14 Novembro 2024
"Sócrates, de acordo com Platão, era crítico em relação às lágrimas de seus amigos que assistiam ao seu suicídio: apenas Fédon chorava! E no mundo latino, Marco Aurélio, o sábio imperador, propõe a apatia, a ataraxia, como a arte que supera o choro. Não, as lágrimas são a manifestação dos sentimentos humanos. Na realidade, a secura dos olhos, atestada hoje, faz parte de uma anestesia geral, a indiferença que nasce do costume de ver o espetáculo do mal", escreve o monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado em La Repubblica, 11-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Geralmente pensamos nos olhos como aquelas frestas em nosso corpo que permitem o exercício de um dos cinco sentidos, a visão. Uma observação que é verdadeira, mas insuficiente, porque os olhos não servem apenas para ver, mas também para comunicar: eles são de fato eloquentes. E entre as possibilidades de comunicação está o choro. É significativo o fato de que os olhos dos que não veem também podem chorar. As lágrimas surgem umedecendo o olho, que, em um determinado momento, as deixa escorrer e elas fluem para o rosto e o cruzam. As lágrimas são misteriosas, sua fonte é escondida, mas quando aparecem têm o poder de despertar sentimentos, inspirar gestos em quem as presencia, dizem algo que é mais performático do que uma palavra.
Chorar é o gesto universal que pode expressar muitos e diferentes sentimentos: do desespero à alegria e à exultação. A sabedoria popular se expressava, não por acaso, em frases curtas: 'Chore que é bom! ... Chore que ajuda a resistir! ... Chore porque Deus conta as tuas lágrimas!” Mas hoje em dia choramos pouco, temos dificuldade em deixar que os outros nos vejam chorar; aliás, muitas vezes, mesmo na dor, temos os “olhos secos”. Sócrates, de acordo com Platão, era crítico em relação às lágrimas de seus amigos que assistiam ao seu suicídio: apenas Fédon chorava! E no mundo latino, Marco Aurélio, o sábio imperador, propõe a apatia, a ataraxia, como a arte que supera o choro.
Não, as lágrimas são a manifestação dos sentimentos humanos. Na realidade, a secura dos olhos, atestada hoje, faz parte de uma anestesia geral, a indiferença que nasce do costume de ver o espetáculo do mal. Roland Barthes, em seus Fragmentos de um Discurso Amoroso (1977), se perguntava: “Quem escreverá a história das lágrimas? Desde quando os homens pararam de chorar? O que aconteceu com a sensibilidade?”
E, no entanto, deveríamos saber: Sunt lacrimae rerum (Eneida I, 462), ou seja, estamos imersos nas lágrimas de todas as coisas porque todas as criaturas choram... e muitas, incontáveis são as razões para chorar: da dor física à psíquica, da chegada da morte à queda e ao fracasso de uma vida, ou pelo fim do amor que esperávamos que durasse para sempre.
Deveríamos redescobrir a certeza de que nenhuma lágrima será perdida e, então, voltaríamos a chorar.
Na grande tradição cristã, existem também as lágrimas de arrependimento. Hoje, quando nos deparamos com o mal cometido, nos esquivamos da responsabilidade, temos medo de carregar uma culpa. A obsessão pela culpabilização fez com que o sentimento de culpa desaparecesse. No entanto, o reconhecimento, até o choro, é uma experiência decisiva para trilhar o caminho da mudança. Mas hoje em dia, somente se o mal que fazemos for conhecido é que sentimos vergonha, caso contrário, não assumimos nenhuma responsabilidade. E não nos esqueçamos: o ser humano quando é orgulhoso não chora, quando é mau não chora, quando é indiferente não chora.
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A dificuldade de chorar. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU