14 Setembro 2023
"Para Nikodim, o Ocidente era um interlocutor confiável, sem ser necessariamente um exemplo a seguir. Completamente diferente é a reiterada acusação de Kirill que faz do Ocidente o lugar do mal e da imoralidade, fazendo com que as confissões eclesiais do Ocidente pareçam um conjunto de lapsos e compromissos".
O artigo é de Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, publicado por Settimana News, 12-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há 45 anos, no dia 5 de setembro, durante uma audiência com João Paulo I, morria o metropolita de Leningrado e Novgorod, o bispo Nikodim (1929-1978).
Na história pós-bélica da Igreja Ortodoxa Russa “foi a personalidade mais surpreendente que influenciou significativamente muitos aspectos da vida da Igreja, principalmente a natureza das relações Igreja-Estado”. É assim que o recorda o Patriarca Kirill de Moscou, seu secretário e sucessor como responsável do departamento de relações exteriores do patriarcado.
Homem de grande prestígio, protagonista do diálogo ecumênico durante décadas, era também “o homem que ousava dizer ‘não’ às autoridades civis. Naquele tempo, era o único em todo o episcopado que podia falar assim, para defender os interesses vitais da nossa Igreja”. A referência é à perseguição durante a época de Kruschev (1893-1971).
“Aquela era a época. Alguns bispos passaram por prisões e campos de trabalhos forçados e a sua vontade foi, de certa forma, quebrada. Outros, talvez por fraqueza de caráter, não estiveram à altura de dizer a palavra ‘não’. Havia apenas uma pessoa em nossa Igreja que a pronunciava, o metropolita Nikodim".
O desenvolvimento cativo e incansável das relações ecumênicas e internacionais “impediu que as autoridades russas buscassem uma solução final para a questão religiosa no nosso país”. Uma obra compreendida por poucos, que jogava na difícil crista do lealismo ao Estado e da autonomia da Igreja. Nenhuma crítica ao poder soviético face à sobrevivência da Igreja. O prestígio internacional garantia contra às perseguições internas.
Ao bispo veterocatólico de Utrecht, dom Kok, que o exortava a uma maior exposição, respondia: “Depois da última guerra, a Igreja Russa teve que fazer uma escolha entre servir o povo e lutar contra o regime. Escolheu servir e não cabe a vocês, ocidentais, bancarem os nossos mestres. Seremos nós a decidir quando chegar a hora de derramar o nosso sangue novamente".
Filho de um militante ativo do partido e de uma mãe ateia, Boris Gheorgevic Rotov (nome civil de Nikodim) entrou no mosteiro aos 15 anos. Após sua ordenação diaconal, tornou-se secretário de dom Dimitri. Aos 28 anos tornou-se chefe da missão patriarcal em Jerusalém. Bispo em 1960, atuou em Minsk e depois em Leningrado (agora de volta ao nome anterior, Petersburgo). Após um encontro pessoal, desenvolveu seu trabalho de doutorado sobre o pontificado de João XXIII.
Para Nikodim, a neutralidade da Igreja é uma condição necessária para a sua sobrevivência institucional. Mas também é parte de uma interpretação teológica baseada na centralidade da Eucaristia e da assembleia litúrgica.
Sobre ele, o padre P. Duprey, então ativo no Secretariado para a União dos Cristãos, escreveu: “(Nikodim) funda a possibilidade do diálogo ecumênico numa distinção fortemente acentuada entre o que é necessário e o que é acessório, entre dogma e opinião teológica, entre expressões da fé útil no passado, mas não mais hoje. Neste contexto, ele não hesita em denunciar os exageros nos métodos e resultados das reflexões teológicas que, depois de terem prestado um serviço útil no passado, se tornaram uma espécie de obstáculo no caminho para a realização da grande missão da Igreja no mundo”.
Num texto de 15 anos atrás (republicado para a ocasião), o arquimandrita Januário Ivliev reconhece a expectativa escatológica como o núcleo da espiritualidade e da pessoa de Nikodim. Em primeiro lugar, pela centralidade da liturgia eucarística, fielmente celebrada. Em segundo lugar, por uma eficiência extraordinária, não guiada pelo ativismo, mas pelo tempo “que se tornou curto”.
E, ainda, pelo agudo sentido de unidade da Igreja que, embora dividida e atravessada pelas dramáticas dimensões da história dos homens, é atraída à unidade pelo “retorno do Senhor”. Finalmente, porque, embora estritamente fiel à sua Igreja e não disposto a fáceis compactuações, tinha tamanho sentido do imperativo de Jesus pela unidade que tornava “necessária” a difícil unidade interna e entre Igrejas divididas.
A memória que Kirill tem de seu mestre está repleta de devoção e admiração, e compartilha a sua instância de qualificação cultural e teológica, mas parece quase antitética em vários pontos.
Para Nikodim, o Ocidente era um interlocutor confiável, sem ser necessariamente um exemplo a seguir. Completamente diferente é a reiterada acusação de Kirill que faz do Ocidente o lugar do mal e da imoralidade, fazendo com que as confissões eclesiais do Ocidente pareçam um conjunto de lapsos e compromissos.
Para Nikodim, o poder soviético era “legal”, mas ele sabia dizer “não” aos burocratas do partido. Não parece ser assim para Kirill, que não se cansa de justificar a guerra e o sonho do império soviético.
O mesmo com o ecumenismo: se, para Nikodim, o diálogo teológico e prático entre as Igrejas era tornado “necessário” pelo eschaton cristão, Kirill não teve dúvidas em fechar o diálogo teológico e reduzir a aliança entre as Igrejas a uma questão de estratégia em defesa dos interesses institucionais. Uma coisa é fortalecer a posição pública da Igreja em relação ao seu dever de anunciação (Nikodim), outra é transformar a Igreja num órgão do Estado, tomado dele um clima de servilismo.
Nikodim era particularmente atento à doutrina social católica, retomada no documento Os Fundamentos da concepção social, aprovado pelo Concílio dos Bispos da Igreja Russa em outubro de 2000. Kirill ignorou o que aquele texto dizia sobre as condições de uma “guerra justa”.
É paradoxal que caiba a um acadêmico russo, Valery Garbuzov, diretor do Instituto russo para os estudos sobre os EUA e o Canadá, lembrar, numa publicação científica e pública, a síndrome pós-imperial de Putin e a bolha de ilusões cultivadas pelos seus fiéis executores (cf. Asianews, 8 de setembro).
Os estereótipos ideológicos orientam um programa político frágil, incerto e malfeito, “uma colagem de afirmações que vão da orientação euroasiática ao ‘mundo russo’, do antiamericanismo” à contraposição com o Ocidente, usando conceitos vagos como “democracia soberana” e uma manipulação questionável da fé ortodoxa.
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Nikodim: o mestre traído pelo discípulo Kirill. Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU