12 Abril 2024
Um dos pensadores mais polêmicos da atualidade veio apresentar seu novo livro na Argentina, intitulado A vida espectral. Eric Sadin está convencido de que a humanidade vive “uma inflexão intelectual e criativa” e define a atual conjuntura política global: “Quando ninguém acredita em nada, esta é a origem da loucura”. Elogia o “espírito crítico” dos argentinos, mas esclarece: “talvez haja pessoas que se tornaram tão críticas que enlouqueceram. Isso é Milei”.
A entrevista é de María Daniela Yaccar, publicada por Página/12, 10-04-2024. A tradução é do Cepat.
Eric Sadin, em visita a Buenos Aires, sabe que seu livro A era do indivíduo tirano fez furor nestas terras, que trata da morte do comum e da política como a conhecíamos, do surgimento de um novo ethos impulsionado pelos celulares e a internet – que parecem dar autonomia quando, paralelamente, crescem a pobreza e a precarização –, e da abundância de afetos como o ódio e a raiva. O livro, de 2022, descreve bem o panorama argentino. “Os Milei vão florescer em todo o mundo”, prevê o filósofo, em determinado momento da entrevista ao Página|12, na qual antecipa elementos do seu próximo livro e fala, evidentemente, desse que a editora Caja Negra acaba de publicar no país, La vida espectral: pensar la era del metaverso y las inteligencias artificiales generativas (A vida espectral: pensar a era do metaverso e das inteligências artificiais generativas).
Camisa florida, cabelos longos e soltos, olhos salientes. Efusivo. O francês foi uma espécie de vedete na Feira do Livro do ano passado. Chegou à Argentina agora a convite da Universidade Nacional de Tres de Febrero (Untref), em cuja reitoria acontece esta entrevista. Também nesta sede, acontecerá nesta quarta-feira a conferência “A era do indivíduo tirano e o poder das redes”. Sadin agradece a Eduardo Febbro, jornalista deste jornal falecido em 2023, por divulgar suas ideias no país. Em tempo real, Agustina Blanco o traduz, e surge uma piada perturbadora de que seu trabalho não poderia ser feito tão bem por um robô.
Como você se sente com a recepção de suas ideias em um país tão distante?
Realmente, a Argentina é excepcional. Não é para elogiá-los. É um país que passou por dificuldades, choques... É difícil, mas que vida tem aqui, que potência de vida. Existe sociabilidade, esperança; a vida é mais forte que tudo. Foi isso que fez a Argentina vencer a França na Copa do Mundo (risos). A recepção que dão às minhas reflexões é absolutamente excepcional. Tenho uma teoria que é a seguinte: o argentino, por muitas razões históricas, de sofrimento, complexo com o Norte, tem um espírito que não é ingênuo. As pessoas são críticas. Talvez existam pessoas que se tornaram tão críticas que enlouqueceram. Isso é Milei. Amanhã (na quarta-feira) falaremos sobre isso no debate que teremos na Untref.
O livro 'A era do indivíduo tirano' foi lido aqui em conexão com as condições de emergência do presidente.
O livro é um fenômeno aqui. Estou preparando outro modo de análise com o mesmo espírito. Tenho muita documentação. Está se intensificando. As multidões não acreditam em nada. Não acreditam em tudo que é autoridade, instituição, até mesmo na imprensa. Isto é muito sério. Quando ninguém acredita em nada, quando não há pacto comum, fundamentos ou bases comuns, é o fim. E é a origem da violência e da loucura. Quando cheguei à Colômbia em setembro do ano passado li uma entrevista de um glacióloga. A mulher falava do loop infernal dos glaciares, de como a neve recua e isso significa que há menos reflexo dos raios, o impacto dos raios é mais forte e isso provoca o recuo. É um ciclo inevitável que continua piorando. Estamos errados em pensar que podemos corrigir isso. Será possível recuperar um pouco. Em A era do indivíduo tirano o loop é terrível.
Como funciona esse loop?
Há um loop que se desencadeia e segue piorando porque se autoalimenta, e isso tem a ver com a mentalidade da sociedade que está destroçada. O pacto de confiança está praticamente quebrado. Ao nível de cada país, ao nível internacional; também para a psique isso é muito sério. Somos humanos, precisamos acreditar; fenômenos religiosos, acreditar no futuro, num mundo melhor, numa vida pessoal melhor no dia seguinte. Se não há algo, como um tempo aberto, messiânico, a coisa se transforma em algo obscuro e é a porta aberta para o rancor, o ressentimento, a culpabilização do outro e eu sou a vítima. Culpar o outro e eu sou a vítima são uma grande marca destes tempos. É o discurso do Milei: nós somos as vítimas e os outros são os culpados. Eu penso nisso o tempo todo. Vejo isso na rua. Aparecem figuras tutelares que dizem: “confiem em mim porque é isso que estão vivendo”.
Os Milei vão florescer em todo o mundo. Olhemos para Portugal: do socialismo passamos para um populismo com o espírito do Milei; Le Pen, na França; Trump, que poderá vencer novamente. “Eles mentiram para nós”, essa é a ideia, e “é hora de acertar as contas”. Amadureci este livro (A era...) ao longo de anos e anos. Eu sabia que isso estava por vir. Andando pela rua, durante anos, via que algo estava mudando. As pessoas esbarravam em você, se atacavam na rua, gritavam, sequer olhavam para você, ninguém pedia desculpas. Sentia uma raiva flutuando. Obviamente em paralelo com fenômenos sociais e políticos que estavam em ressonância com este novo ethos. Agora intuo outra coisa: que nossas psiques estão destroçadas.
O que seria, concretamente, uma psique destroçada?
É o próximo livro.
Ele não quer continuar a falar sobre Javier Milei ou sobre A era do indivíduo tirano ou seu próximo livro. Quer falar agora sobre a inteligência artificial generativa, tema que “o mobiliza atualmente” e que, junto com o metaverso, é o cerne de A vida espectral. “Esse mundo contemporâneo é apaixonante e pesado, mas às vezes é uma forma de sofrimento que não me tira a alegria. Observo o mundo contemporâneo, no presente, e é apaixonante. É difícil ver que as coisas se tornam frágeis, o sofrimento aumenta, o isolamento, o ressentimento, o ódio, o antissemitismo também. São muitos sofrimentos juntos”, expressa.
“O que me caracteriza é que intuo coisas, vejo-as chegar”, define o autor de La inteligencia artificial o el desafío del siglo e La siliconización del mundo. Ele está indignado com o acordo que o Le Monde fez com a OpenAI: “A OpenAI deu um monte de dinheiro para um contrato plurianual para analisar o fundo do Le Monde e ver como o jornalismo brinca com o idioma e descreve os fatos. O Le Monde está louco”. Menciona também o projeto oficial francês de fazer outra versão do OpenAI (Mistral).
O que motivou a escrita de A vida espectral?
Em geral trabalho com uma estrutura bem construída desde o início, mas neste livro houve uma mudança no meio do caminho. Comecei no pós-confinamento, o que chamei de “telessocialidade generalizada”; depois vivenciamos uma mudança brusca na relação com as tecnologias e as telas. O que aconteceu foi que, de repente, um número cada vez maior de ações na vida humana foi realizado através de telas, online e a distância. Algumas eram inimagináveis de serem realizadas a distância. Fazer um brinde, congressos, reuniões de chefes de Estado, sessões de psicanálise. Foi uma “pixelização” quase total das nossas existências. Era viável; essa foi a grande surpresa.
Foi um grande fenômeno tecnológico, econômico, social, antropológico, civilizacional que foi imediatamente apropriado pelo Vale do Silício, primeiro por Mark Zuckerberg, que anunciou o lançamento na órbita do mundo em outra dimensão com o metaverso, em outubro de 2021. Uma indústria quis dar a esta telessocialidade uma medida integral, alargando a dimensão de experimentações e experiências que poderiam ocorrer online, não só com a visão, mas também com o tato, o olfato, a ideia de querer fazer com que o mundo se aproximasse de nós. Zuckerberg cometeu um erro.
Qual?
Quando saímos do confinamento ele pecou por egocentrismo e anunciou o capacete, os avatares. Houve um erro de percepção porque ao sair do confinamento havia a necessidade da sociabilidade, do contato ativo, tátil. O metaverso teve uma história complicada. Por outro lado, o que tem continuado a se intensificar é a crescente pixelização de nossas existências devido ao fato de os sistemas de IA nos enviarem cada vez mais sinais com finalidades diversas para orientar a ação humana (“compre tal produto”, “trabalhe desta forma e não da outra” “cuide-se desse jeito e não de outro”, “ensine, faça tal curso”). É a consolidação da dimensão cognitiva e organizacional da IA. Foi isso que vivemos há 15 anos. Tudo isto tem consequências jurídicas e políticas que não são suficientemente ponderadas.
Existe um abismo entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos no que diz respeito ao impacto das novas tecnologias?
Cada vez menos. O ChatGPT é global. Em termos da concepção de produção industrial, obviamente existem assimetrias, porque existe o Vale do Silício, a China e alguns países europeus... existem polos. Mas em termos da utilização e das consequências, todos os países industrializados estão envolvidos nisso. A única distinção seria em termos de onde estão os capitais.
“Desde 30 de novembro de 2022, vivemos uma inflexão intelectual e criativa. Desde que o ChatGPT foi lançado, existem sistemas que têm a capacidade para realizar tarefas que até agora mobilizavam nossas faculdades intelectuais e criativas”, afirma Sadin.
Seu novo livro tem um tom de denúncia. Tem como alvo engenheiros e empresários, bem como políticos. É descrente em relação às regulações e na “retórica da complementaridade” (ver caixa). Para Sadin, estes são tempos para “diagnosticar o presente que se aproxima”, atitude que pode nos dar recursos para agir. O ChatGPT “é um fenômeno incrível na história da humanidade, mas foi banalizado”, defende. “Através de um simples comando da nossa parte, existem sistemas que produzem textos que parecem absolutamente aceitáveis. Multidões de pessoas disseram: ‘que impressionante!’. Realmente era. E essas mesmas pessoas disseram: ‘teria que haver um maior desenvolvimento tecnológico para fazer com que se parecesse a um desenvolvimento humano’. Esse é o nosso erro profundo. Não é de forma alguma uma linguagem que se assemelhe ao humano. O chat devora com uma ambição totalizante todo o corpus que existe desde o início dos tempos. É um empreendimento gigantesco”, explica. O filósofo para – quando o faz é um “bom sinal” – e exclama: “é Borges!”. Refere-se, claro, ao conto A biblioteca de Babel.
“É uma pseudolinguagem. Está esquematizada, matematizada, industrializada, cheira a morte. Está nos antípodas da forma como mantemos uma relação com a linguagem. É o lugar de encontro entre cada indivíduo e um legado comum. Cada um de nós inventa no fluxo do presente, de maneira singular, construções de palavras e frases. Nossa relação com a linguagem não tem uma dimensão probabilística, mas indeterminística. Essa dimensão é o lugar da liberdade humana”, compara. “Pela primeira vez na história da humanidade produzem-se textos e isso gera lucro. Podemos chamar isso de capitalismo linguístico”, diz ainda.
Segundo o filósofo, essa inflexão intelectual e criativa tem três grandes consequências: na nossa relação com a linguagem, no mundo da representação da imagem e do trabalho. “O utilitarismo que vigora na nossa sociedade há mais de um século, a mentalidade que procura fazer-nos funcionar através da menor perda e do maior ganho, tornou-se uma norma a tal ponto que conseguiu infiltrar-se nos nossos cérebros. O ChatGPT está organizando a renúncia das nossas faculdades mais fundamentais. A pergunta crucial e decisiva que nossos filhos nos farão dentro de dois ou três anos é: ‘por que estou indo à escola? Se eu der um simples comando e o ChatGPT me produzir um texto, me der um resumo, satisfaz todas as minhas necessidades’”, diz.
Por outro lado, “dentro de um ou dois anos” não saberemos qual é “a origem e a natureza” das imagens, o que levará a uma “desconfiança subjetiva generalizada”. “Se prevalecer a desconfiança, não haverá mais sociedade”, postula o escritor. No que diz respeito ao emprego, haverá um “furacão” que afetará as “profissões que mobilizam as nossas faculdades intelectuais e criativas” (quase 80% dos empregos nos países industrializados são em profissões de serviços, acrescenta).
“Construímos sistemas que, infinitamente mais rápidos que nós, supostamente mais confiáveis e com custos menores, são capazes de realizar tarefas no setor terciário. E o que vem é pior: os superassistentes”, alerta. “Jornalistas, tradutores, intérpretes, médicos, advogados, professores, roteiristas”, inclusive programadores, serão afetados, e não existe uma “reserva de empregos” para estas pessoas.
No mundo intelectual, que leituras você acha que prevalecem sobre esse tema?
Os intelectuais, assim como os legisladores, não compreendem nada. Sempre pensam nisso em termos de vantagens e riscos. É uma equação errada. É a única coisa que se ouve. A equação deveria seria: podemos controlar isso ou não? É isto que deveria determinar os nossos modos de compreensão e o nosso posicionamento político. Esses sistemas respeitam os princípios fundamentais que nos atravessam? A liberdade, a dignidade, a integridade humana, o exercício da nossa criatividade, a sociabilidade... Se não forem respeitados, é inaceitável.
Você vê nuances na esfera política em relação à forma como os avanços tecnológicos são tratados?
A resposta é simples: silicionização do mundo. Seja qual for o país. Muitas vezes, para ficar bem, os políticos criam comitês de especialistas que são pseudoespecialistas, vindos do mundo da tecnologia e dizem que tudo isto vai ser espetacular. Então decidem o destino dos recursos públicos. Esse é o ethos: os fundos são destinados e esta corrida cada vez mais louca continua. Em 90% dos casos quem fala sobre essas questões são engenheiros, empresários, pessoas que defendem interesses privados. Isto se chama conflito de interesses. É aceito e banalizado.
É hora de produzir diagnósticos contra isso. Eu chamo isso de “política do testemunho”. Deixemos que os setores da vida coletiva nos digam quais são os efeitos da incorporação da inteligência artificial nos empregos, nos hospitais, nas escolas públicas, na gestão, na justiça, nos armazéns do Amazon. Assim, entenderíamos as coisas de forma diferente, como uma sociedade que levanta um espelho para poder se olhar.
E o que você acha da ideia de estabelecer regulações?
Cometemos um erro em relação à questão da regulação: acreditamos que o legislador vai nos proteger das piores aberrações, e isso está errado, porque ele não sabe nada sobre estas questões específicas. Os tecnocratas fazem as suas carteiras, estão sujeitos a lobbies e a interesses econômicos.
O futuro não é a regulação, isso ajuda, mas o que importa é a mobilização, como a feita em maio de 2023 pelos roteiristas de Hollywood que viram sistemas dotados de poderes que seriam capazes de fazer o seu trabalho em dois anos. Todas as empresas que estão ameaçadas por estes sistemas devem se mobilizar e rejeitar categoricamente isto. Seremos triturados.
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“Os Milei vão florescer em todo o mundo”. Entrevista com Eric Sadin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU