A expansão do BRICS deve ser entendida em um novo contexto geopolítico global e de mal-estar do Sul global. Com pouca institucionalidade e interesses muitas vezes contrapostos entre os seus membros, o BRICS parece mais um sintoma de mudanças na arena internacional do que a sua causa. O risco, como se viu com a invasão russa à Ucrânia, é, no entanto, o desenvolvimento de uma noção de multipolaridade contrária à ordem baseada em regras.
O artigo é de Uwe Optenhögel, doutor em Ciência Política pela Universidade de Hamburgo e consultor político, publicado por Nueva Sociedad, março-abril 2024. A tradução é do Cepat.
A cúpula do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul) que aconteceu na África do Sul, no verão de 2023, poderá ficar como uma data memorável para a política internacional. Em meio a uma campanha em massa dos países do G-7 [1] para isolar a Rússia em reação ao seu ataque à Ucrânia, algumas importantes potências regionais do mundo não ocidental decidiram candidatar-se para aderir ao BRICS, entre cujos membros destacados está a Rússia.
Com Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, este grupo passaria a ter dez membros, em janeiro de 2024 (a Argentina seria um dos novos membros, mas o recém-governo de Javier Milei decidiu não aderir por razões ideológicas). O sinal dado ao Ocidente não poderia ser mais claro: estes países não estão mais dispostos a permitir que alguém dite como agir ou com quem cooperar no plano internacional.
Dado o legado da organização desde o seu início, era difícil prever este processo. O BRICS foi lançado no verão de 2009, durante a crise financeira internacional. A adoção da sigla idealizada pelo Goldman Sachs, um dos principais bancos de investimento estadunidenses e principal culpado da crise, aparentemente não foi considerada um problema. O banco havia lançado um novo fundo para canalizar o volumoso capital de seus investidores para os mercados emergentes extremamente dinâmicos do Brasil, Rússia, Índia e China. A África do Sul se somou, em 2011, a pedido da China: o BRIC se transformou em BRICS.
Após quase três décadas de expansão dinâmica e de taxas de crescimento por vezes espetaculares, especialmente na China, tinha ficado claro que a globalização de bens e mercados financeiros se baseava em um capitalismo desregulamentado, cuja ganância o levou a se expandir muito, o que empurrou toda a ordem econômica internacional à beira do colapso e à sua maior crise desde a Grande Depressão, do final dos anos 1920.
As economias emergentes e, de fato, o Sul global como um todo, viram confirmada a sua convicção de que a ordem internacional, no final da primeira década do século XXI, representava o mundo do passado. Do Banco Mundial ao Fundo Monetário Internacional (FMI), do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) ao poder global do dólar estadunidense, as instituições da ordem mundial refletiam o equilíbrio de poder de 1945, não o de 2009.
Os países emergentes e em desenvolvimento sentiram mais do que nunca que não estavam adequadamente representados neste sistema multilateral que não refletia a porcentagem da população mundial que representavam, nem a sua crescente importância política e econômica. No momento de sua criação, o grupo dos BRICS representava aproximadamente 40% da população mundial.
A participação desses países no PIB mundial aumentou de 8%, em 2001, para 26% (em dólares estadunidenses), em 2023, enquanto a participação dos países do G-7 caiu de 65% para 43%, no mesmo período. Entre 1990 e 2022, os países membros do BRICS alcançaram uma taxa de crescimento de 4,5%, ao passo que os do G-7 alcançaram um magro 1,5%, nesse período, com a China (12,3%) e a Índia (6,4%) como as forças com maior tração. [2]
Desde o seu lançamento, o BRICS tem sido uma associação frouxa de Estados muito diferentes e com divergências muito mais acentuadas do que o G-7, por exemplo. A institucionalidade do grupo é pouca, carece tanto de estatutos como de órgãos executivos e legislativos. Nem sequer possui uma secretaria permanente. Não há critérios formais de adesão.
Este grupo de países também apresenta uma grande diversidade em termos políticos, militares e econômicos: governos democráticos e autoritários possuem colaboração mútua, e três dos membros são potências nucleares (Rússia, China e Índia). O peso econômico dentro do grupo está distribuído de forma muito desigual. O produto bruto da China excede ao de todos os outros membros juntos e chega a aproximadamente 70% do total.
Existem também conflitos abertos, incluindo confrontos militares, entre determinados países, como a China e a Índia. No entanto, os Estados-membros compartilham interesses comuns acerca da reforma do sistema multilateral da ONU, o sistema financeiro internacional, o comércio e o desenvolvimento.
Os comunicados finais das últimas 15 cúpulas do BRICS são muito claros neste aspecto. Três prioridades surgiram desde que o grupo existe:
a) O sistema financeiro
O primeiro comunicado final, de 2009, expressava o seguinte: Nosso compromisso é avançar na reforma das instituições financeiras internacionais, de forma que reflitam as mudanças na economia mundial. As economias emergentes e em desenvolvimento devem ter mais voz e representação nas instituições financeiras internacionais, e seus altos diretores devem ser nomeados por meio de um processo de seleção aberto, transparente e baseado no mérito. Também acreditamos que é muito necessário um sistema monetário internacional estável, previsível e mais diversificado. [3]
b) Desenvolvimento e comércio
No início, o BRICS promoveu vigorosamente os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) e, desde 2015, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Assim, escolheu uma posição que refletia a de muitas conferências importantes e bem-sucedidas da ONU [4], que tiveram um impacto duradouro na agenda de desenvolvimento e resultaram na Conferência do Clima de Paris e na adoção dos ODS.
Esta fase da política multilateral se caracterizou pela socialização das relações internacionais. O Fórum Social Mundial, por exemplo, declarou ser uma “cúpula de baixo”. Os resultados inovadores destas conferências para a comunidade internacional não teriam sido possíveis sem a participação de organizações não governamentais de todos os tipos.
c) Uma ampla reforma do sistema da ONU e seu enfoque no multilateralismo
Nesse contexto, fica claro que o surgimento do BRICS no cenário internacional esteve associado ao elevado grau de legitimidade do Sul global. Emergia um ator comprometido com uma ordem multipolar mais justa, algo interpretado como um passo a mais em direção à emancipação dos países em desenvolvimento.
O fim do colonialismo europeu parecia ser um passo determinante, mas incompleto, no caminho para a libertação. Foi rapidamente substituído pela dependência e a exploração neocoloniais, que se baseiam em um sistema financeiro dominado pelo dólar estadunidense. Isto ficou especialmente evidente durante a crise da dívida sofrida pelos países em desenvolvimento, nos anos 1980.
Os programas de ajuste estrutural traçados pelo FMI forçaram os países em desenvolvimento a liberalizar o comércio, privatizar empresas públicas e a colocar em prática diversas medidas de austeridade como condição para os empréstimos de que necessitavam. Estas políticas obrigaram os países a cortar benefícios sociais e provocaram um aumento da pobreza e da desigualdade, impossibilitando o desenvolvimento nacional autônomo para muitos países em desenvolvimento.
Dadas estas condições iniciais para o BRICS, a partir de 2009, muitos analistas começaram a ver este grupo de Estados como um potencial desafio para os países ocidentais que colaboravam no G-7. No entanto, não foi assim. A previsão de crescimento para as economias emergentes não se concretizou. Pelo contrário, o BRICS perdeu impulso.
O Brasil e a África do Sul se viram afundados em problemas políticos internos e a Rússia não ultrapassou os limites de uma economia rentista baseada em energia e matérias-primas. “As economias dos membros do BRICS não asiáticos estagnaram nos anos 2010. Nas cúpulas, o bloco emitia comunicados confusos sobre o pérfido Ocidente, que rapidamente eram ignorados pelo pérfido Ocidente. “O BRICS parecia morto”, escreveu a revista The Economist. [5]
Com a consolidação da economia global, após a crise financeira, a pressão reformista que havia caracterizado as primeiras reuniões do G-20 começou a diminuir do lado ocidental. As esperanças de que o Sul global pudesse finalmente desempenhar um papel mais importante na configuração da ordem internacional baseada em regras se viram frustradas. Desde então, a reforma do sistema multilateral da ONU tem sido objeto de um debate interminável, com o Conselho de Segurança da ONU paralisado, o FMI e o Banco Mundial nas mãos de europeus e estadunidenses, respectivamente, e a Organização Mundial do Comércio (OMC) bloqueada. Nesse sentido, os anos 2010 foram perdidos para o Sul global.
Tendo em vista tais acontecimentos, surge a questão de saber o que manteve o BRICS unido durante esta fase. Apesar da sua perda de importância mundial, o grupo cumpriu uma série de funções importantes para os seus membros: forneceu uma plataforma para criticar o sistema existente, contribuiu indiretamente para a estabilidade de seus regimes internos e, portanto, ofereceu proteção contra interferências externas indesejadas (princípios de soberania e de não ingerência), ao mesmo tempo em que possibilitou criar alianças flexíveis na política externa. Além disso, a natureza do grupo serviu como fonte de prestígio e representou para o Brasil e a África do Sul, como únicos membros em seus respectivos continentes, um veículo para projetar a sua influência regional.
No entanto, foi inclusive mais importante o fato de o BRICS começar a construir instituições multilaterais, a intensificar suas relações internas e a se adaptar ao retorno à geopolítica nas relações internacionais. Em 2015, foi criado o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), com sede em Xangai, como plataforma de empréstimos para financiar os países em desenvolvimento. Também se chegou a um acordo para gerar reservas para contingências que funcionariam como um amortecedor, em caso de pressão financeira global.
O processo de criação do Banco foi prolongado e repleto de conflitos entre os membros do grupo. Surgiram divergências sobre um eventual predomínio da China no capital do banco, o que foi rejeitado pelos outros membros. Finalmente, o capital subscrito foi de 50 bilhões de dólares e cada membro contribuirá com um quinto. No entanto, a China contribui com 41% para o fundo de reservas de emergência. Além do volume do balanço do Banco ser várias vezes inferior ao do Banco Mundial e do FMI, muitos negócios ainda são feitos em dólares.
As críticas ao fraco desempenho da instituição até agora (falta de transparência, muitos empréstimos em dólares, predomínio dos membros fundadores nos órgãos de supervisão etc.) não vêm apenas dos observadores ocidentais. “Isto não leva a pensar em um banco do Sul global verdadeiramente progressista”, diz o professor Daniel Bradlow, da Universidade de Pretória, na África do Sul [6]. Algumas das avaliações das práticas empresariais do NBD são muito críticas: “Por que é que os países BRICS não conseguiram refazer a ordem financeira global?”, perguntava-se o canal de televisão France24 [7].
Independentemente dessas avaliações, na perspectiva de seus acionistas, o BRICS havia dado um primeiro passo. Ao mesmo tempo, a China continuou vigorosamente a sua própria estratégia global sob a forma da Iniciativa Faixa e Rota e participou de forma proeminente no lançamento de outro banco de desenvolvimento, o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB, na sigla em inglês), o que de certo modo ofuscou o lançamento do banco do BRICS. [8]
Provavelmente, o aspecto mais crucial nos anos 2010 foi o fortalecimento das relações internas entre os Estados-membros nas áreas de investimento e comércio mútuo. Os intercâmbios e a comunicação entre os governos nacionais e as organizações governamentais também se intensificaram e, além das cúpulas anuais, foram criados inúmeros grupos de trabalho e fóruns. Até meados dos anos 2010, as ONGs brasileiras e internacionais, como a Oxfam, tinham a ilusão de poder assessor o BRICS sobre como lidar com a sociedade civil. [9]
No entanto, não são os ativistas de ONG que se reúnem no âmbito do BRICS, mas, sim, representantes de ministérios, partidos no poder, empresas, mundo acadêmico etc. Isto cria redes de elites funcionais, estreitamente associadas aos governos. Esta prática mostra que o grupo BRICS não está muito disposto a permitir a participação da sociedade civil. Pelo contrário, resultou um retrocesso no que diz respeito à participação social na política internacional, alcançada nas últimas décadas. O BRICS é um projeto puramente intergovernamental. [10]
Tudo isso aconteceu, em grande medida, fora do radar do Ocidente, que desde a crise financeira tem estado preocupado em gerir múltiplas crises e o “retorno da geopolítica”. Só com a pandemia e a invasão russa da Ucrânia é que o Ocidente percebeu que não podia mais dar como certo que os países do Sul global continuariam automaticamente a sua linha. Ficou claro que a ignorância ocidental teve um alto preço. Ambos os acontecimentos reforçaram a tendência à reorganização e desglobalização.
No que diz respeito à pandemia, os países em desenvolvimento tiveram de enfrentar a amarga verdade de que os países ricos do Ocidente não estavam dispostos a reconhecer as vacinas contra a Covid-19 como um “bem comum global”, como exigiam a Índia e a África do Sul [11]. Pelo contrário, protegeram as patentes de suas companhias farmacêuticas multinacionais, apesar dos efeitos graves e incertos de uma pandemia global. A eclosão da guerra na Ucrânia também demonstrou rapidamente que as guerras empreendidas pelas principais potências têm consequências globais de longo alcance e que, com sorte, podem ficar confinadas ao campo militar.
A própria guerra e o apoio decisivo do Ocidente à Ucrânia geraram interrupções na cadeia de abastecimento e escassez em vários mercados globais (alimentos, matérias-primas, energia etc.), provocando aumentos de preços e taxa de juros e inflação mais elevadas, e trouxe novamente a questão da dívida para a agenda de um grande número de países em desenvolvimento.
O objetivo da aliança ocidental era transformar a Rússia em um pária internacional e deixá-la economicamente de joelhos, por meio de sanções duras e de longo alcance, como nunca antes tinham sido aplicadas. No entanto, uma consequência não desejada destas sanções foi uma grave perturbação do comércio internacional e repercussões generalizadas nas próprias sociedades ocidentais. Neste contexto, muitos países do Sul global votaram a favor da resolução da ONU, de março de 2022, que condenou a guerra de agressão da Rússia.
No entanto, dos cinco países BRICS, só o Brasil votou a favor. A Rússia, é claro, votou contra. China, Índia e África do Sul se abstiveram. Mesmo assim, apenas alguns países do Sul global aderiram às sanções impostas pelo Ocidente, pois viram em perigo os seus interesses e relações com a Rússia e consideraram que a guerra era um assunto ocidental ou, mais precisamente, europeu.
Nesse conflito, o Ocidente enfrentou repetidamente a sua própria dupla vara, que prejudicou de modo permanente a sua credibilidade no Sul global. Não foi ele próprio que violou o direito internacional e ignorou as normas internacionais, em muitas ocasiões?
Certamente, o ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, descreveu corretamente a visão do Sul global sobre a guerra na Ucrânia, quando disse: “Em algum momento, a Europa terá de superar a mentalidade de que os seus problemas são problemas do mundo, mas que os problemas do mundo não são problemas seus. Se é com você, é seu, e se é comigo, é nosso” [12]. E qualquer que seja o impacto que a guerra na Ucrânia tenha na relação entre o Ocidente e o Sul global, ela enfrenta uma nova prova de fogo no que diz respeito à guerra entre Israel e o Hamas, em Gaza.
Muitos países em desenvolvimento não veem razão para tomar partido a respeito da guerra na Ucrânia. Em uma era em que mundo desenvolvido está reduzindo riscos e desarmando dependências unilaterais de países (China e Rússia, em particular), pela primeira vez, os países em desenvolvimento têm influência. De fato, de repente estão sendo cortejados, seja pelas matérias-primas, porque são necessários para resolver os fluxos migratórios globais ou simplesmente porque a crescente polarização entre a China e os Estados Unidos está abrindo um espaço de negociação para os “ninguéns” da comunidade internacional.
Este ambiente tenso e dinâmico foi o pano de fundo da XV Cúpula do BRICS, na África do Sul, em agosto de 2023. Dois temas importantes estavam na agenda: ampliar o grupo para incluir novos membros e um maior desacoplamento do dólar, por meio do aumento do comércio em moedas nacionais.
Houve grande interesse público na reunião, um sinal de que o BRICS se tornou o símbolo de uma mudança no cenário global, embora o grupo pouco tenha alcançado em termos de seus objetivos gerais de política de desenvolvimento [13]. No entanto, em Joanesburgo, havia uma fila de candidatos à adesão.
Segundo a África do Sul, foram recebidas cerca de 20 solicitações formais e houve outros 20 países interessados. A questão da ampliação provocou discussões entre os membros fundadores. A China e a Rússia se mostraram a favor, ao passo que a Índia e o Brasil se opuseram. Sem critérios formais de adesão, a admissão de novos membros era exclusivamente uma questão de influência entre os membros fundadores. A seleção de novos membros, que transformou o grupo de cinco países em outro de dez, não deixa dúvidas de que a Rússia e a China se impuseram [14].
Entre os novos países que se somaram, em janeiro de 2024 (Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos), dois são monarquias, um teocracia, um ditadura militar de facto e outro, hoje, atravessa uma guerra civil. O único caso de democracia indiscutível era a Argentina, mas após a eleição de Javier Milei, o novo governo de direita radical decidiu não entrar.
Por que não foram levados em consideração países como Indonésia, Tailândia, Nigéria, Vietnã, Malásia, Filipinas, Bangladesh, México e Colômbia? A resposta é que os novos membros escolhidos cumprem uma tarefa muito específica.
A ampliação do BRICS com a incorporação de grandes exportadores de energia, como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Irã, melhora a importância nominal do BRICS como associação energética e financeira. Países como Irã, Rússia e China possuem grandes incentivos para desenvolver sistemas monetários alternativos, pois temem ser punidos e excluídos do sistema baseado no dólar. Esta ampliação também aumenta o potencial para a promoção do uso de moedas diferentes do dólar na fixação de preços, comércio e pagamento de energia.
A ampliação do BRICS com a incorporação de novas potências energéticas pode contribuir para o desenvolvimento de mercados comerciais alternativos para a energia, tanto do petróleo quanto do gás natural. Por exemplo, o comércio futuro de petróleo em renminbi chinês, lançado em 2018, rapidamente avançou. O governo chinês também está muito interessado em promover a utilização do renminbi no comércio de gás natural. [15]
Desse modo, a Rússia e a China transformaram o BRICS em um projeto antiocidental com o objetivo de quebrar a hegemonia das potências ocidentais na atual ordem global e o domínio do dólar estadunidense na economia global. Os elementos emancipatórios da fase fundacional, vinculados a uma ambição de desenvolvimento integral, dão lugar a um projeto geopolítico caracterizado por uma política de poder tradicional, força econômica e militar e influência na política externa.
Se a ampliação ocorrida se converter em norma, há grandes probabilidades de que o BRICS+ degenere em um grupo de regimes predominantemente autocráticos. Esta transformação não oferece nada em termos de progresso para os povos do mundo em desenvolvimento e é mais provável que desencadeie em um retorno ao tipo de política de grandes potências que caracterizou o século XIX.
O mundo multipolar de Vladimir Putin [16] e Xi Jinping formula reivindicações neoimperialistas sobre esferas de interesse autodefinidas. Não está sujeito a qualquer norma e é exatamente o oposto a um mundo multilateral em que todos agem de acordo com as mesmas regras. Esta noção de multipolaridade destrói a ordem baseada em regras e substitui a força da lei pela lei do mais forte. A cada líder autocrático é garantida a liberdade de ação em seu próprio país.
Ao mesmo tempo, o grupo está se tornando ainda mais heterogéneo do que já era, com desequilíbrios crescentes entre os países membros e conflitos abertos entre os novos filiados. Resta saber como as três democracias restantes (Brasil, Índia e África do Sul) abordarão o novo enfoque, mais limitado e ao mesmo tempo mais agressivo. O presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, que defendeu firmemente a adesão argentina, enfatizou em Joanesburgo que o grupo BRICS não se dirige contra outros, mas, ao contrário, busca melhorar a posição do Sul global na ordem internacional. [17]
E alguns analistas argumentam que, para a Índia, “o país mais populoso do mundo, a cúpula é apenas um espetáculo secundário, porque a Índia tem ambições maiores, o que torna a cúpula do BRICS apenas uma entre muitas” [18]. Em tal contexto, é duvidoso que a nova direção e a ampliação para o BRICS+ tornem o grupo mais funcional. De qualquer forma, é um desafio direto para o Ocidente. [19]
Por mais cético que se possa ser sobre o futuro do BRICS+, o interesse demonstrado na cúpula de Joanesburgo e o número de países candidatos demonstram que a multipolaridade está solidamente estabelecida na atual ordem global. O BRICS, ou o futuro BRICS+, geralmente é tratado como um ator a mais neste contexto. No entanto, quando se observa mais de perto, o BRICS parece mais um sintoma das mudanças na arena internacional do que uma causa. O equilíbrio entre Estados e “civilizações” está mudando com a modernização econômica e tecnológica do antigo “Terceiro Mundo”.
E o BRICS está dando a estas mudanças uma cara institucional. Para que isto tenha êxito, muitas vezes, basta promover a política simbólica. Quando se observa o legado da “associação frouxa”, é evidente que as conquistas econômicas e de desenvolvimento substanciais são limitadas, ao passo que o impacto geopolítico em um mundo de discursos que rivalizam pode ser considerável.
No entanto, a história nos ensina que em um mundo com múltiplos centros de poder, o risco de conflitos e guerras tende a aumentar [20]. Um mundo multipolar só pode garantir estabilidade, se as grandes potências colaborarem. Quando a multipolaridade não está integrada ao multilateralismo, o resultado é a fragmentação e a guerra.
O Ocidente, e a União Europeia em particular, deveriam ver este processo como uma chamada de atenção tardia. Se a União Europeia deseja continuar sendo um ator global, deve ter clareza de que a multipolaridade veio para ficar e que o panorama estratégico provavelmente se tornará ainda mais complicado.
Para avançar em um ambiente assim, será necessário que a União Europeia vá além do marco transatlântico centrado no Ocidente e se comprometa verdadeiramente com os países em desenvolvimento. Isto significa compartilhar o conhecimento, a experiência e a sabedoria da Europa com os seus parceiros, mas sem sermões e intimidações. [21]
A União Europeia terá de aprender a tomar decisões autônomas em um mundo multipolar cada vez mais imprevisível e muitas vezes fragmentado. Contudo, talvez esteja mais bem equipada para fazer isso do que a maioria dos outros atores. Como aliança de Estados-membros muito diferentes, díspares e muitas vezes em conflito, está acostumada a situações complexas e com a arte de pactuar em negociações árduas.
[1] Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido.
[2] Niccolo Conte: “Charted: Comparing the gdp of brics and the G7 countries”, em Visual Capitalist, 23/10/2023; Thorvaldur Gylfason: “G7 versus the brics: Taking Stock in 12 Figures”, em Social Europe, 3/10/2023.
[3] “Joint Statement of the bric Countries’ Leaders”, Ekaterimburgo, 16/6/2009, disponível em infobrics.org/document/3/.
[4] V. “Die großen Weltkonferenzen der 1990er Jahre”, em Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento, bmz.de.
[5] “The BRICS Bloc Is Riven with Tensions”, em The Economist, 17/8/2023.
[6] Ibid.
[7] “NDB: A Bank with a Question Mark”, em DW, 4/8/2026.
[8] Para conhecer a estratégia global da China, durante a presidência de Xi Jinping, v. U. Optenhögel: “Sind Chinas beste Zeiten schon vorbei?”, em Mit Sicherheit kontrovers, blog, 21/11/2022, e “China en el orden global: ¿socio comercial, competidor o alternativa sistémica?”, em Nueva Sociedad, edição digital, 1/2023, disponível em nuso.org.
[9] Ver Oxfam: “Improving Global Governance through Engagement with Civil Society: The Case of BRICS”, Oxfam Briefing Note, 3/2016; Fátima Mello: “Wohin geht die brics-Gruppe?”, em IPG, 28/7/2014; William Gumede: “Strengthening Civil Society Influence on brics”, Policy Brief No 29, Democracy Works Foundation, 15/6/2018.
[10] Isto não surpreende quando consideramos como a China e a Rússia tratam os seus cidadãos que não se ajustam ao sistema: são monitorados sistematicamente (em especial sob o sistema de crédito social da China), perseguidos, às vezes assassinados ou reclusos de diversas maneiras.
[11] V. o debate sobre este assunto em Biswajit Dhar: “India’s Vaccine Diplomacy for the Global Good”, East Asia Forum, 8/2/2021; Oxfam: “Campaigners Warn that 9 out of 10 People in Poor Countries Are Set to Miss Out on covid-19 Vaccine Next Year”, comunicado de imprensa, 9/12/2020.
[12] “Explained: What Jaishankar Said about Europe, Why Germany Chancellor Praises Him”, em Outlook India, 20/2/2023.
[13] Ver T. Gylfason: ob. cit.
[14] Para uma comparação de tamanho com o G-7, após a ampliação, v. N. Conte: ob. cit.
[15] V. Hanna Voss: “Is the Dollar’s Dominance Ending?”, entrevista a Zongyuan Zoe Liu, especialista em moedas internacionais, Friedrich-Ebert-Stiftung, 17/10/2023, disponível em fes.de.
[16] Sob o governo de Putin, a Rússia desenvolveu o conceito de Russkiy MIR (mundo russo), que relativiza as fronteiras existentes entre os Estados e inclusive explicitamente a diáspora, um conceito integral que aborda questões ideológicas, políticas, culturais, geopolíticas e de identidade. Este conceito já foi usado por Putin para legitimar a anexação russa da Crimeia.
[17] V. “Debatte um brics-Erweiterung: Putin und Xi wollen Gegenpol zum Westen bilden - Lula nicht”, em NTV, 22/8/2023.
[18] Christoph P. Mohr: “One Summit Amongst Many”, em IPS, 21/8/2023.
[19] V. tb. Herbert Wulf: “Kampfansage an den Westen”, em IPG, 12/6/2023.
[20] V. a entrevista a Matias Spektor, en Jens Glüsing y Bernhard Zand: “Ist der Globale Süden moralisch überlegen, Herr Spektor?”, em Der Spiegel, 24/8/2023.
[21] Zachary Paikin, Shada Islam y Sven Biscop: “Regional Actor, Global Player: Can the eu Get the Best of Both Worlds?”, CEPS, 26/6/2023.