17 Outubro 2023
Em um clima mundial particularmente complicado, movimentos populares de vários continentes convocam-se para discernir opções e definir passos comuns. Entre os dias 14 e 18 de outubro, mais de 500 representantes de importantes movimentos sociais da América Latina, Ásia, África e Europa se reunirão em Joanesburgo, África do Sul, para um encontro internacional convocado por Dilemas da Humanidade.
Será a 3ª conferência internacional desta iniciativa que se propõe a “debater e criar consensos que levem a uma plataforma comum de reflexão e ação” dos movimentos sociais, em escala global. Consensos não apenas sobre o diagnóstico da situação planetária, mas também sobre as opções alternativas sistêmicas.
Um dos promotores do encontro na África do Sul é o militante suíço-italiano Maurizio Coppola, sociólogo de formação, jornalista independente, tradutor e intérprete. Desde o fim de 2017, Coppola reside em Nápoles, Itália, onde participou da fundação do movimento Potere al Popolo [Poder para o Povo]. Além disso, representa a sua organização na Assembleia Internacional dos Povos (AIP) e em sua secretaria europeia. A AIP é a rede internacional de organizações políticas, sociais e sindicais progressistas que organiza a iniciativa Dilemas da Humanidade.
A entrevista é de Sergio Ferrari, publicada por Rebelión, 16-10-2023. A tradução é do Cepat.
Em poucas palavras, você pode nos explicar em que consiste ‘Dilemas da Humanidade’?
É um processo de encontro de movimentos e organizações populares, partidos políticos e intelectuais para debater os desafios que enfrentamos internacionalmente e elaborar propostas concretas para superar o capitalismo. As duas primeiras conferências, no Rio de Janeiro, em 2014, e em São Paulo, em 2015, foram organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil.
Nesse segundo encontro, em 2015, nasceu a Assembleia Internacional dos Povos. Dilemas da Humanidade é um espaço de reflexão coletiva que busca avançar na elaboração analítica e teórica e na coordenação de ações comuns, com a visão compartilhada de caminhar para alternativas socialistas.
De certa forma, parece que este “espaço-processo” tem coincidências com o que, em seu momento, foi o Fórum Social Mundial (FSM), nascido em 2001, em Porto Alegre, Brasil.
O Fórum Social Mundial teve uma importância fundamental na politização de toda uma geração de ativistas em todo o mundo. Eu mesmo sou filho dessa onda de protestos e mobilizações contra a globalização neoliberal, liderada por instituições e iniciativas internacionais como a Organização Mundial do Comércio e o Fórum Econômico de Davos.
O FSM, como expressão do movimento altermundialista, cumpriu o seu papel nos primeiros anos de sua existência. No entanto, sua incapacidade de propor a ruptura revolucionária com o sistema hegemônico e o papel predominante assumido pelas Organizações Não Governamentais (ONG) no mesmo Fórum fizeram com que perdesse importância.
Nos Fóruns, era possível encontrar análises interessantes sobre a situação da globalização e as campanhas contra as consequências nefastas do sistema dominante, mas careciam de uma orientação eficaz sobre um projeto alternativo e não se entrou, realmente, na temática da disputa do poder.
Resumindo: não basta ser um grupo de pressão dos povos oprimidos para mudar o mundo. Precisamos nos organizar com objetivos que nos coloquem em posição de decidir como o mundo deve girar, com outra visão alternativa. Nesse sentido, Dilemas da Humanidade nasceu justamente aprendendo com estas contradições e estes fracassos de organização.
Após a segunda conferência, em 2015, em São Paulo, formaram-se os três pilares fundamentais da Assembleia Internacional dos Povos: o Instituto Tricontinental de Pesquisa, com suas sedes no Brasil, Argentina, Índia e continente africano; uma coordenação de projetos midiáticos que interpretam o mundo do ponto de vista dos movimentos e as lutas populares e a coordenação das escolas de formação política em diversos continentes, justamente, a partir da experiência pioneira da Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, no Brasil. Estas são as ferramentas comuns de nossa articulação internacional.
Qual o principal desafio desta conferência que acontece na África do Sul, em uma conjuntura internacional tão complexa, marcada pela grave crise climática, as guerras e o aumento da fome no mundo?
Todos esses dilemas estão no centro e na própria agenda da conferência da África do Sul. Tentamos fazer com que a reflexão não fique na mera análise das contradições e crises em que estamos globalmente. Duas questões fundamentais permanecem pendentes. A primeira, a organização da classe trabalhadora. A constante transformação da nossa sociedade nos força a elaborar permanentemente novas formas de organização, convencidos de que sem uma classe e um povo organizados não podemos avançar.
Hoje, por exemplo, a questão que vincula a exploração do trabalho à impossibilidade de acesso à moradia se tornou central. Cada vez mais pessoas trabalham no setor informal e são pobres (os chamados trabalhadores pobres), o que limita drasticamente o acesso a uma moradia digna.
Por isso, a participação dos movimentos que se organizam em torno da questão da moradia é crucial: penso no Abahlali baseMjondolo, o movimento sul-africano de pessoas que vivem em assentamentos informais e que lutam pela melhoria das condições de vida e trabalho dos pobres; o movimento brasileiro dos Trabalhadores Sem Teto, fundado em 1997, e que hoje organiza mais de 55.000 famílias em lutas urbanas, em 14 Estados do país; e a Unión de Vecinos, o movimento de inquilinos de Los Angeles, nos Estados Unidos, onde é praticamente impossível para um trabalhador ou uma trabalhadora que ganha o salário mínimo encontrar uma moradia acessível.
Este encontro internacional de experiências de lutas por moradia não tem apenas um significado simbólico, representa também a convicção de que as dinâmicas que excluem as pessoas dos direitos sociais básicos são as mesmas em todo o mundo e que, portanto, a aprendizagem mútua se torna um elemento central para o avanço organizativo e político. A mesma convergência de análises e movimentos de luta ocorrerá em outros temas como o direito à saúde pública, a soberania alimentar, a livre circulação de migrantes, os direitos das mulheres, o planejamento ecológico etc.
A segunda questão é a construção da utopia socialista. Cada país deve construir o seu próprio caminho para acumular forças para a transformação social, a superação do atual sistema hegemônico e a construção do socialismo. A presença na África do Sul de representantes das experiências cubana e venezuelana é obviamente importante.
Em sua percepção, em que especificamente o encontro da África do Sul deveria contribuir?
Em Joanesburgo, vão se reunir 250 delegados de todo o mundo e outros 250 representantes de movimentos, sindicatos e organizações da África do Sul. O fato de ocorrer no continente africano já é uma conquista em si, pois valoriza um continente que, nos debates políticos, mesmo nos de “esquerda”, costuma ficar à margem, apesar de sua importante história de lutas pela libertação nacional, durante o século XX.
E são justamente os recentes golpes de Estado que ocorreram em diversos países da África Ocidental (Burkina Faso, Mali, Guiné, Níger, Gabão, sem esquecer o Sudão) que demonstram que a chama anticolonial não se apagou em absoluto e que a vontade de libertação dos povos africanos continua sendo grande. Embora o caminho que estes países seguirão permaneça aberto, porque a saída das potências colonizadoras (em primeiro lugar, a França) não significa, automaticamente, um desenvolvimento na direção do socialismo.
Até agora, só falei daquelas regiões do mundo onde os movimentos populares são historicamente fortes e cresceram nos últimos anos, mas não falei do “meu” continente, a Europa. A articulação política da Assembleia Internacional dos Povos, na Europa, tem mais dificuldades em se enraizar entre os movimentos sociais e as organizações políticas e, neste sentido, é também mais jovem.
Em Joanesburgo, queremos alcançar um acordo que inclua um esforço maior de coordenação de campanhas políticas e sociais concretas, em escala continental. A presença de várias organizações políticas da Itália, Bélgica, Irlanda, Hungria e Alemanha é um bom ponto de partida.
Os desafios que os movimentos progressistas europeus enfrentarão, nos próximos meses, são imensos: a reintrodução do Pacto de Estabilidade, que implicará cortes em massa do gasto público; a ascensão e o fortalecimento das forças ultraconservadoras e a militarização de nosso continente exigem uma resposta coordenada, também frente às eleições europeias de meados de 2024. Se retornarmos da África do Sul com um plano mínimo consensuado entre as diferentes forças políticas do continente, estaremos em um bom caminho.
Um mobilizador-chave para garantir este encontro na África do Sul é a Assembleia Internacional dos Povos, uma estrutura que, no entanto, não é muito conhecida, mesmo entre os setores progressistas...
A construção de uma articulação política em escala internacional, no século XXI, está longe de ter uma receita única. A Assembleia Internacional dos Povos vê a si mesma em continuidade com a tradição das internacionais que surgiram com a ascensão do movimento operário socialista e comunista mundial, mas também está consciente de que os erros do passado não podem ser repetidos.
Precisamos entender, hoje, como pode ser possível articular objetivos comuns levando em conta as condições e as tradições de diferentes países e regiões. Portanto, se hoje encontrarmos unidade e acordo em posicionar o anti-imperialismo, o anticapitalismo e a solidariedade internacional no centro da ação desta Assembleia, as formas e os meios concretos das campanhas que virão não podem ser idênticos em todas as regiões.
A guerra na Ucrânia é um bom exemplo: até o dia da invasão russa da Ucrânia, a existência da OTAN não tinha qualquer legitimidade. Em 2019, até o presidente francês Emanuel Macron havia classificado a OTAN como “obsoleta”. Contudo, a eclosão da guerra, infelizmente, mudou o “senso comum”, e construir campanhas contra a OTAN e a guerra requer, hoje, uma articulação mais sofisticada, vinculada às preocupações imediatas das classes populares (trabalho, custo de vida, inflação etc.).
A situação no continente africano, onde as potências da OTAN são um dos principais fatores que impedem a soberania nacional, e na América Latina, onde, há 200 anos, a Doutrina Monroe tem buscado bloquear qualquer avanço social, econômico e político, são obviamente muito diferentes.
O maior desafio é, portanto, construir a unidade internacional reconhecendo a diversidade nacional e regional.
Uma reflexão final: em muitos lugares do planeta, consolidam-se opções reacionárias e negacionistas que, inclusive, chegam ao governo, como Giorgia Meloni, na Itália; ou, então, que têm possibilidades de disputar importantes fatias do poder, como Javier Milei, na Argentina. Como você explica isto? Quais vêm sendo as falhas das forças populares para que esses processos regressivos possam ganhar tanto protagonismo?
É a questão crucial de nosso tempo e qualquer resposta, claro, será parcial. Penso que estamos em meio a uma crise sistêmica mundial, de civilização, que integra diferentes facetas: a econômica e a financeira, mas também a social, a política e, sobretudo, a cultural. A resposta neoliberal a esta realidade é agora insuficiente, e as nossas propostas, as do setor progressista, permanecem sendo marginais. Neste vazio criado nos últimos 15 anos, inserem-se forças ultraconservadoras, reacionárias e, em parte, neofascistas, com agendas políticas que “atentam contra a própria vida dos povos”, como costuma dizer o presidente colombiano Gustavo Petro.
Isso acontece tanto a nível dos Estados-Nação – sendo a corrida armamentista a expressão mais evidente desta concepção política – quanto a nível dos próprios povos, com o enfraquecimento dos laços de solidariedade e o recolhimento individual à vida privada. Por isso, nossas iniciativas políticas e sociais devem ser, ao mesmo tempo, culturais.
Em nossas práticas cotidianas, temos que voltar aos lugares de vida e de trabalho, construir estruturas auto-organizadas para buscar responder às necessidades cotidianas das pessoas. Nossas Casas do Povo, na Itália, por exemplo, têm exatamente este propósito: promotores sociais para garantir a moradia e o trabalho; clínicas populares; atividades esportivas, recreativas e culturais; distribuição de alimentos para famílias pobres etc. são hoje algumas de nossas ferramentas para voltar a nos conectarmos com as pessoas na base.
A luta material pela melhora das condições de vida deve vir acompanhada por uma batalha de ideias em que nos concentremos na importância das novas relações e estruturas sociais, promovendo também novas relações humanas e uma mensagem propositiva de esperança.
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Reinventar a esperança coletiva. Entrevista com Maurizio Coppola - Instituto Humanitas Unisinos - IHU