06 Agosto 2018
“A novidade em relação à pena de morte diz respeito à utilização argumentativa do conceito de ‘dignidade’ do sujeito, que nenhum ordenamento, nem humano nem divino, pode negar jamais. A Igreja também aceita em raciocinar não principalmente em termos de ‘honra’, mas sim em termos de ‘dignidade’.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 03-08-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A modificação do texto do n. 2.267 do Catecismo da Igreja Católica sobre o tema da “pena de morte” é uma passagem muito valiosa no complexo e articulado caminho com que a Igreja Católica se desfaz das vestes da sociedade fechada e aprende a vestir as da sociedade aberta.
Não é por acaso que as reações dos ambientes mais intransigentes e tradicionalistas sejam de preocupação com esse novo texto. O fato de ter se despedido da “pena de morte” parece ser o sinal de uma “concessão” à modernidade, até mesmo ao liberalismo.
Na realidade, trata-se da continuação do caminho que, inaugurado pelo Concílio Vaticano II desde o seu início, faz da “tradução da tradição” a verdade da “índole pastoral” não só daquele concílio, mas também da relação que a Igreja tece com o próprio passado em vista do futuro.
Nesse trabalho de tradução, a tradição é atualizada, reformada, tornada objeto de discernimento. Para não confundir o Evangelho com os preconceitos da sociedade fechada, é preciso reformular sabiamente muitas coisas, que, caso contrário, se tornam ambíguas, paradoxais, quando não contraditórias.
Por isso, gostaria de submeter o novo texto a um breve exame, comparando-o com o velho. Uma sinopse entre os textos é muito útil para perceber a mudança de argumentação, de referências e de horizonte.
O velho texto do Catecismo da Igreja Católica n. 2.267
“A doutrina tradicional da Igreja, desde que não haja a mínima dúvida acerca da identidade e da responsabilidade do culpado, não exclui o recurso à pena de morte, se for esta a única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor.
“Contudo, se processos não sangrentos bastarem para defender e proteger do agressor a segurança das pessoas, a autoridade deve servir-se somente desses processos, porquanto correspondem melhor às condições concretas do bem comum e são mais consentâneos com a dignidade da pessoa humana.
“Na verdade, nos nossos dias, devido às possibilidades de que dispõem os Estados para reprimir eficazmente o crime, tornando inofensivo quem o comete, sem com isso lhe retirar definitivamente a possibilidade de se redimir, os casos em que se torna absolutamente necessário suprimir o réu ‘são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes’.”
O novo texto do Catecismo da Igreja Católica n. 2.267
“Durante muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum.
“Hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente ao réu a possibilidade de se redimir.
“Por isso a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que ‘a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa’, e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.”
Já a uma primeira consideração, parece claro que os dois textos não só provêm de duas mãos diferentes, mas de dois mundos diferentes, que expressam a mesma tradição católica através de prioridades, noções e categorias bastante diversas.
O texto mais antigo raciocina dentro de uma “possibilidade de princípio” de recurso à pena de morte. Em tal horizonte, não renuncia a pôr, mesmo com uma certa força, a exigência da superação, mas faz isso quase “per transennam” e não “in recto”.
Além disso, parece desposar uma teoria da “legítima defesa” do Estado em relação ao réu de crimes graves, sem levar em conta a falta de proporção entre o Estado e o indivíduo singular. O “bem comum” pode zerar até à morte o valor da vida do sujeito culpado. Se o sujeito perde a honra, perde toda a dignidade.
O desejo, que o texto já introduz explicitamente, de uma gradual superação da pena de morte é substituído, no novo texto, não apenas por uma referência mais clara e redonda à dignidade da pessoa como obstáculo à admissibilidade da pena de morte, mas também por um compromisso explícito da Igreja com a superação dessa sanção.
Por outro lado, é preciso reconhecer que o Catecismo da Igreja Católica de 1992 já tinha feito uma grande mudança de perspectiva em relação ao famoso catecismo do início século, redigido por Pio X, que, à pergunta sobre a eventual legitimidade da morte do próximo, respondia:
“É lícito matar o próximo quando se combate em uma guerra justa, quando se executa por ordem da autoridade suprema a condenação de morte como pena por algum delito e, finalmente, quando se trata de necessária e legítima defesa da vida contra um injusto agressor.”
Acho que posso dizer que se trata de uma passagem cuja relevância vai muito além do tema específico, ainda que importante, da “pena de morte”. A novidade diz respeito à utilização argumentativa do conceito de “dignidade” do sujeito, que nenhum ordenamento, nem humano nem divino, pode negar jamais. A Igreja também aceita em raciocinar não principalmente em termos de “honra”, mas sim em termos de “dignidade”.
Explicitamente, ela sai da argumentação típica do ancien régime, mediante o qual parecia escandaloso negar à autoridade legítima o “poder de vida ou de morte”. De certo modo, aos ordenamentos temporais, era confiada uma espécie de “antecipação do juízo final”. Isso, evidentemente, havia obtido, ao longo dos séculos, uma série de correções preciosas.
O mundo medieval sabia muito bem que um “condenado à morte” podia ser um “santo”. Mas isso era compatível com aquela que Paolo Prodi chamava de “pluralidade dos foros” do mundo medieval, cuja força começará a diminuir, talvez, justamente desde a partir da Reforma e do Concílio de Trento. É por isso que a Igreja, que com Trento inaugurou a modernidade católica, depois de 500 anos, extraiu daí uma consequência importante. Nem a autoridade civil nem a eclesial podem prever, entre as suas sanções ordinárias, a pena de morte. Assim, a diferença do juízo de Deus do juízo dos homens fica surpreendentemente guardada.
Essa é uma das consequências da “maravilhosa complicação” do mundo decorrente das revoluções do fim do século XVIII, que a Igreja Católica hoje pode não só julgar de modo mais equânime, mas também valorizar por todo o bem que sabe produzir, apesar de todas as suas reais ou aparentes contradições. E muitas outras coisas deverão ser traduzidas, para passar de uma Igreja que raciocina em termos de “honra” a uma Igreja que raciocina em termos de “dignidade”.
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Pena de morte: a despedida de Pio X. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU