08 Janeiro 2024
"A polêmica em torno da recepção do texto Fiducia suplicans que abre à bênção dos casais em situação irregular e de casais homossexuais diz algo sobre a extrema tensão da Igreja Católica e sua incapacidade de simplesmente encarar a realidade", escreve René Poujol, jornalista francês, em artigo publicado por seu blog, 06-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A polêmica em torno da recepção do texto Fiducia suplicans que abre à bênção dos casais em situação irregular e de casais homossexuais diz algo sobre a extrema tensão da Igreja Católica e sua incapacidade de simplesmente encarar a realidade. E também tem um duplo mérito: antes de tudo, manifesta as reticências radicais de uma parte do clero (padres e bispos) em relação à orientação indicada por Francisco e apoiada pelo Sínodo atual, para tirar a Igreja do atoleiro; também confirma o bloqueio total da maioria da opinião pública católica sobre a questão homossexual. A “abominação” bíblica parece aqui sem apelo! Outro mérito desses sofismas, e não o menos importante: a obrigação para cada um de nós de se posicionar com clareza, de sair das hipocrisias e das certezas fáceis. Tentarei esclarecer isso neste post.
Inútil voltar a me delongar sobre a Declaração de 18 de dezembro com a qual o Dicastério romano para a Doutrina da Fé, com o consenso do Papa Francisco, abre aos ministros do culto católico “a possibilidade de abençoar casais em situação irregular e casais do mesmo sexo, sem validar oficialmente seu status nem modificar em qualquer aspecto o ensinamento perene da Igreja sobre o matrimônio”. Já dediquei um longo post no dia 22 de dezembro à análise daquele texto ao qual remeto os leitores.
Já no dia seguinte, a Conferência Episcopal de Camarões convidava os padres daquele país a não aplicar as recomendações romanas. Outros episcopados africanos seguiriam o exemplo, e na Europa aqueles da Polônia e da Hungria, no sentido oposto de seus coirmãos suíços e alemães. Isso me levou a atualizar meu artigo, que seria reproposto em sua nova roupagem em 4 de janeiro pelo Golias hebdo.
Em relação à França escrevi: “Por enquanto há silêncio total por parte da Conferência Episcopal Francesa (Cef). E é pouco provável que saia desse silêncio. Um novo testemunho das diferenças de sensibilidades episcopais que impedem todo consenso e remetem cada bispo à sua própria liberdade de fazer ou não fazer, de falar ou calar”. Não demorou muito para o lobo sair da toca. Em 29 de dezembro, a diocese de Bayonne anunciou a decisão de D. Marc Aillet de pedir aos seus padres que abençoem as pessoas apenas individualmente e não os casais. Em 1º de janeiro, são nove bispos da Província eclesiástica de Rennes que recomendam ao seus padres e diáconos para "abençoar de maneira espontânea, individualmente, cada uma das duas pessoas que formam um casal", portanto não o casal em si, como desejava o Papa Francisco.
Em 4 de janeiro, diante de tantos endurecimentos e recusas, o Vaticano publicava uma “nota explicativa” justificando, talvez com termos pouco adequados, a ortodoxia perfeita (se assim pode-se dizer) da Declaração. Lembrava que aquele texto não põe de modo algum em causa a doutrina da Igreja Católica sobre o casamento e especificava: “Na realidade, cabe a cada bispo local fazer discernimento na sua diocese ou, em qualquer caso, dar orientações complementares”. Uma liberdade de discernimento, toda sinodal, para as Igrejas locais.
Não se trata de forma alguma de um passo atrás. Uma leitura atenta da Declaração de 18 de dezembro já permitia que tal interpretação fosse feita. Isso me levava, na minha apresentação, a comentar nestes termos as primeiras reações hostis de certos episcopados africanos: “Podemos nos preocupar com essa rebelião e vê-la como um risco para a unidade da Igreja e um enfraquecimento da autoridade do papa, ou expressar a hipótese de que aqui já estaríamos, afinal, no pós-sínodo sobre a sinodalidade, no qual às Igrejas continentais ou a certas Conferências Episcopais seria oferecida a liberdade de decidi, no que lhes diz respeito sobre questões pastorais estreitamente relacionadas às “culturas” locais, mesmo que fossem contrárias a uma determinada concepção dos direitos humanos.
Isso não significa que o Papa não encontre confirmação da validade do seu percurso sinodal de busca de autonomia dos episcopados... às vezes contestada por aqueles mesmos bispos que agora aqui a reivindicam."
Pessoalmente, portanto, não considero ilegítima a iniciativa daqueles episcopados, mesmo que me desperte alguns questionamentos sobre suas reais motivações. Consigo compreender a posição africana num continente em que a homossexualidade, mais do que em qualquer outro lugar, é julgada "contra a natureza" e passível, em trinta e dois países, de sanções penais que podem chegar até ao encarceramento ou mesmo à pena de morte. Em 29 de dezembro, o presidente do Burundi convidava ao “apedrejamento de homossexuais nos estádios”. Muitos bispos e os padres africanos compartilham efetivamente aquela cultura e não veem qualquer contradição com a leitura que fazem das Escrituras.
E que não se objete que a homossexualidade não existe também no seu continente e que o seu rigorismo em questões de moral sexual leva pouco em conta a vivência real de uma parte dos membros do clero. Isso me lembra uma anedota que me foi contada há cerca de vinte anos por um amigo que voltava da África, numa época em que dirigia a redação do Le Pèlerin. De um bispo a que perguntara se não o incomodava o fato de alguns de seus padres viverem com uma esposa, recebeu esta resposta, não desprovida de humor e franqueza: “O que mais me preocupa é saber que alguns vivem com duas esposas. Veja, o dilema do padre africano é: como viver como padre católico durante o dia e como africano durante a noite”. Mas ali se tratava de heterossexualidade. Restava-se, portanto, em certo sentido, dentro do desígnio de Deus: Para cada pecado, misericórdia! Enquanto, no caso da homossexualidade, é a abominação e a desolação…
Quanto aos bispos franceses, a pergunta é diferente. O contexto cultural, radicalmente diferente, deveria tornar mais fácil acolher a abertura pastoral do Papa, mesmo que o microclima católico, no entanto, seja africano! E os bispos não querem ofender em demasia os poucos fiéis que sobraram! O argumento mais frequentemente indicado é a ambiguidade do texto romano que pretende abençoar os casais sem abençoar a união que os consolida. Mas, pensando bem, para essa aparente contradição, existe uma possível explicação que dá razão ao Papa. A palavra união evidentemente tem uma conotação jurídica. Pressupõe a ratificação por um terceiro institucional, externo ao casal, da existência de um vínculo entre aquelas duas pessoas. Nada de semelhante existe na noção de casal, que é simplesmente levar em conta a realidade: duas pessoas vivem juntas uma vida de tipo conjugal. Ponto. Se essas duas pessoas vão até um padre para pedir-lhe uma bênção, é provável que se apresentem dizendo: somos um casal, e não “vivemos em união..." E é para o seu casal que pedem bênção. O casal preexiste à união que, eventualmente, oficializa a sua existência. Afinal, é a mesma coisa para o sacramento do matrimônio [1]. Os noivos já constituem um casal, antes mesmo de o padre consagrar a sua união.
A decisão tomada pelos bispos de Bayonne e da região Ouest de pedir a bênção das pessoas separadamente é um profundo erro. Com tal decisão eles na realidade se mostram mais autoritários que o próprio Papa, que lhes deixa a escolha do discernimento. Por que não fizeram o mesmo com os seus padres? Dado que a bênção permitida por Roma pressupõe a máxima discrição, que risco de escândalo haveria ao confiar a cada padre ou diácono a responsabilidade de decidir em consciência, caso a caso? Aqui está, com essa decisão, os bispos colocam os seus colaboradores diante do desafio de desobedecer a eles, se quiserem obedecer ao papa! Vejam só que progresso pastoral! Um papa que pressiona os bispos a se tornarem doutores da Igreja.
No entanto, esses sofismas não devem ser considerados levianamente. Eles traduzem um mal profundo, um mal duplo. O primeiro é servir como revelador da falta de capacidade de compreender e como revelador da suspeita de uma parte do “aparato eclesiástico” em relação a Francisco. E o confirma.
Muitos na Igreja não levaram a sério a inversão de perspectiva feita em seu pontificado. Ou a desaprovam. Com os papas anteriores, era óbvio que Roma servisse para lembrar a doutrina, em tempo oportuno e inoportuno. “Dura lex sed lex”. Mesmo que depois os bispos e padres, localmente, amenizavam as exigências, naturalmente com a máxima discrição. A coisa não permanecia sem consequências. A opinião pública não católica, que pela mídia só tinha notícias das "proibições romanas", podia permanecer por toda a vida na total ignorância de uma qualquer benevolência pastoral.
Com Francisco, é Roma quem faz o discurso pastoral. E eis que muitos bispos se sentem investidos da missão de defender a lei e a Verdade. Assim muitas declarações episcopais – como essa dos bispos de Bayonne e de Ouest – assumem a forma de encíclicas, nas quais abundam citações e referências. Com o efeito de endurecer e restringir, em vez de explicar, a abertura pastoral à qual eram convidados. Tudo isso me lembra dolorosamente a frase do Papa Francisco em seu livro-entrevista com Dominique Wolton, a respeito de alguns (jovens) padres: “Eles têm tanto medo do Evangelho que se refugiam no código do direito canônico”. E os bispos também!
O segundo mal profundo revelado por esse caso é a homofobia enraizada em grande parte dos católicos. A sua forma de considerar os homossexuais, baseada nas proibições bíblicas, transforma-os em seres que consentem ao seu pecado e recusam, por razões incompreensíveis, o caminho de santidade na continência que maternamente a Igreja lhes propõe. Enquanto aqui também Francisco parte da realidade, de homens e de mulheres solicitantes e nos convida a nos questionarmos, sinodalmente, sobre a compatibilidade dos seus pedidos com as exigências do Evangelho. Talvez seja uma coincidência ser a mesma pessoa, o Papa Francisco, a defender "vox clamans in deserto" que sejam considerados pessoas dignas de respeito tanto o imigrante nos nossos países como o homossexual nas nossas paróquias, no momento em que as sociedades e as comunidades eclesiais parecem querer proteger-se da "ameaça externa" fazendo prevalecer uma "preferência" (nacional ou confessional) que as tranquiliza, com o risco consciente da exclusão? Gostaria de salientar que, na sua grande generosidade, os católicos franceses e os seus bispos não podem suportar “10 a 15 segundos” [2] de bênção para casais homossexuais. Sem dúvida porque, segundo eles, esse não é o desígnio de Deus. Está acima de suas forças espirituais!
No início deste (demasiado) longo artigo escrevi que o terceiro mérito das polêmicas suscitadas por essa Declaração romana era a obrigação para cada um de nós de se posicionar com clareza, de sair dos atalhos e das falsas certezas. Os leitores deste blog sabem que não tenho o hábito de me refugiar no vago, no máximo às vezes expresso a dúvida que me habita. Como muitos católicos, porque também existem desse tipo [3], alegro-me juntamente com as associações LGBT+ por um documento pastoral do qual escrevem: “Sem tocar o lado doutrinal, fonte de muitas resistências e enrijecimentos conservadores, o pontífice expressa sua vontade de sair de uma lógica de regulamentação de cima para baixo, dos esquemas doutrinais ou disciplinares”.
Posso compreender que a Igreja considere que só o casamento heterossexual homem-mulher corresponda ao que ela compreende do desígnio de Deus para a humanidade. E, portanto, admito que nesse ponto da história e da sua reflexão exegética, a Igreja não possa imaginar um casamento religioso homossexual [4]. Em vez disso, continuo não vendo por que o "sede fecundos e multiplicai-vos" deveria ter como contrapartida a continência absoluta para aqueles e aquelas cuja inclinação sexual é diferente [5]. Essa é a minha luta. E não serei eu quem lhes recusará a minha bênção.
[1] Poderia ser traçado um paralelo entre a lei penal e a proibição. Não é a lei que está na base da proibição, mas sim o contrário. Numa sociedade secular, é porque os cidadãos, em consciência (mesmo que para os cristãos a consciência seja iluminada por Deus) desaprovam o homicídio, que legislam sobre a sua proibição.
[2] Esclarecimento, desajeitado e escandaloso, indicado na nota explicativa do Vaticano datada de 4 de janeiro, para mostrar como a bênção aberta por Roma seja na realidade muito modesta.
[3] Permitam-me saudar aqui fraternalmente muitos amigos e amigas católicos que têm um ou também dois filhos homossexuais que amam sem reservas e que sofrem com a incompreensão da Igreja a seu respeito.
[4] Estou falando aqui do casamento religioso. O reconhecimento da conjugalidade homossexual na lei civil não me traz qualquer problema. Os questionamentos partilhados com outros no momento do debate sobre a lei Taubira diziam respeito não a essa conjugalidade mas às modalidades da filiação a que o casamento abria automaticamente.
[5] Deve ser lembrado aqui que casais heterossexuais estéreis ou na menopausa não estão proibidos de ter relações sexuais.
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Bênção a casais homossexuais: coragem, vamos fugir! Artigo de René Poujol - Instituto Humanitas Unisinos - IHU