20 Junho 2019
Neste ano recorda-se o 75º aniversário do “Dia D”, quando as Tropas Aliadas invadiram a Normandia, em 6 de junho de 1944. Somente dois dias antes, os aliados tinham feito a Libertação de Roma, fazendo da Cidade Eterna a primeira capital a ser libertada da ocupação alemã nazista.
O comentário é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA, publicado por La Croix International, 05-06-2019. A tradução é de Graziela Wolfart.
Perto da minha cidade natal no norte da Itália há vários cemitérios onde se encontram as sepulturas dos soldados aliados – jovens homens vindos dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Austrália, Nova Zelândia e até mesmo da Polônia que lutaram contra o nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial. Com nossas crianças nascidas nos Estados Unidos, minha esposa e eu sempre fazemos questão de demonstrar nosso respeito em cada um desses cemitérios de guerra quando visitamos a Itália.
A Segunda Guerra Mundial criou uma especial relação entre a Itália e os Estados Unidos que é mais forte, por exemplo, que os laços que ligam os italianos e os britânicos. Mas neste mês de junho parece que os católicos italianos estão celebrando de uma forma diferente a libertação de Roma. Desta vez é a libertação dos americanos, ou pelo menos de um deles – Steve Bannon.
O governo italiano anunciou no último dia 31 de maio que está tomando providências para revogar a locação (supostamente emaranhada em declarações bancárias fraudulentas e outras irregularidades) de um monástico complexo em Trisulti, próximo de Roma.
É onde Bannon esperava instalar o campus para sua academia de treinamento político-teológica de extrema-direita. Agora ele provavelmente será despojado do seu tão desejado ponto de apoio romano para o laboratório de ideias "Dignitatis Humanae."
É irônico que o anúncio da ação governamental venha apenas poucos dias depois das eleições para o Parlamento Europeu de 26 de maio, dado o considerável investimento de tempo e dinheiro que Bannon fez nos últimos meses com o objetivo de subverter a ordem política europeia.
Os europeus não queriam a ruptura política que Bannon ajudou a criar nos Estados Unidos como ex-estrategista de Donald Trump.
Em âmbito continental, a onda populista e de partidos antissistema tem sido mais limitada do que o esperado. Até mesmo europeus populistas e políticos nacionalista-xenofóbicos olharam para o político empreender americano com profunda desconfiança.
Mas não importa o que aconteça ao projeto de Bannon, há uma fenda crescente entre a nova católica de direita nos Estados Unidos e os crentes na Europa.
E isso não deve desaparecer tão rapidamente. Bannon é declaradamente católico. E sua política personifica uma nova cultura dentro de uma certa tensão no catolicismo dos Estados Unidos.
É um modelo marcado por um social conservadorismo antissistema e por um tradicionalismo teológico.
Isso não somente ajudou Donald Trump a vencer a Casa Branca, como também aumenta a possibilidade de garantir seu mandato como presidente.
Marcadores evidentes da ideologia do novo americanismo católico de direita são sentimentos anti-imigrantes e a xenofobia, posições extremas em questões de vida humana, e o tradicionalismo teológico – conduzidos por uma mentalidade muito mais próxima do recente Marcel Lefebvre e sua Fraternidade Sacerdotal de São Pio X (SSPX) do que do Concílio Vaticano II e dos papas desde João XXIII a Francisco.
Uma parte integral do processo em curso da modificação genética do DNA do americanismo católico de direita de hoje é também sua relação com a Europa.
Nos últimos anos é mais visível que os líderes intelectuais fizeram da Europa um alvo principal. Eles miraram, em particular, a União Europeia e o Catolicismo no Velho Continente.
Isso acontece algumas vezes com violência verbal, que é parte de um engajamento pós-civil na praça pública. Civilidade e decência se tornaram "valores secundários."
Este grupo de católicos americanos fizeram da Europa um antimodelo e um alvo polêmico principal. Eles se arrepiam com católicos europeus por se recusarem a usar a religião como uma ferramenta no "choque de civilizações."
Eles não gostam do modelo social europeu, que historicamente foi a alternativa ao livre-mercado americano e à ideologia antigovernamental. E eles condenam o alegado liberalismo do episcopado europeu e das elites teológicas, especialmente na Alemanha.
Agora, não há dúvidas de que o catolicismo europeu precisa encontrar novas soluções para os problemas da secularização, da debandada da juventude da religião e dos padrões de longo prazo da imigração.
E ninguém nega que o projeto europeu está em apuros, e há bastante tempo.
Já estava claro em 2005, com os referendos fracassados na França e nos Países Baixos sobre a proposta da Constituição da União Europeia, que muitos europeus cresceram insatisfeitos com a volta da união neoliberal e tecnocrática.
Mas o desprezo que os direitistas do americanismo católico têm mostrado para a Europa não é sobre as falhas apresentadas da UE ou a história secular de secularização do continente.
Ao invés disso, é sobre as trajetórias divergentes dos Estados Unidos e das nações da Europa – tanto política como teologicamente.
E assim, essa linha de falha é relevante para compreender o catolicismo global hoje, porque ele representa uma mudança nas relações entre o Vaticano e a Europa de um lado e do Vaticano e dos Estados Unidos de outro lado.
A despeito do entusiasmo pró-americano por líderes europeus e católicos intelectuais como Alexis de Tocqueville no século XIX e Jacques Maritain no século XX, o antiamericanismo sempre fez parte da cultura do catolicismo europeu. Isso se tornou especialmente evidente durante a Segunda Guerra Mundial quando muitos católicos europeus apoiaram Hitler, Mussolini e Vichy. Católicos na Europa ficaram fascinados pelos Estados Unidos, mas também desconfiados de sua cultura democrática, liberdade religiosa e do capitalismo.
Isso mudou durante a Guerra Fria quando os Estados Unidos se tornaram aliados fundamentais do catolicismo na luta contra o comunismo.
Além disso, o dogma político anticomunista, as contundentes visões de Bento XVI sobre a teologia política do Islã e sua incompatibilidade com o Oeste também ajudaram a construir uma ponte política e diplomática através do Atlântico no período pós-11 de setembro.
Isso chegou ao fim quando Bento renunciou ao papado.
O alinhamento entre os Estados Unidos e o Vaticano que tinha tomado forma teria mudado em qualquer caso, dada a direção que o catolicismo global está tomando para o assim chamado "sul do mundo."
Mas a eleição do Papa Francisco tornou a mudança muito mais nítida do que se esperava.
Desde o começo de seu pontificado, ficou claro que Francisco possui visões históricas e geopolíticas dos Estados Unidos que são muito diferentes das de seus dois predecessores imediatos.
Isso é normal para um papa latino-americano para quem a America, tanto histórica quanto filosoficamente, é a primeira de toda a "América Latina" e não "dos Estados Unidos da América".
Mas então algo aconteceu – ou seja, a crise social e política que infectou os Estados Unidos com a reação da presidência de Barack Obama (2008-2016). Pode ser sintetizado com a simples menção de um homem, Donald Trump. Religião nos Estados Unidos, incluindo o catolicismo, é atualmente a experiência de uma crise teológica.
Não somente o Papa Francisco, mas também setores significativos na Igreja têm falado (mais ou menos abertamente) contra o novo americanismo católico, que parece ser uma reação ao fim do "século americano".
Particularmente desde 2017, os jesuítas da revista La Civiltà Cattolica, o presidente da Conferência Europeia de Bispos (Jesuíta Arcebispo Jean-Claude Hollerich) e do jornal oficial da Santa Sé, L'Osservatore Romano, publicaram artigos que delineiam o diagnóstico do Vaticano dos americanos e do mal-estar católico americano.
É um problema eclesial. O catolicismo global hoje consiste em placas tectônicas que se movem em diferentes direções, e essas diferentes placas muitas vezes não sabem muito umas sobre as outras.
Mas a relação entre a Europa e os Estados Unidos é diferente. Essa é uma briga de família do tipo que leva gerações para curar.
O catolicismo europeu tem um futuro incerto, em função de suas fraquezas sociológicas e a secularização, junto com o crescente pluralismo religioso que as elites do continente ainda estão tentando compreender.
O catolicismo americano tem um futuro incerto, também. Mas está se movendo numa direção diferente. É uma Igreja muito mais polarizada, tanto teologicamente quando politicamente, onde os componentes não-brancos (especialmente latinos) ainda estão sub-representados, embora eles se tornem em breve a maioria dos católicos nos Estados Unidos.
O catolicismo está em uma encruzilhada em ambos os continentes. Mas enquanto os católicos europeus estão acostumados com o sentido de profunda incerteza sobre o futuro da sua Igreja e do Cristianismo, os católicos nos Estados Unidos não estão. Isto também é um problema geopolítico.
Os católicos foram tentados em muitos países a confiar e escolher "homens fortes" que prometem proteger sua identidade da globalização.
Alguns deles — incluindo Trump, o vice-primeiro-ministro italiano Matteo Salvini e o primeiro ministro húngaro Viktor Orbán – se mostraram claramente não liberais, quando não seus instintos autoritários vêm junto com uma vergonhosa inclinação a usar símbolos religiosos para justificar suas políticas.
Mas há uma diferença aqui nos modos dos catolicismos europeu e norte-americano olharem essas formas de autoritarismo.
Primeiro, todos os europeus são essencialmente mais seculares que os católicos na América do Norte. E eles têm mais medo de mudar a legislação sobre questões sociais a partir de ideologias religiosas.
Essa é uma das razões porque é tão difícil de entender o grande entusiasmo que alguns comentaristas próximos da direita católica americano expressam em direção a Salvini, dada sua notória indiferença ao político tema chave da direita católica – aborto.
Segundo, há uma diferença significativa no modo como católicos da Europa e dos Estados Unidos tem historicamente olhado para o autoritarismo e o fascismo. É verdade que na Europa, as memórias do fascismo e do comunismo são divididas entre leste e oeste, graças às muito diversas "memórias políticas".
Além disso, a experiência dos partidos democráticos cristãos e dos líderes políticos católicos foram muito mais importantes para a Europa Ocidental do que para a Europa Oriental. Não é surpresa que os neotradicionalistas católicos dos Estados Unidos sejam particularmente fascinados pelo modelo antiliberal de Orbán para a Hungria.
Mas acima de tudo há uma divisão transcontinental que transcende as diferenças até entre as várias regiões da Europa. A diferença mais importante entre os Estados Unidos e a Europa é que o antifascismo católico é historicamente um fenômeno europeu. E isso é relevante para a relação entre o catolicismo e a União Europeia.
Porque não importa quão pequena seja a contribuição para a libertação da Europa comparada com o sacrifício heroico dos exércitos aliados e da União Soviética, o antifascismo católico estava na raiz do projeto da União Europeia – desde os seus primeiros líderes até o seu maior apoiador hoje, Papa Francisco.
Católicos europeus foram vacinados contra o autoritarismo e o totalitarismo de um jeito que os católicos americanos nunca foram. Obviamente, há um risco de que esta vacina possa se desgastar em algum momento. E pode-se dizer que os católicos italianos são contra a exposição do vírus, considerando que um terço deles votou em Salvini nas eleições da União Europeia. Mas em âmbito continental esta diferença entre as culturas políticas dos católicos dos Estados Unidos e da Europa ainda permanece.
A relutância do eleitorado europeu em acreditar na proposta de Bannon de defender "o oeste Judeu-Cristão" tem a ver com o fato de que a Europa é mais secularizada e, portanto, mais cética acerca de ideologias político-religiosas. Mas isso também tem a ver com o fato de que católicos americanos e europeus interpretam a atual crise da democracia liberal de diferentes formas porque eles têm diferentes histórias.
O sentimento antieuropeu corre nas veias do catolicismo dos Estados Unidos, tanto que a direita colocou Trump e sua máxima de "tornar a América ótima novamente" no mapa geopolítico da Igreja. O trumpismo penetrou no corpo do cristianismo americano e isso significa que o futuro da comunidade católica mundial agora é uma questão aberta.
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A divisão católica entre Europa e América. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU