12 Novembro 2024
"O povo dos Estados Unidos - assim como quase todos os povos europeus, para ficar em nossa casa - não sabe o que fazer com a democracia como ela se tornou. Pois não pode haver democracia, além das palavras, se a taxa de pobreza individual cresce a cada ano e a lacuna que divide os mais pobres dos mais ricos aumenta desmedidamente".
O artigo é de Gabriele Crocco, e foi publicado em Chiesa di tutti, chiesa dei poveri, 09-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "a democracia não é aquela que Trump propõe, não é a afirmação do indivíduo sobre a coletividade. É exatamente o oposto: é o indivíduo que encontra certeza e futuro na relação com os outros. E na confiança no sistema".
Tudo bem, Donald Trump venceu e, francamente, não há nada de surpreendente nisso. A vitória de Trump está escrita na deriva agora histórica dos Estados Unidos, no fato de terem se tornado, nos últimos anos, a mais frágil das fragilíssimas democracias do mundo.
O povo dos Estados Unidos - assim como quase todos os povos europeus, para ficar em nossa casa - não sabe o que fazer com a democracia como ela se tornou. Pois não pode haver democracia, além das palavras, se a taxa de pobreza individual cresce a cada ano e a lacuna que divide os mais pobres dos mais ricos aumenta desmedidamente. Não há democracia se, para além das proclamações, a concretude da pobreza não dá acesso aos direitos elementares: a um bom atendimento médico, à educação digna, aos sistemas de segurança social, aos contratos de trabalho que respeitam salários e direitos. Não pode haver nenhuma forma de democracia se a cultura média é insuficiente, devido a uma educação escolar que não educa para a cidadania e para a própria cultura.
Não nos esqueçamos: nos EUA, em muitos estados, ainda não é permitido ensinar a teoria científica evolucionista nas escolas. Os professores que o fazem correm o risco de serem presos. Deve-se ensinar que o mundo foi criado por Deus em sete dias, como diz a Bíblia. Em 2006, os guias turísticos do Grand Canyon, no Colorado, foram instruídos a não responder às perguntas sobre a idade do cânion, ou seja, 5 ou 6 milhões de anos, de acordo com os geólogos, para não “ofender a sensibilidade dos fundamentalistas religiosos”.
Em tudo isso, a “grande democracia dos EUA” - mas, repito, a mesma coisa está acontecendo na Europa - naufragou em seu próprio mito. O sinal claro nos foi dado em 6 de janeiro de 2021, quando os partidários de Trump, alimentados pela retórica do então ex e agora novo presidente, invadiram a Câmara porque não aceitavam o resultado da eleição.
Ninguém pagou pelo que aconteceu. Os EUA aparentemente arquivaram o fato como “folclore” e não adotaram nenhuma contramedida real e democrática. Portanto, como era lógico esperar, Trump venceu, um autocrata que, como muitos seus colegas europeus, sabe falar à barriga daqueles que se sentem perpetuamente subjugados. Se estivéssemos em outros tempos, poderíamos escrever que a vitória do bilionário estadunidense é a derrota da “burguesia progressista”, aquela que em todo o planeta pensa que está sempre do lado dos mocinhos.
O que acontecerá agora? Provavelmente muito menos do que já aconteceu. No plano internacional, a posição dos EUA mudará pouco. Eles continuarão a se opor à expansão chinesa e à hipótese de “desdolarização” dos mercados. No Oriente Próximo, o apoio a Israel continuará, com o Irã sempre na mira. Quem mais perderá será a velha Europa, da qual Trump não gosta, e a nova, ou seja, Hungria, Bulgária, Polônia e República Tcheca, países que são menos exigentes em termos de direitos democráticos.
Quanto ao resto, após essa eleição, temos que nos conscientizar de que todas as democracias, como as conhecemos, saíram da fase de crise e entraram na fase de “morte cerebral”. Nunca mais será e não será mais por meio do simples voto que as refundaremos. Os autocratas, todos, têm os melhores trunfos na manga e sabem que a própria ilusão de que a democracia esteja toda encerrada no ato de votar é seu instrumento de poder mais eficaz. As democracias só voltarão à vida se superarem esse mito e trouxerem de volta a participação a partir de baixo e reconstruirmos a rede dos direitos essenciais para os indivíduos e a coletividade.
Renascerão se pararem de criar bolsões de desemprego úteis para chantagear os trabalhadores e desmantelar os contratos nacionais, se reativarem o direito aos cuidados médicos, se melhorarem a escola, a pesquisa, se criarem formas de participação na vida pública. A democracia não é aquela que Trump propõe, não é a afirmação do indivíduo sobre a coletividade. É exatamente o oposto: é o indivíduo que encontra certeza e futuro na relação com os outros. E na confiança no sistema.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O retorno de Trump no naufrágio da democracia. Artigo de Gabriele Crocco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU