22 Fevereiro 2024
Os líderes cristãos do Ocidente devem se posicionar e lembrar às pessoas que o presidente russo Vladimir Putin “não acredita” nos chamados valores espirituais “atrás dos quais procura disfarçar sua violência”, diz Constantin Sigov, um dos intelectuais mais conhecidos da Ucrânia.
“Existem duas maneiras de destruir o cristianismo”, diz o filósofo de 61 anos que dirige o Centro Europeu da Universidade Mohyla, em Kiev.
“Stalin era abertamente ateu, anticlerical e dinamitava igrejas. Putin continua esse método, mas de uma forma ainda mais prejudicial: ele está dinamitando significados, palavras, expressões, metáforas e símbolos cristãos”, aponta Sigov.
Agora, quase dois anos depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia, ele conversou com o La Croix, sobre a guerra, Putin e o Ocidente.
A entrevista com Constantin Sigov, filósofo, é de Élodie Maurot, publicada em La Croix International, 20-02-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
À medida que se aproxima o segundo aniversário da guerra na Ucrânia, qual é seu estado de espírito?
Como todas as famílias na Ucrânia e em todo o nosso país, estou profundamente ferido pelo crime de agressão cometido pelo Estado russo e pelo niilismo estabelecido como sistema pelo regime de Putin. Atos atrozes, crimes contra a humanidade foram cometidos no nosso solo.
Não alimentamos ilusões: essa guerra não é como as outras. É uma guerra total. É por isso que é extremamente importante para nós ouvirmos as vozes que, do exterior e especialmente de Paris, compreendem a magnitude da tragédia que está acontecendo no coração da Europa, a apenas duas horas e meia de vocês.
Muito concretamente, enquanto acabamos de nos despedir de Robert Badinter [1928-2024; advogado francês, político que promoveu a abolição da pena de morte na França em 1981], penso em sua obra “Vladimir Poutine, l’accusation” (Ed. Fayard, 2023), que afirma claramente o perigo existencial que Putin representa para todos os cidadãos europeus.
O que você acha das hesitações dos Estados Unidos em relação à continuação de sua ajuda militar à Ucrânia? Vocês se sentem abandonados?
Como você sabe, eu não trabalho com sentimentos, mas sim com análises. Vejo as afinidades do espírito ditatorial. Vemos como o putinismo é atraente para Trump. Ele já tentou quebrar o sistema jurídico de um dos países mais democráticos do mundo. Hoje, para conter Biden, ele usa todos os meios, incluindo o sacrifício de centenas de milhares de ucranianos que lutam pela democracia.
Acho que precisamos falar claramente sobre o mimetismo ditatorial e suas devastações, não apenas em países que já eram autoritários, mas no próprio coração das democracias ocidentais.
Desde o início desta guerra, vocês têm dito continuamente aos europeus: “Esta guerra é uma guerra de vocês”. Você acha que as pessoas estão ouvindo?
Várias etapas têm mostrado progressos nessa constatação: o discurso de Emmanuel Macron em Bratislava no fim de maio de 2023, que reconheceu o erro de não ouvir os países bálticos e a Polônia antes da agressão de fevereiro de 2022, o convite à Ucrânia para aderir à União Europeia, o renascimento dos gastos militares na Europa...
A França pode fazer muito pela Ucrânia, porque é o país mais forte da Europa em termos de armamentos. Mostrar fraqueza permite a Putin alcançar seu objetivo: derrubar o direito internacional estabelecido depois de 1945, a fim de criar um clima de caos em que seu sistema mafioso pode ser o mais formidável.
Para isso, é preciso o compromisso de todos. Trata-se de não permitir a difusão de uma música derrotista que é prejudicial e pode ser ouvida em alguns programas de TV. Devemos parar de nos perguntar se Putin é invencível ou não. Ele é derrotável. Não há outra escolha senão a sua derrota, e 2024 será crucial.
Você é filósofo. Que lugar existe para o pensamento intelectual em tempos de guerra?
Precisamente pela natureza deste conflito, essa questão é primordial. Esta guerra foi lançada pela mentira sistemática, pela destruição da realidade. Hoje, portanto, precisamos muito de uma aliança entre todos aqueles que trabalham para falar a verdade, a começar pelos jornalistas que arriscam suas vidas na Ucrânia.
É também nossa responsabilidade intelectual garantir que haja um espaço em que a voz que diz “eu acuso”, como a de Robert Badinter, possa ter um significado. Paul Ricœur dizia que toda filosofia do direito começa com este grito: “É injusto!”
O maior risco hoje é o desaparecimento desse espaço. No sistema de Putin, tudo se torna absolutamente cínico, desprovido de sentido. O forte pode pisar na cara do fraco, como disse Orwell, e isso é risível. A nossa tarefa, portanto, é preservar um espaço em que a verdade e a dignidade humana sejam respeitadas.
De minha parte, também estou trabalhando em uma releitura dos grandes autores da resistência – Hannah Arendt, Simone Weil, Marc Bloch... – que são bússolas e deveriam constar no currículo de todos os cursos.
Como cristão, você acha que há uma responsabilidade em particular para desconstruir a manipulação do cristianismo por parte de Putin?
É preciso dizer claramente que se trata de uma apostasia, de uma profanação radical, de uma manipulação absolutamente cínica do cristianismo por parte de dois antigos funcionários do KGB, Putin e Kirill. É papel dos cristãos na Europa se levantarem contra essa manipulação do espiritual e essa perversão da mensagem do Evangelho, recordando o Decálogo – a proibição de matar, de roubar, de saquear, de massacrar –, o apelo dos profetas e os Salmos em favor da justiça.
Muitas vezes, esquecemo-nos de salientar que Putin não acredita nos valores atrás dos quais procura disfarçar sua violência. Como disse a historiadora Françoise Thom, ele mantém uma relação com as ideias que não está vinculada a nenhuma convicção, mas as usa para aniquilar seu inimigo.
É esclarecedor compreender que existem duas maneiras de destruir o cristianismo. Stalin era abertamente ateu, anticlerical e dinamitava igrejas. Putin continua este método, mas de uma forma ainda mais prejudicial: ele está dinamitando significados, palavras, expressões, metáforas e símbolos cristãos.
Devemos, portanto, sempre confiar nas ações e não nos deixar encantar pelas palavras. O que o putinismo propaga é a religião da guerra, a religião do mais forte. É uma seita militarista.
O perigo da violência é que ela é contagiosa. Como você trava uma guerra ao mesmo tempo em que se protege contra ela?
Essa é uma pergunta muito boa. Desde o início, tivemos consciência de que não deveríamos nos tornar o espelho do agressor e começar a nos parecer com ele, inflamados pelas “más paixões” de que fala Pierre Hassner, a violência e o ódio.
Mas essa ideia não deve ser confundida com a ausência de raiva. A raiva nos ajuda a resistir. Fornece a energia necessária – afirmada nos Salmos – para combater a agressão. Para resistir, também temos que sempre escolher o caminho da justiça. Os ucranianos estão fazendo tudo para permitir que os especialistas internacionais documentem os crimes do exército russo. O antídoto para o ódio é a justiça.
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Cristãos devem combater a perversão do Evangelho por parte de Putin, diz intelectual ucraniano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU