26 Agosto 2024
Publicada em 4 de agosto, a “Carta do Papa sobre o papel da literatura na educação” é “um evento importante para todos os amantes da literatura”, afirma com entusiasmo William Marx, professor de Literatura Comparada no Collège de France.
O artigo é William Marx, em artigo publicado por ‘Le Monde’, 24-08-2024. Tradução Luisa Rabolini
“Muitas vezes, no tédio das férias, no calor e na solidão de alguns bairros desertos, encontrar um bom livro para ler se torna um oásis que nos afasta de outras escolhas que não são boas para nós.”
Esse excelente conselho não teria surpreendido nem Bernard Pivot nem Oprah Winfrey. No entanto, abre a insólita “Carta do Santo Padre Francisco sobre o papel da literatura na educação”, publicada durante os Jogos Olímpicos e que passou quase despercebida. O documento papal constitui, no entanto, um evento notável para todos os amantes da literatura.
Embora seja dirigido ao mundo católico, seu escopo vai muito além do problema inicialmente previsto da formação dos padres. Os responsáveis pela educação, incluindo aqueles da educação secular, acharão o documento uma fonte útil de reflexão. Eu o recomendo ao futuro Ministro da Educação.
O fato de a Igreja Católica estar interessada em literatura não é novidade. Lembramos o “Índice de Livros Proibidos”, instituído após o Concílio de Trento (1545-1563) e abolido somente em 1966: Stendhal e Hugo eram escritores listados nele, assim como Sand e Flaubert.
Francisco, em um movimento que lhe é próprio, inverte a perspectiva tradicional. A leitura de grandes textos poéticos e de romances, escreve ele, está na base de toda formação. A literatura nos obriga a ouvir as vozes dos outros, nos permite descobrir outras culturas, entrar em existências diferentes da nossa, nos convida à “descentralização” e à empatia, remedia a “incapacidade emocional” da qual o mundo moderno sofre e o fechamento naquelas poucas ideias obsessivas que nos prendem de maneira inexorável.
O cinema e as mídias audiovisuais não fazem o mesmo? “Sem dúvida”, responde o Papa, mas a literatura age com uma eficácia incomparável. É possível ler em qualquer situação, sem tecnologias caras. É a forma de arte mais democraticamente acessível, porque é uma forma de arte “pobre”, termo que não tem nada de pejorativo para Francisco, que colocou seu pontificado sob o patrocínio do santo de Assis.
Uma obra literária, que é composta apenas de palavras, de estilo e de símbolos, exige que o leitor infunda nela sua imaginação e exercite suas capacidades de criação e representação. Extrair dos livros as riquezas que eles contêm obriga a mente a desenvolver suas forças. Enquanto outras mídias podem se contentar com uma relativa passividade, a leitura permanece fundamentalmente ativa.
Nenhum desses argumentos é realmente novo. Eles já são encontrados em Aristóteles, Hegel, Valéry, Rilke, Cassirer e Eliot. O que é novo é vê-los expressos pela autoridade pontifícia.
Em 1999, em uma Carta aos Artistas, João Paulo II convidava as pessoas criativas a encontrar no cristianismo a fonte de sua inspiração. Ele definia uma “forma de arte autêntica”, que contrapunha às formas não autênticas, ou seja, de inspiração não religiosa. Separando o joio do trigo, sua mensagem estava alinhada com o “Índice”. Elogio à complexidade moral
Com Francisco não há nada de similar. Ele não recomenda a leitura de obras edificantes, mas de toda a literatura, sem exceções, mesmo quando poderia chocar os crentes e provocar sua consternação. Como um bom herdeiro de Inácio de Loyola, o papa jesuíta vê a narrativa como um “exercício espiritual” que desperta o senso moral do leitor. As emoções negativas são um sinal de que o bom espírito está à obra.
A literatura é um “ginásio de discernimento”. Melhor do que a filosofia ou dos textos de tipo analíticos, nos ensina a reconhecer “a inutilidade e talvez até mesmo a impossibilidade de reduzir o mistério do mundo e do ser humano a uma polaridade antinômica de verdadeiro/falso ou certo/errado”.
Vindas da caneta de um papa, essas palavras são fortes, até mesmo revolucionárias. Elas vão contra a tradição de censura da Igreja, mas também, e isso é quase mais surpreendente, contra as modernas leituras inquisitoriais praticadas nos campi em nome da política e da ideologia. Analisando bem, esse elogio da complexidade moral da literatura nada mais faz que retorna às fontes da teologia católica: a Basílio de Cesareia, que exortava os cristãos a lerem a literatura pagã, ou a Tomás de Aquino, que via na metáfora poética o único meio para expressar a infinidade do divino. Contra todas as expectativas, o Pontífice não cita os maiores expoentes da literatura católica, Dante, Hopkins ou Bernanos, mas Proust, Celan e Borges, que conheceu pessoalmente na Argentina. Em um momento realmente surpreendente, ele chega a criticar Cocteau por ter menosprezado a arte literária em nome da fé. Como se a religião da literatura tivesse mudado de lado e passado para Roma! Seria possível acreditar mais do que esse papa nos poderes da literatura, na qual ele reconhece “a principal tarefa confiada ao homem por Deus: a de ‘nomear’ os seres e as coisas”?
Enquanto a carta estava sendo publicada, alguns prelados protestavam contra um episódio da cerimônia de abertura das Olimpíadas, interpretado, erroneamente, como uma paródia da Última Ceia. Eles dificilmente poderiam estar mais distantes das alturas espirituais e intelectuais a que Francisco se eleva. Nosso sonho é que outros líderes religiosos sejam inspirados por esse excepcional dom de inteligência e de abertura para tudo o que constitui a humanidade. Apollinaire dizia em 1913: “O europeu mais moderno é o senhor, Papa Pio X”. Só é preciso mudar o nome.
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“As palavras do Papa Francisco sobre a literatura, que vão contra a tradição de censura da Igreja, são revolucionárias”. Artigo de William Marx - Instituto Humanitas Unisinos - IHU