: a primeira imagem, o campo como lugar onde se semeia; a segunda, o campo como lugar de treinamento; e a terceira, o campo como canteiro de obras". A semente de Jesus precisa ser acolhida pelo jovem. Depois de recebê-la, é preciso cuidá-la, treinar-se para a missão. Por fim, os jovens são convidados a dar o melhor de si e a construir a Igreja.
E perguntou: “Querem construir a Igreja? [Todos: “Sim!”] Animam-se? [“Sim”] E amanhã vão se esquecer do que disseram? [“Não!”] Assim que eu gosto”. O desafio de Francisco aos jovens é de serem construtores da Igreja e protagonistas da história. "Chicos e chicas, por favor: não se ponham no rabo da história. Sejam protagonistas. Joguem para a frente. Chutem para a frente, construam um mundo melhor. Um mundo de irmãos, um mundo de justiça, de amor, de paz, de fraternidade, de solidariedade. Joguem para a frente sempre”.
A “nova primavera”, portanto, é uma “utopia” positiva e possível, como reafirmou o papa em sua entrevista à TV. “Na Igreja de Jesus – continuou ele na Vigília –, as pedras vivas somos nós, e Jesus pede que edifiquemos a sua Igreja. (...) Cada pedacinho vivo tem que cuidar da unidade e da segurança da Igreja. E não construir uma pequena capela onde só cabe um grupinho de pessoas. Jesus nos pede que a sua Igreja seja tão grande que possa alojar toda a humanidade, que seja a casa de todos”.
E, encerrando a Vigília, disse: “Queridos amigos, não se esqueçam: vocês são o campo da fé. Vocês são os atletas de Cristo. Vocês são os construtores de uma Igreja mais bela e de um mundo melhor”. Por isso, na Missa de Envio, convidou a pôr em prática três palavras: "ide", "sem medo", "para servir". "Levar o Evangelho é levar a força de Deus, para extirpar e destruir o mal e a violência; para devastar e derrubar as barreiras do egoísmo, da intolerância e do ódio; para construir um mundo novo", concluiu Francisco.
Uma nova primavera em todo o mundo, portanto, que não é nem do papa nem dos jovens, e sim de Cristo, mas que, para começar, precisa do papa e dos jovens. Com a metáfora do futebol, o papa convidou os jovens a “treinar, e muito” para essa convocação, que é “superior à Copa do Mundo”. De sua parte, Francisco já deu o pontapé inicial e, no Brasil, marcou um golaço.
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