15 Outubro 2023
"Os kibutz são desvinculados de todo nacionalismo e autoritarismo. Eles são caracterizados por sua natureza antinacionalista, coletivista, pacifista, igualitária e solidária. A lógica do modelo de kibutz é regida pela busca da autogestão completa e de democracia direta em todas as decisões", escreve Sylvaine Bulle, socióloga, professora na ENSA Val de Seine, Universidade de Paris, em artigo publicado inicialmente em AOC, no dia 11 de outubro de 2023, disponível aqui e reproduzido por Uninomade, 11-10-2023.
O kibutz de Be’eri é um dos mais antigos de Israel. Pelo menos cem de seus residentes foram assassinados na sexta-feira e no sábado, dias 7 e 8 de outubro de 2023, por membros do Hamas, que penetraram facilmente pela cerca de segurança distante a apenas 5 quilômetros. Outros residentes do kibutz foram feitos reféns. A grande maioria das vítimas era de ativistas, pacifistas, anarquistas, ambientalistas, opositores da ocupação dos Territórios Palestinos ou simplesmente ativistas engajados em críticas internas ao Estado de Israel e sua tendência iliberal.
A poucos quilômetros de Be’eri, agora devastado, foi realizada uma rave pela paz. Mais de mil jovens compareceram (pelo menos duzentos e cinquenta deles foram assassinados), reunidos como parte de uma manifestação libertária e hippie, ela própria representativa de uma parcela significativa da juventude israelense e uma espécie de ilustração das zonas de autonomia temporária [1]. Portanto, essas são vozes da democracia que foram extintas pela vontade exclusiva do Hamas ou de suas tropas, que penetraram áreas geograficamente próximas a Gaza, mas em geral a eles inacessíveis.
Ainda que pareça implausível, há aqui uma simetria a ser colocada em análise: entre, de um lado, formas de vida libertárias ou apoiadas por comunidades alternativas e, de outro, um exército político e agora militar agindo com crueldade.
O que torna essa simetrização possível, embora imperfeita, é precisamente a aspiração emancipatória de liberdade dos kibutzim, por um lado, contra o projeto mortificante de uma organização bélica, por outro. Por um lado, portanto, o kibutz expressa uma experiência de convivência [2] à qual poucas formas democráticas podem aspirar. O movimento dos kibutzim israelenses, que floresceu entre os anos 1950 e 2000, paralelamente ao apogeu do socialismo de Estado em Israel, baseia-se em referências usadas por ativistas anarquistas, alternativos e globais.
Esses experimentos comunalistas são frequentemente ignorados e denegridos pela crítica social, em certa medida por estarem enraizados em Israel, considerado pelos críticos como a terra da ocupação, do imperialismo, da colonização e até mesmo do “apartheid”. É esse viés que nos impede de ver a face coletiva ou mesmo autônoma dos kibutzim, que são desvinculados de todo nacionalismo e autoritarismo e tradicionalmente opostos à forma estatal. É certo que, desde sua criação, os kibutzim têm atuado como uma barreira para proteger as fronteiras nacionais (como mostra a localização de Be’eri a 5 km da cerca de separação com Gaza) e são mais ou menos vigiados pelo exército. Mas, além da proteção militar, eles são caracterizados por sua natureza antinacionalista, coletivista, pacifista, igualitária e solidária.
A lógica do modelo de kibutz, pelo menos em sua forma original, é regida pela busca da autogestão completa e de democracia direta em todas as decisões. Essas decisões dizem respeito a todas as esferas da vida e lembram o comunismo cotidiano [3]. A ajuda mútua, a solidariedade (inclusive com os palestinos internos em suas vizinhanças), a igualdade entre seus membros, a ausência de propriedade e um modelo educacional particular (com socialização não familiar) projetado para erradicar as estruturas mentais ligadas à família nuclear, perdurou pelo menos até os anos 2000, apontando para um ideal de emancipação coletiva e individual que foi levado adiante pelo pensamento libertário ou revolucionário europeu [4].
Em suma, essas formas de vida tornam visível não um sionismo e um socialismo de Estado, mas um associacionismo independente de qualquer determinação exógena. Os kibutzim estabelecem uma estrutura para a socialização fraterna no nível de cada indivíduo e com base nas instituições da vida comunitária, como mostra a importância do refeitório, onde muitos dos residentes de Be’eri teriam sido massacrados.[5]
Em meio à crise democrática que Israel atravessa desde 2020, essas formas comunalistas perduraram, apesar ainda do liberalismo econômico e do conservadorismo predominantes. Este último é expresso pelo pietismo de parte da população judaica israelense e pela desdemocratização das instituições governamentais israelenses que desde 2022 estão nas mãos de uma coalizão de direita, religiosa, supremacista e, às vezes, racista.
O Hamas, um movimento armado e religioso, afirma encarnar a luta pela emancipação nacional palestina em um sentido completamente diferente. O nacionalismo dos palestinos, divididos em seus respectivos territórios (Israel, Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Gaza), nunca se extinguiu. E, como sabemos, é difícil ignorar a crescente hostilidade e o ressentimento dos palestinos em relação a Israel, resultado de uma situação objetiva: o confinamento em Gaza e a ocupação na Cisjordânia.
No entanto, durante as duas ou três décadas da Intifada (1967-2000), a emancipação do povo palestino foi projetada no rosto de líderes nacionalistas e políticos, como Yasser Arafat e Marwan Barghouti (ex-chefe do braço armado do Fatah e preso em Israel por terrorismo). Sobretudo, as formas de expressão de resistência e a imaginação política eram visíveis em práticas bastante emancipadoras, como o feminismo, a educação popular e a arte, realizadas por comitês de resistência popular não religiosos.
Esse imaginário político de resistência foi agora reduzido a um niilismo mortificante. Pois o Hamas, com seu grande número de combatentes, antecipou a luta pela libertação nacional e a transformou em uma máquina de guerra. O Hamas não tem a força militar de Israel, mas está se aproximando de uma organização de massa, estrategicamente equipada. Ele não tem mais como objetivo a libertação nacional palestina e a promessa política de uma democracia minimamente aberta. Ele destilou vingança, desumanização e desprezo pela liberdade. O ataque de 7 de outubro mostra a mutação de sua psique, que visa destruir não o aparato estatal “sionista”, mas a população judaica.
A relação com o tempo é outra característica ontológica que separa as duas concepções: de um lado, os fundamentos da vida no kibutz e, de outro, o nacionalismo palestino armado. A forma do kibutz reúne o imaginário (o projeto político de uma comunidade emancipada) e o concreto (respeito à terra e ao trabalho manual e agrícola, vida no local). A experimentação política no local está associada a uma dimensão escatológica, na medida em que os kibutzim fazem parte de uma jornada histórica específica, marcada pelo trauma das minorias judaicas deslocadas e exiladas. Em suma, essas experiências coletivas e integrais representam pequenos reinos no aqui e agora, tanto como o cumprimento de uma promessa de emancipação e redenção fora do tempo da destruição, quanto como um refúgio no espaço-tempo do presente, por meio de uma experiência radicalmente diferente de socialidade.
A relação dos “combatentes” do Hamas com o tempo é de natureza radicalmente diferente. O ressentimento dos palestinos e o ódio a Israel, no que diz respeito ao Hamas, é o resultado de uma ferida de identidade associada à “Nakbah” [6], a perda da raiz da pátria palestina após a criação do Estado de Israel. O tempo palestino é o tempo do sumud: um longo tempo de nostalgia que se cristaliza em torno da pátria perdida em 1948, celebrada pelos poetas palestinos e florescendo na memória. Esse tempo de nostalgia exige que nos projetemos em um projeto temporal que é a fuga para a frente, para fora da realidade negativa representada por Israel.
Para a “resistência” do Hamas e de alguns de seus partidários, o Estado de Israel não pode ser considerado uma raiz ; segue sendo um parêntese ou um apêndice e corpo estranho para a Palestina. A escatologia e o projeto de libertação pela força das armas são a marca de uma recusa do aqui e agora e são alimentados por uma socialização do ressentimento, mais ou menos lenta no tempo. Essa tensão niilista, expressa pelo massacre de 7 de outubro de 2023, está destinada a minar o espaço-tempo real da sociedade israelense e suas manifestações existenciais, sejam elas espirituais, libertárias, alternativas ou outras.
A sociedade israelense, que está concentrada em sua sobrevivência, sobre a crise de seu sistema político, está pagando o preço de seu presentismo e de sua efervescência, que a fizeram esquecer o contexto em que se encontra. O ataque do Hamas tem o objetivo de extinguir a democracia, reduzi-la a nada, matando aqueles que estão lutando para mantê-la fora das mãos dos clérigos supremacistas kahanistas que querem governar a política e os negócios em Israel dividindo a sociedade. Mas, apesar dessa catástrofe interna, o Hamas não está mais perto de vencer a luta pela emancipação do povo que pretende representar ou de impor a narrativa de sua concepção de mundo.
[1] Ver Hakim Bey.
[2] Ver Sylvaine Bulle: "La zad, le kibboutz : des expérimentations existentielles", Revue du Mauss, 2/2023 ; James Horrox, 2018, Le mouvement des kibboutz et l’anarchie : Une révolution vivante, Éditions de l’Éclat, Paris.
[3] Ver David Graeber, "Les fondements moraux des relations économiques. Une approche maussienne ", Revue du MAUSS, vol. 36, no. 2, 2010, pp. 51-70.
[4] Michael Löwy, 1988, Le Judaïsme libertaire en Europe centrale. Une étude d’affinité élective, PUF, Paris; Sylvaine Bulle, "l’anarchisme juif et ses résurgences écologiques", Revue K, 2022. Disponível aqui.
[5] Todo kibutz tem um grande refeitório e cozinha industrial anexa onde são preparadas e feitas as três refeições do dia. Com o tempo, criou-se a possibilidade de levar os alimentos para casa ou eventualmente cozinhar em casa. Mas o cheder ha’ochel – literalmente cômodo da comida – é o ponto de encontro e convivialidade fundamental da comunidade kibutznik (nota do tradutor).
[6] Catástrofe, em tradução para o português (nota do tradutor).
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O Hamas e o kibutz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU