02 Julho 2024
Como todo israelense nascido, criado e educado em Israel, o historiador Ilan Pappé sempre acreditou nos “mitos nacionais” de Israel, especialmente naquele da Palestina como “terra sem povo para um povo sem terra”. Depois, aos poucos, Ilan Pappé, que fez parte dos seus estudos universitários no exterior, abriu os olhos para o que ele mesmo chama de "limpeza étnica da Palestina”, perpetrada por Israel.
A entrevista é de Rachida Azzouzi, publicada por il Fatto Quotidiano, 01-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A expressão que ele cunhou deu título a um de seus ensaios mais importante, que foi publicado na França em 2008 pela editora Fayard e é agora republicado pela editora La Fabrique. “Levei vinte anos para expressar com as palavras certas a realidade da guerra de 1948-1949”, confidenciou recentemente à Mediapart.
Ilan Pappé, em seus textos fala de “limpeza étnica” e de “genocídio progressivo”. Mas o termo “genocídio” hoje levanta fortes controvérsia se usado em relação à guerra em curso em Gaza...
Uso o termo “limpeza étnica” para descrever o que acontece nos territórios palestinos desde 1948 e que por décadas foi ignorado: isto é, a expulsão forçada de toda uma população com a intenção, não de a eliminar, mas de se livrar dela. Entre 1947 e 1949, mais de 400 aldeias palestinas foram deliberadamente destruídas, quase um milhão de palestinos foram expulsos de suas terras pelos israelenses com ameaças e civis foram massacrados. Os palestinos falam de Nakba, a grande catástrofe. Em 2007, quando o Hamas foi eleito, dois anos após a retirada dos colonos da Faixa Gaza, Israel puniu a população impondo um bloqueio terrestre, naval e aéreo, causando indiretamente a morte, isto é, privando os palestinos de bens de primeira necessidade, como alimentos e remédios. Isso é o que chamo de “genocídio progressivo”. Como a delegação sul-africana que levou o caso ao Tribunal Internacional de Justiça, acredito que hoje, a partir de 7 de outubro, esteja em curso um genocídio: a intenção é de eliminar uma população e a sua capacidade de sobrevivência.
O presidente israelense, Isaac Herzog, disse: “Ninguém é inocente em Gaza.” Ou seja, todos são um objetivo legítimo.
Quando você tomou consciência da realidade da guerra de 1948-1949?
Provavelmente em 1982, com a primeira guerra no Líbano, quando eu estava trabalhando na minha tese de doutorado sobre o 1948, em Oxford. Tive acesso aos arquivos e a documentos e evidências que contradiziam tudo o que havia aprendido na escola e na universidade em Israel. Mas levou tempo antes de eu me sentir suficientemente seguro para poder falar abertamente de “limpeza étnica”. Eu usei esse termo pela primeira vez apenas em 2006. Pouco depois deixei o meu país porque recebia ameaças de morte, em Israel muitos me consideram um traidor.
Como você explica o fato de que suas teses sejam tão difíceis de ouvir em Israel?
É muito difícil para os israelenses ouvirem que os “mitos nacionais”, tudo o que lhes foi dito quando eram crianças, na escola, no exército e nas mídias, não é verdade, que a Palestina, em 1948, não era “uma terra sem povo para um povo sem terra”. Ensinei durante anos em Israel antes de ser expulso da universidade em 2007. Acho que fui expulso justamente porque eu representava um perigo: as pessoas começavam a estar dispostas a me ouvir. Seria muito difícil para os israelenses aceitarem que a guerra de 1948, que eles chamam de “guerra da independência", também seja um crime, e que em Gaza não se trata apenas de uma guerra para a autodefesa, mas também de genocídio.
A sociedade israelense parece fragmentada, mas a grande maioria das pessoas apoia a guerra em Gaza….
Acho que estamos assistindo quase a uma guerra civil. Não como aquela de 1975 no Líbano, mas uma guerra civil “fria”. Dois blocos se opõem: a sociedade judaica israelense liberal e mais secular, que chamo de Estado de Israel, e o bloco de tradição religiosa, que chamo de Estado da Judeia, e que inclui particularmente os colonos da Cisjordânia. Essa oposição é séria e acredito que possa aniquilar Israel. Espero estar errado, mas tenho a sensação de que será o campo mais fanático e extremo a vencer. Três meses após o início da guerra, a popularidade de Benjamin Netanyahu era muito baixa. Agora ele está subindo constantemente nas pesquisas. É possível que, com o atual primeiro-ministro o com alguém como ele, Israel se torne um país mais teocrático, mais racista, mais sionista e menos atento ao direito internacional, contando também com a chegada ao poder da extrema direita francesa, europeia e estadunidense.
Na sua opinião, ainda há esperança, apesar de um cenário tão sombrio?
Sim, a esperança da criação de um único Estado democrático. Não é um sonho. Eu estou trabalhando nisso no âmbito da One Democratic State Compaign (ODSC), que reúne palestinos e israelenses e recebe cada vez mais apoio. A solução de dois Estados não funciona, nunca foi uma boa ideia.
Foi uma ideia do Ocidente israelense, não dos palestinos: “Talvez se derem aos palestinos 20% da Palestina e a dividirem em duas pequenas regiões, Gaza e Cisjordânia, dizia-se, eles ficarão contentes”. A solução de um Estado único não significa o desaparecimento de Israel como Estado, algo que não desejo, mas como Estado de apartheid. A solução de dois Estados não respeita o princípio de igualdade, não oferece uma solução para os refugiados palestinos e não corrige as injustiças cometidas no passado contra a Palestina, como a apropriação da terra e a expropriação.
Precisamos de um sistema democrático, onde todos sejam iguais entre o Jordão e o Mediterrâneo.
O que diz àqueles que se opõem à solução de um Estado único, levantando a questão demográfica?
Que muçulmanos, cristãos e judeus viviam juntos antes de 1948, e ainda melhor antes da chegada do sionismo a lugares como o Norte de África ou o Iraque.
Em 13 de maio de 2023 você foi detido no aeroporto de Detroit, nos EUA, e interrogado durante duas horas pelo FBI sobre o conflito israelense-palestino. Eles também confiscaram o seu celular. O que sente pensando nessa violação de sua liberdade?
Foi muito desagradável e também muito estranho ficar sentado diante dos dois agentes federais dos EUA que me perguntavam o que eu achava dos acontecimentos de 1948... Eu respondi: “Venham às minhas aulas, leiam meus livros. Não vou lhes dar nenhuma aula de graça”. Acho que se tratava de uma intimidação. Tentam me convencer a não voltar mais aos EUA, mas continuarei indo, é importante conversar com o EUA, onde os apoiadores do sionismo são politicamente muito poderosos. Se você não disser sobre Israel o que eles querem ouvir, você é um inimigo do Estado e não está mais seguro.
A extrema direita está às portas do poder na França. O que você acha do antissemitismo ainda presente na França e a forma como é instrumentalizado?
Israel fez do antissemitismo uma arma, não para proteger os judeus, mas para silenciar as pessoas. O antissemitismo sempre existiu na França. Deve ser denunciado e combatido, como todas as formas de racismo. Um dos maiores erros das campanhas contra o antissemitismo é fazer a distinção entre racismo e antissemitismo, como se fossem duas coisas diferentes. O racismo contra os judeus deveria ser considerado pior que o racismo contra os muçulmanos?
O editor Fayard retirou o seu livro “A limpeza étnica da Palestina”, publicado em 2008, justamente quando o empresário Vincent Bolloré, próximo da extrema direita, adquiriu o Grupo editorial Hachette, do qual a Fayard faz parte. Seu livro está sendo republicado agora pela La Fabrique. Isso o deixa mais seguro?
Fiquei surpreso porque, na época, a editora Fayard havia se mostrado muito satisfeita em publicá-lo.
Mas hoje tenho que agradecer a Bolloré. Seu flagrante ataque à liberdade de expressão tornou meu livro mais popular. E estou muito feliz que La Fabrique, com quem já tinha publicado anteriormente “Os Demonios da Nakba”, esteja republicando “A limpeza étnica da Palestina”.
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“Desde 1948, Tel Aviv quer se desfazer do povo palestino”. Entrevista com Ilan Pappé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU