10 Setembro 2024
"Francisco recomenda não apenas livros edificantes, mas toda a literatura, mesmo aquela que pode escandalizar os fiéis. É realmente uma inversão de perspectiva: o Papa recomenda o que era proibido", escreve Jacques Neirynck, professor honorário da École Polytechnique Fédérale de Lausanne e ex-conselheiro nacional do Partido Democrata Cristão, da Suíça, em artigo publicado por Conférence Catholique des Baptisé-e-s Francophones, 09-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
As artes têm estado frequentemente a serviço das religiões. Mas, durante muito tempo, a literatura esteve sob suspeita porque retratava aventuras indecorosas e personagens nada exemplares: os romances falavam explicitamente de adultério, homossexualidade e assassinato. Quando a literatura se limita a descrever a santidade nas hagiografias, misteriosamente perde sua força e se torna doutrinação.
Desde a invenção da impressão, Roma tem se preocupado com esse problema. O primeiro Índice de Livros Proibidos foi publicado em 1559 e guiou a consciência dos leitores católicos até meados do século passado, em 1966. Incluía escritores como Montaigne, La Fontaine (!), Diderot, Rousseau, Montesquieu, Voltaire, Dumas, Baudelaire, Balzac, Zola e Gide, além de filósofos como Erasmo, Descartes, Kant, Lamennais, Bergson e Sartre, e cientistas como Copérnico e Galileu. Essa lista é tão “gloriosa” que é fácil perceber que o Índice poderia ter sido abolido, simplesmente por medo do ridículo. Mas há outro motivo, muito mais revelador: o nazismo e o comunismo também exerceram um rígido controle sobre a literatura. Grandes escritores alemães e russos foram forçados ao exílio. A censura, então, parecia ser contrária aos direitos humanos e, portanto, ao cristianismo. Desse ponto de vista, hoje ficou claro que o único crime de Montesquieu foi questionar a realeza de direito divino: não foi condenado por atacar a fé, mas por atacar o poder, porque na época os dois estavam intimamente ligados. Da mesma forma, do que Zola poderia ter sido acusado com a proibição de toda a sua obra, se não por descrever a exploração dos pobres pela burguesia?
Em 4 de agosto, o Papa Francisco publicou uma carta sobre o papel insubstituível da literatura na formação de todo cristão, a começar pelos padres. A que era vista como uma ameaça se tornou um recurso. De fato, Francisco recomenda não apenas livros edificantes, mas toda a literatura, mesmo aquela que pode escandalizar os fiéis. É realmente uma inversão de perspectiva: o Papa recomenda o que era proibido. É claro que haverá críticos que o acusarão de confundir o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, Deus e o diabo. Ele justifica amplamente sua proposta. A literatura nos permite descobrir as culturas, tanto a nossa quanto as alheias, e entrar na pele de personagens radicalmente diferentes de nós, ou seja, dos outros.
Ela corrige a incapacidade emocional da qual o mundo contemporâneo sofre. O cinema e a televisão podem operar a mesma descentralização, mas de forma passiva, enquanto a leitura obriga a mente a se envolver em uma atividade exigente, um exercício espiritual na tradição inaciana.
No entanto, em 1999, em uma carta aos artistas, João Paulo II ainda convidava os escritores a encontrar no cristianismo a fonte de sua inspiração, contrapondo-a a formas não autênticas desprovidas de inspiração religiosa. Essa mensagem fazia parte da tradição do Index há apenas um quarto de século.
Em pouco mais de trinta anos, Francisco abandonou completamente essa perspectiva. A literatura nos ensina a reconhecer “a futilidade e até mesmo a impossibilidade de reduzir o mistério do mundo e do homem a uma polaridade antinômica de verdadeiro/falso ou justo/injusto”. E assim cita não Dante ou Bernanos, mas Proust e Borges.
De todas as intervenções de Francisco, essa é, sem dúvida, a mais profética e a mais necessária. Como ele não pode agir em nível disciplinar (contracepção, celibato eclesiástico, ministério feminino), se orienta no essencial. A fé é um mistério que não precisa ser confinado em um contexto eclesiástico: Dostoievski, James Joyce, Virginia Woolf, Marcel Proust são seus vetores, porque têm o cuidado de não explicitar o que, por definição, não pode ser explicitado sem profaná-lo. A raiz mais profunda do cristianismo não se encontra, justamente, na obra literária da Bíblia, que não se apresenta como erudição histórica ou exposição teológica, mas que delineia os contornos da fé por meio de narrativas imaginadas?
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