08 Março 2024
Comunidades afetadas pela construção da ferrovia denunciam o risco de desmatamento e de perda de autonomia de seus territórios. Nova análise da InfoAmazonia identificou que os crimes ambientais no corredor de logística que inclui o empreendimento e outros projetos, como o asfaltamento da BR-163, já afetam diretamente 64 aldeias, 11 terras indígenas e 20 unidades de conservação.
A reportagem é de Fabio Bispo, publicada por InfoAmazonia, 06-03-2024.
Com seu tacape em uma das mãos — como faziam seus antepassados em tempos de guerra —, Alessandra Munduruku tirou um punhado de soja de uma saca com a logomarca da Cargill: “isso aqui não sustenta nossos filhos, não sustenta nossa vida, nem a floresta. Ela mata, ela destrói. Isso aqui está destruindo a floresta, contaminando nossos rios”. Rodeada por representantes dos povos Munduruku, Kayapó, Panará, Apiaká, Kumaruara, Tupinambá, Xavante, além de comunidades quilombolas e populações tradicionais, a líder indígena abriu o julgamento do Tribunal Popular, uma instância não oficial: “Ferrogrão no banco dos réus”.
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O julgamento organizado por representantes indígenas, quilombolas, agricultores familiares, assentados, entre outros, foi realizado na segunda-feira (4) na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), em Santarém (PA), e marcado por denúncias de crimes ambientais, como o desmatamento de áreas protegidas e violações de direitos dos povos tradicionais impulsionadas pelo projeto de construção da estrada de ferro EF-170, a Ferrogrão. O encontro também foi uma resposta à falta de diálogo do governo com as comunidades que vivem nas áreas que serão atravessadas pelo projeto e afirmam não terem sido consultadas como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Em sua sentença, o tribunal pediu o cancelamento imediato e definitivo do projeto da Ferrogrão, obra anunciada pelo governo federal que pretende construir 933 quilômetros de trilhos entre Sinop (MT) e Miritituba (PA), para atender demandas do agronegócio. Os juízes foram os representantes dos grupos afetados, formado por indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Pesquisadores, representantes de organizações ambientais e autoridades apresentaram argumentos técnicos e legais que embasaram a decisão. O documento foi assinado por 40 entidades e encaminhado às autoridades e ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), para providências.
A decisão popular, tomada por consenso entre representantes de sete etnias junto com comunidades ribeirinhas e quilombolas, também pediu a responsabilização das empresas ADM, Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi, idealizadoras do projeto da ferrovia em 2014, pelas implicações provocadas no meio ambiente e nos habitantes da região do Tapajós e do Xingu. O Tribunal Popular foi organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Associação Pariri, Instituto Kabu, Movimento Tapajós Vivo, Comissão Pastoral da Terra, GT Infra, Amazon Watch, Inesc, Fase e Stand Earth.
A atividade visa influenciar a decisão pendente do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o mega-projeto, patrocinado pelas grandes traders do agronegócio. Em setembro do ano passado, o ministro do STF Alexandre de Moraes suspendeu por 6 meses a ação que julgava a constitucionalidade da lei que alterou os limites do parque do Jamanxim para construção da rodovia. O ministro também determinou a realização de estudos ambientais e consulta aos povos impactados pela obra. A expectativa é de que Moraes decida sobre o tema ainda este mês.
Indígenas e populações tradicionais reuniram-se no auditório da UFOPA para julgamento da Ferrogrão em Tribunal Popular. (Foto: Jorge Eduardo Dantas | Greenpeace)
“Desde o início do processo da Ferrogrão, só foram realizadas audiências nas cidades, nenhuma dentro das aldeias indígenas. Nós temos que ser consultados. Ninguém foi consultado e isso é uma violação”, afirmou Alessandra Munduruku. Antes do julgamento, as comunidades afetadas pelo projeto fizeram uma manifestação no porto de Santarém, em frente aos silos de armazenamentos de grãos da empresa Cargill.
Segundo os indígenas, os impactos do projeto, que inclui não só a ferrovia, mas também a construção de portos, hidrovias e rodovias, já são sentidos a 50 quilômetros do traçado pretendido para a estrada de ferro, paralelo à BR-163.
“Nós estamos aqui como voz para defender a natureza. Hoje, em volta do nosso território são só as fazendas, fomos cortados por uma estrada. Mas cada território tem seu protocolo de consulta. E estamos aqui para exigir o respeito a nosso direito de ser consultado de boa-fé, antes de colocar empreendimento perto ou dentro do nosso território. Estamos aqui para dizer não a qualquer projeto que afeta a natureza e afeta nossos direitos”, defendeu Takakpe Kayapó, representante do Instituto Raoni.
O cacique Jurandir Xavante citou nominalmente as empresas ao declarar que o governo está entregando as vidas indígenas ao permitir que a obra seja executada: “A Cargill é uma empresa assassina, junto com Bunge, Dreyfus e Amaggi. Não podemos esconder isso, precisamos falar dessas empresas que destroem a gente”.
Os integrantes do Tribunal Popular associaram o poder de destruição da floresta do projeto com outros empreendimentos previstos para atender a logística do agronegócio na Amazônia, o que, segundo eles, “desrespeita o próprio Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) 5ª Fase, marcadamente os objetivos para ordenamento fundiário e territorial na Amazônia”, segundo consta na decisão.
“A Ferrogrão é um projeto de morte para os povos da floresta. Ela se liga a outros empreendimentos, como a “Hidrovia Tapajós”. Outras áreas vão ser destinadas à soja. Além do desmatamento, a soja traz contaminação do solo, das águas e dos nossos corpos por agrotóxicos”, declarou o cacique Manoel Munduruku.
No ano passado, a InfoAmazonia revelou que a ferrovia terá impacto sobre muito mais comunidades e áreas protegidas que o previsto no projeto. Pelo menos seis terras indígenas, onde vivem aproximadamente 2.600 pessoas, e 17 unidades de conservação estão na área de impacto da ferrovia e deveriam ser incluídas no processo de licenciamento ambiental.
No entanto, o estudo de impacto ambiental (EIA) apresentado em 2020, durante o governo Bolsonaro, considerou apenas duas terras indígenas dentro da área de influência do empreendimento e não foi aceito pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Segundo o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), um novo estudo técnico ainda não foi apresentado pelo Ibama.
Considerando que os impactos do projeto já são sentidos a 50 quilômetros do eixo da ferrovia e com o asfaltamento da rodovia BR-163, uma nova análise da InfoAmazonia realizada agora em 2024, ampliando a área de 2023, identificou que o impacto do desmatamento e de crimes ambientais causados pelo projeto logístico do agronegócio já afetam diretamente 64 aldeias, 11 terras indígenas e 20 unidades de conservação [considerando trecho do traçado da ferrovia Sinop-Itaituba e da rodovia até Santarém]. Desde 2014, quando o projeto foi apresentado pelas empresas do agronegócio, mais de 800 mil hectares de floresta foram desmatados nessa área, segundo dados do Prodes, Inpe, até 2023. Nesse mesmo raio de 50 quilômetros, mais de 3,5 mil áreas foram embargadas pelo Ibama, a maioria delas por desmatamento ilegal.
O professor Jondison Rodrigues, da Universidade Federal do Pará (UFPA), que fez parte da instrução técnica do Tribunal Popular, lembrou que a Ferrogrão inclui uma complexa rede logística para atender os diferentes setores do agronegócio, o que tem agravado o processo de grilagem de terras para abertura de novas áreas agrícolas. Só na região de Itaituba (PA), um dos destinos da ferrovia que fica na intersecção com a hidrovia do Tapajós e a BR-163, o professor paraense afirma que foram criados 22 portos para distribuição de fertilizantes, armazenamento de grãos e combustíveis, desde 2014. Nesse trecho da BR-163, segundo Rodrigues, passam 1,8 mil carretas por dia.
“Esse desmatamento está na cadeia do agronegócio, dos portos, da hidrovia, é preciso fazer essa conexão. É nisso que a Ferrogrão pode contribuir, para piorar essa situação ainda mais”, afirmou Rodrigues.
O coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Kleber Karipuna, defendeu que a consulta pública foi uma conquista dos povos tradicionais e não pode deixar de ser observada pelas autoridades.
“Esse tribunal e esse réu representam não só a Ferrogrão, mas outros empreendimentos que estão sendo pensados sem nenhuma consulta aos povos afetados. O direito à consulta foi conquistado pelos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais e deve ser respeitado e não deixado como apenas uma convenção internacional: ele tem poder de lei e deve ser respeitado”.
Também presente no julgamento, a procuradora federal Thais Medeiros, do Ministério Público Federal (MPF) em Itaituba, elogiou a organização popular e disse que está acompanhando os impactos do empreendimento: “Parabenizo pela ideia do Tribunal que os coloca na oposição da qual vocês nunca deveriam ter saído, a posição de decidir. O que vocês fazem aqui é chamar o Estado a observar seu dever”.
O Ministério dos Transportes afirmou à InfoAmazonia, em nota, que criou “um grupo de trabalho para discutir os aspectos de viabilidade da EF-170 [Ferrogrão] e facilitar o diálogo entre as partes”. A pasta disse que o grupo foi criado “para garantir que a sociedade civil e as comunidades diretamente afetadas pelo projeto sejam ouvidas de forma ativa”. No entanto, o órgão não respondeu se serão realizadas consultas aos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais com base na OIT 169.
No mesmo dia em que as comunidades afetadas julgavam simbolicamente as empresas que serão beneficiadas pelo projeto, o presidente da Cargill no Brasil, Paulo Sousa, disse que “a ferrovia faz todo sentido e vai acontecer”, durante evento promovido pela gestora Galápagos Capital, em São Paulo.
Questionada pela reportagem sobre a decisão do Tribunal Popular, a Cargill afirmou que “não participa do consórcio formado para a construção da Ferrogrão”.
Procuradas pela reportagem, a Bunge, Louis Dreyfus Amaggi e ADM não se manifestaram sobre a decisão do julgamento até o fechamento desta publicação.
Entregue ao governo federal em 2014, na gestão Dilma (PT), o projeto da Ferrogrão começou a ganhar forma no governo do ex-presidente Michel Temer (2016-2018), que sancionou uma lei para alterar reduzindo o Parque Nacional do Jamanxim para a construção da ferrovia. Na mesma época, em 2014, foi inaugurado o Porto de Miritituba, em Itaituba (PA), estratégico para a conexão logística da ferrovia com os portos de Santarém e Belém.
Com o início do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), a ferrovia foi impulsionada como uma bandeira do agronegócio. Juntou-se a isso o asfaltamento do trecho da BR-163 na região e a multiplicação de pequenos portos na hidrovia Tapajós, criando um corredor logístico para escoamento da produção pelo chamado Arco Norte.
Assim, com as medidas e mudanças implementadas pelos dois governos, o escoamento de grãos pelos portos do Arco Norte, chegaram a 37% das exportações em 2023, segundo dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Em 2009, a região Norte participava de 16% das exportações. A adoção da rota representa economia com custos de logísticas para o setor, principalmente pela proximidade dessas estruturas com novas frentes agrícolas que se expandem pela região amazônica.
Na gestão Lula, a Ferrogrão tem a simpatia dos ministros Renan Filho (Transportes) e Carlos Fávaro (Agricultura e Pecuária), que tensionam pela manutenção da obra nos planos do governo com as pastas de Marina Silva (Meio Ambiente e Mudança do Clima) e de Sonia Guajajara (Povos Indígenas).
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Em seu próprio tribunal, indígenas pedem responsabilização de gigantes do agronegócio e fim do projeto da Ferrogrão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU