11 Novembro 2024
"Nos rostos desses interlocutores televisivos, vimos os traços de uma dureza singular no imperativo da “defesa das fronteiras” e, mais ainda, vimos até um sorriso zombeteiro diante das imagens dos mortos, dos expulsos, dos famintos e dos desesperados de Gaza, com o álibi de dizer que nada havia de verdade."
O artigo é de Raniero La Valle, jornalista, ex-senador italiano, publicado por Chiesa di tutti Chiesa dei poveri, 09-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Muito já foi dito sobre a eleição de Trump para a Casa Branca, por isso não insistiremos aqui nos diagnósticos mais ou menos alarmados do que poderá acontecer, especialmente em Gaza, dada a estreita relação da família Trump com Israel e Netanyahu: há o risco de um incentivo ao suicídio de Israel, como Anna Foa o chama, e de sua recaída sobre o povo judeu da diáspora, como prenunciam as violências desencadeadas em Amsterdã entre torcedores holandeses e israelenses extremistas; nem podemos deixar de ficar horrorizados com o pré-anúncio trumpiano da deportação de milhões de imigrantes dos Estados Unidos.
Em vez disso, o que gostaríamos de destacar aqui é que a vitória de Trump liberou uma crueldade que antes estava escondida. Vimos isso com consternação nos rostos de alguns participantes de um dos habituais programas de entrevistas da TV, um professor, um empresário, uma deputada do governo, quer estivessem falando sobre Gaza ou sobre a “dissuasão” com a qual o governo quer dissuadir os imigrantes de vir para a Itália, despertando neles o terror de acabar na Albânia e de lá serem mandados de volta para onde, por motivos terríveis, fugiram.
Nos rostos desses interlocutores televisivos, vimos os traços de uma dureza singular no imperativo da “defesa das fronteiras” e, mais ainda, vimos até um sorriso zombeteiro diante das imagens dos mortos, dos expulsos, dos famintos e dos desesperados de Gaza, com o álibi de dizer que nada havia de verdade.
Lembramos então a invocação de Italo Mancini, cuja esperança, para sair dos tormentos dessa nossa modernidade, era que “voltassem os rostos”, ou seja, que voltássemos a nos relacionar com o valor infinito e a singularidade de cada pessoa, os rostos, “esses inauditos centros de alteridade que são os rostos, rostos para olhar, respeitar, acariciar”: mas hoje são os rostos de Gaza, os rostos escondidos pelo emaranhado de mãos levantadas para tentar agarrar um pedaço de comida ou uma tigela de sopa que escaparam do bloqueio das ajudas impedidas pelo cerco pela fome.
E pensamos sobre o que o Ocidente hoje não quer ver dos tormentos que ele mesmo infligiu e inflige a povos inteiros, a milhões de rostos, por aquela falsa consciência que exalta a violência disfarçada de democracia e o estado de direito como defesa de nossa identidade e dos “nossos” valores. É o que diz Roberta De Monticelli quando denuncia a “catástrofe intelectual e moral” em que se transformou o debate público sobre o massacre de Gaza, sobre essa “humanidade violada”, como reza o título de seu livro dedicado à “Palestina e o inferno da razão”. É o livro que faltava sobre a guerra em curso no Oriente Próximo, da qual as crônicas estão repletas, enquanto sua razão profunda, a filosofia que a interpreta, a fenomenologia que a explica, não é aprofundada: a Palestina como um “nó do pensamento”.
Um livro que não se pode deixar de ler porque, se não há nada que possamos fazer para aliviar o sofrimento de um único rosto em Gaza ou Nablus, pelo menos temos o dever de entender e conhecer, para imaginar, esperar e promover outro futuro para Israel, para os palestinos e também para nós mesmos. Aquele futuro, que hoje, como explica De Monticelli, é objeto de remoção, porque, como reconhecia um respeitado artigo de vários autores publicado na Foreign Affairs, há um “inegável” que também é “indizível”: o inegável é que “a solução de um único Estado não é uma possibilidade futura, já existe um único Estado entre o Mediterrâneo e o Jordão”, o que para Israel é irreversível, mesmo que a anexação não tenha sido declarada, e se resolve em um regime de apartheid; mas esse inegável é “indizível” porque fingindo que o processo para a solução de dois Estados ainda está em corso se pode mascarar a contradição entre a natureza judaica e a natureza democrática do Estado de Israel, como foi concebido até agora.
Portanto, a solução é que a realidade inegável e indizível seja tornada visível, seja assumida e transformada por meio de um processo de reconciliação até que Israel se torne um Estado binacional, com duas tradições, duas culturas, dois povos com direitos plenos e idênticos. Somente então a crueldade será derrotada e retornarão os rostos para amar.
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A crueldade e os rostos. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU