24 Fevereiro 2024
O documento de Médicos Sem Fronteiras destaca os impactos das políticas migratórias na saúde e no bem-estar das pessoas em mobilidade, e denuncia o compromisso da União Europeia em normalizar através do seu pacto migratório a violência na fronteira.
A reportagem é publicada por El Salto, 21-02-2024.
As políticas migratórias da UE matam. Também levam milhares de pessoas à desesperança e ao desamparo. É o que Médicos Sem Fronteiras (MSF) constatou em sua experiência nas fronteiras do espaço Schengen e nas externalizadas. Os Balcãs, Polônia, Grécia, Itália ou Líbia, explica a organização, "se tornaram laboratórios e campos de testes de políticas e práticas cada vez mais prejudiciais".
Em um relatório apresentado em 21 de fevereiro pela organização humanitária, intitulado 'Morte, desespero e desamparo: o custo humano das políticas migratórias da UE', oferece uma retrospectiva do que foi registrado durante seu trabalho em 12 países da Europa e da África. Para documentar os efeitos de uma crise política que afeta diariamente a vida de centenas de milhares, a MSF utiliza tanto dados médicos coletados em seu trabalho quanto depoimentos de pacientes e profissionais de saúde.
O período em que se baseia seu relatório começa em agosto de 2021 e termina em setembro de 2023, dois anos em que a organização constatou "como, em cada etapa da jornada migratória das pessoas em direção à UE e dentro dela, sua saúde, bem-estar e dignidade foram sistematicamente minados pela interação de políticas e práticas violentas enraizadas nas políticas da UE e de seus Estados membros".
Para começar, o relatório se concentra nas consequências do compromisso com a dissuasão violenta da mobilidade humana. Uma dissuasão que começa ao prender as pessoas em seu caminho para a Europa em países terceiros, através de acordos de externalização de fronteiras.
A MSF aponta Líbia, Níger, Tunísia e Sérvia como lugares onde as pessoas migrantes ficam presas sem acesso a cuidados de saúde, e expostas a "níveis alarmantes de violência e coerção", com as forças de segurança caçando-as, através de batidas, ou agredindo-as sistematicamente. Circunstâncias que resultam, entre outras situações, em problemas de saúde consistentes em condições preveníveis, que incluem "doenças de pele, infecções respiratórias e distúrbios gastrointestinais".
O relatório destaca especialmente as pessoas devolvidas à Líbia após serem interceptadas no mar, onde são expostas a violência e abusos nos centros de detenção, uma situação que provoca em suas vítimas "ansiedade, depressão, autolesão e tentativas de suicídio". As interceptações no mar, também por parte da Tunísia, expõem os sujeitos a episódios de grande crueldade, implicando sua transferência para países como a própria Líbia, Níger ou Argélia.
Do bloqueio das pessoas migrantes nas fronteiras, resultam situações de desidratação e hipotermia, prossegue a MSF em seu relatório, sendo frequentes os ferimentos infligidos ao tentar escapar da perseguição das forças de fronteira. Sem mencionar as milhares de pessoas que perdem a vida no mar sem que ninguém as resgate ou diretamente como efeito das táticas das guardas costeiras.
A falta de vias legais e seguras está por trás do fato de a MSF ter tido que atender, no período de tempo abrangido pelo relatório, a 28.000 pessoas vítimas dos muros, da falta de meios para o resgate e salvamento, e da securitização da fronteira. Enquanto 8.000 foram resgatadas no mar, 20.000 receberam atendimento médico e apoio em saúde mental.
Os próprios muros são construídos para causar danos, é o caso na fronteira polonesa, onde quatro em cada dez pessoas atendidas haviam sido feridas ao tentar superá-los. Juntamente com as infraestruturas, a violência dos agentes de fronteira na expulsão das pessoas fez necessário o atendimento médico tanto na Polônia quanto na Grécia, Hungria e Bulgária.
Uma vez chegadas à fronteira comunitária, a saúde e o bem-estar das pessoas migrantes continuam sofrendo como resultado das medidas europeias. A detenção desempenha um papel importante no prejuízo das pessoas, a MSF aponta para os Centros Fechados de Acesso Controlado, presentes na Grécia e financiados pela UE, estruturas tipo carcerárias que têm duras consequências na saúde mental das pessoas internadas neles. Ansiedade, estresse pós-traumático, depressão, estão entre os quadros que os trabalhadores da organização encontraram em seus pacientes nos últimos anos. As crianças não foram poupadas desse declínio na saúde. Os problemas de higiene e a insalubridade também geram doenças de pele contagiosas, alertam.
Além dos Centros Fechados, as pessoas migrantes encontram em seu caminho os chamados hotspots, Centros de Identificação e Recebimento onde jogam seu futuro. A MSF aponta que os procedimentos administrativos que ocorrem nesses espaços fronteiriços geram ansiedade entre pessoas que ao mesmo tempo estão desamparadas, devido ao "desmantelamento das salvaguardas".
Essa falta de garantias que protejam os direitos das pessoas migrantes se traduz, uma vez no território comunitário, no que a MSF chama de "segurança negada". As políticas de dissuasão características da União Europeia impedem as pessoas de se curarem, estabelecerem-se e acessarem uma vida digna. Quando o asilo é negado, as pessoas são condenadas a viver nas ruas ou buscar soluções habitacionais fora do mercado. O relatório destaca as consequências dessa exclusão do acolhimento na saúde das pessoas, em países como Países Baixos e Bélgica. Viver nas ruas, lembra a MSF, é extremamente prejudicial para a saúde mental, transtorno psicótico, estresse pós-traumático e depressão têm uma ampla incidência entre as pessoas que ficam sem teto. Todas essas circunstâncias são agravadas no caso dos menores, abandonados pelas administrações, a MSF lembra nesse sentido seu trabalho com crianças na França.
Depois de expor o que pôde observar durante esses dois anos nas fronteiras, a MSF alerta que a mesma violência à qual teve que responder continua marcando o rumo das políticas migratórias estatais e comunitárias. Nesse sentido, afirmam: "As atuais reformas apresentadas no Pacto de Migração e Asilo da UE incorporam ainda mais uma rede de violência que visa dissuadir e excluir aqueles que buscam segurança".
Para a organização, a possibilidade de financiar as externalizações para países terceiros, apresentada como uma forma de "solidariedade" entre os Estados membros, a proposta de manter as pessoas em movimento bloqueadas na fronteira, significa consolidar "um sistema baseado na detenção (...) desmantelando mecanismos de proteção", uma abordagem às migrações que já causou inúmeras violações dos direitos humanos em países como Itália ou Grécia.
Por outro lado, com seu foco em deter os movimentos secundários (ou seja, aqueles que ocorrem entre países uma vez dentro do território comunitário), a UE condena as pessoas em movimento à exclusão, usando o abandono como forma de dissuasão. França e Bélgica, explica a MSF, são claramente dois estados onde essas situações de solicitantes de asilo sem nenhum apoio são evidentes por não estarem no país de entrada.
A organização lamenta que uma oportunidade como o Pacto de Migração e Asilo tenha sido desperdiçada, optando, ao contrário, pela normalização da violência. A MSF contesta um modelo baseado apenas na segurança e pede uma mudança de curso que acabe com o grande custo humano de políticas que "causaram mortes sem sentido, ferimentos e traumas a longo prazo entre as pessoas que buscam proteção nas fronteiras da UE".
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A Europa fortaleza destroça vidas: um relatório da MSF mostra o custo humano das fronteiras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU