O pontificado de Leão XIV e a eclesiologia global. Entrevista com Massimo Faggioli

Foto: Vatican Media

04 Novembro 2025

"Ainda o Papa Leão XIV não mostrou muito a sua face. O seu começo é lento, porém, muito calculado. É uma questão de estilo. Não de ruptura", avaliou o professor Massimo Faggioli, ao conversar por WhatsApp com Thiago Gama sobre os primeiros meses do pontificado de Robert Francis Prevost.

Olhando em perspectiva, o historiador compara o papado de Leão XIV com seu antecessor, Francisco. Segundo aponta, "com um pontificado a Cúria e os observadores mais atentos perceberam que ele não é propriamente o anti-Francisco; ele tem suas ideias próprias, mas que possui a intenção de continuar o trabalho de Francisco, mas com suas próprias ideias. Isso é crucial". Para Faggioli, "não haverá um retrocesso para a eclesiologia de antes de Francisco. Eu prevejo um pontificado de Leão XIV como uma continuidade com a do Papa Francisco, porém, com as ideias próprias do Papa Leão XIV". 

"A oposição não ganhou após Francisco ter partido. Leão XIV está disposto a seguir pelo caminho de Francisco, ainda que adotando uma espécie de caminho do meio, com mais vagar. A oposição esperava uma restauração completa, mas a eleição de um Papa com intenções de continuidade já frustra essa expectativa", salienta Faggioli. "Embora o Papa Leão XIV seja americano, o foco dele não é prioritariamente nos Estados Unidos, mas sim na América Latina, sem negligenciar a Europa. Isso se deve ao seu histórico de ter atuado longamente no Peru. Ele tem a vivência da América Latina e das suas lutas geopolíticas e sociais. Além disso, a situação da democracia nos Estados Unidos é de extremo perigo", adverte. 

Massimo Faggioli (Foto: Reprodução | Youtube)

Massimo Faggioli é doutor em História da Religião e professor de Eclesiologia, Loyola Institute, Trinity College Dublin. Também é editor colaborador da revista Commonweal. Destacamos os seguintes livros, de sua autoria: Vaticano II: A luta pelo sentido (Paulinas, 2013); True Reform: Liturgy and Ecclesiology in Sacrosanctum Concilium (Liturgical Press, 2012); e Historia y evolución de los movimientos católicos. De León XIII a Benedicto XVI (PPC Editorial, 2011).

A entrevista é de Thiago Gama, doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ. Foi cedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU pelo entrevistador.

Eis a entrevista.

Professor Faggioli, em sua análise, o Conclave que elegeu Leão XIV procurou claramente um perfil que sinalizasse uma ruptura, especialmente considerando a turbulência do pontificado anterior. Em seus primeiros meses, o novo Papa foi percebido, por muitos, como o anti-Francisco. Em sua opinião, essa percepção inicial se confirmou ou a Cúria e a Igreja Global estão começando a observar uma intenção de continuidade, ainda que com uma cadência diferente?

Massimo Faggioli – A percepção inicial, de que Leão XIV seria o anti-Francisco, estava enraizada no desejo de setores específicos – especialmente nos Estados Unidos – de ver uma inflexão radical. De fato, o seu começo é lento, porém, muito calculado, o que contrasta com a proatividade e a velocidade revolucionária que Francisco impôs. Contudo, com o tempo, a Cúria e os observadores mais atentos perceberam que ele não é propriamente o anti-Francisco; ele tem suas ideias próprias, mas que possui a intenção de continuar o trabalho de Francisco, mas com suas próprias ideias. Isso é crucial. Não haverá um retrocesso para a eclesiologia de antes de Francisco. Eu prevejo um pontificado de Leão XIV como uma continuidade com a do Papa Francisco, porém, com as ideias próprias do Papa Leão XIV. A forma de governo pode ser mais colegiada talvez mais ‘institucional’ do que profética, mas o direcionamento do Concílio Vaticano II não será revertido. Ainda o Papa Leão XIV não mostrou muito a sua face. O seu começo é lento, porém, muito calculado. É uma questão de estilo. Não de ruptura.

O pontificado de Francisco foi inseparável do seu carisma jesuíta: a proatividade, a ação missionária e a prontidão para “ir aonde ninguém quer ir”. O fato do Papa Francisco ser jesuíta moveu e acelerou o seu pontificado de forma estrutural? Como podemos entender o carisma agostiniano de Leão XIV – um carisma de ordem diferente – em contraste com a velocidade da Companhia de Jesus, e como isso impactará a implementação da Sinodalidade?

Massimo Faggioli – Esta é uma boa pergunta. O fato de Francisco ser jesuíta foi, sem dúvida, um motor para o seu pontificado. Isto era um carisma missionário, uma identidade de ação e proatividade que se manifestou velozmente, acelerando as reformas da Cúria e o processo sinodal. Assim como Francisco, Leão XIV também tem um carisma por ser agostiniano. Porém, o carisma de Leão XIV é incipiente, está no começo. É um carisma de ordem diferente, de reflexão e busca pela verdade (a tradição agostiniana), enquanto Francisco mostrou, muito velozmente, o carisma da Companhia de Jesus, a proatividade e a ação. O risco de um carisma incipiente é que ele pode ser interpretado como hesitação. Se Leão XIV quiser implementar a Sinodalidade, ele precisará traduzir a reflexão agostiniana em ação institucionalizada, o que inevitavelmente demandará mais vagar e cálculo do que a abordagem jesuíta de Francisco.

Em seus livros e artigos, o senhor documentou a “guerra civil” ideológica dentro do catolicismo americano contra o Papa Francisco. Com a partida de Francisco, a oposição conservadora nos EUA sentiu que sua batalha estava vencida? Mesmo sendo o Papa Leão XIV de origem americana, isso significa que o foco da Igreja se voltará prioritariamente para os Estados Unidos, ou a crise da democracia americana o impedirá?

Massimo Faggioli – A oposição não ganhou após Francisco ter partido. Leão XIV está disposto a seguir pelo caminho de Francisco, ainda que adotando uma espécie de caminho do meio, com mais vagar. A oposição esperava uma restauração completa, mas a eleição de um Papa com intenções de continuidade já frustra essa expectativa. Embora o Papa Leão XIV seja americano, o foco dele não é prioritariamente nos Estados Unidos, mas sim na América Latina, sem negligenciar a Europa. Isso se deve ao seu histórico de ter atuado longamente no Peru. Ele tem a vivência da América Latina e das suas lutas geopolíticas e sociais.

Além disso, a situação da democracia nos Estados Unidos é de extremo perigo. O caminho que estão tomando com a democracia americana é perigosa sobre a presidência de Donald Trump. É nesse cenário de polarização ideológica e de crise da ordem liberal que a Igreja americana se encontra. O Papa Leão XIV não pode focar primariamente nos EUA porque o problema ali é menos eclesiológico e mais político-estrutural, um desafio que a própria Igreja americana ainda não conseguiu resolver internamente.

O pontificado de Francisco consolidou, de forma sem precedentes, a voz do Sul Global. O fato de o Papa Leão XIV ser americano e europeu por formação (e a consequente saída do primeiro Papa latino-americano) sinaliza uma inflexão no centro de gravidade da Igreja de volta para o Norte Global? Como a Igreja na América Latina processará essa transição?

Massimo Faggioli – O centro de gravidade da Igreja não mudou radicalmente com o Papa Leão XIV. Não haverá uma inflexão automática para o Norte Global. Ao contrário, como reafirmei, o Papa Leão XIV seguirá os passos do Papa Francisco, ainda que possamos ponderar, embora seja cedo para afirmarmos categoricamente, que de forma um tanto mais lenta. O Papa Leão XIV não é como o Papa Francisco em relação à América Latina, mas ele tem o conhecimento de ter atuado longamente no Peru. Isso lhe confere uma base de experiência com a Teologia da Libertação e com as periferias que é impossível ignorar. O legado de Francisco de focar no Catolicismo Global e na eclesiologia de ‘Igreja em Saída’ é irreversível. O próximo pontificado, mesmo com raízes no Norte, será forçado a governar a partir de uma perspectiva global. A América Latina manterá seu papel de laboratório teológico e social, e o Papa Leão XIV terá que dialogar com essa realidade, muito mais do que com as disputas internas da Igreja americana.

Pensando no legado mais profundo de Francisco, qual reforma, em sua visão, se tornou estruturalmente irreversível, e qual é a mais vulnerável à reversão no pontificado de Leão XIV? Além disso, olhando para o futuro, o senhor vê a África como o novo motor demográfico e teológico do Catolicismo Global?

Massimo Faggioli – O legado mais estrutural e mais difícil de reverter é a Sinodalidade e o não eurocentrismo do Colégio Cardinalício. Francisco abriu um caminho sinodal que, mesmo que se mova ‘com mais vagar’ sob Leão XIV, agora é parte da metodologia da Igreja. O processo foi institucionalizado. O mais vulnerável seriam as reformas curiais que dependiam da autoridade pessoal de Francisco, e não de uma estrutura colegial. Mas, no geral, a eclesiologia de Francisco é que se tornou a nova norma. Sobre a África, eu não sou um especialista no assunto. Mas, como observador do Catolicismo Global, creio que a caridade da Igreja, o crescimento populacional e a presença missionária da Igreja contribuem ativamente para a solidificação da Igreja naquele continente. É inegável que o futuro demográfico e carismático da Igreja está se movendo para o Sul Global, e a África é uma força motriz vital para essa realidade. Leão XIV terá que governar o mundo que Francisco revelou.

Leia mais